André Dias – Enquanto realizador, participa numa espécie de cinefilia não intelectual, heterogénea, que inclui tipos de filmes muito diferentes... | Christian Petzold – Participei num seminário de Harun Farocki, enquanto estudava cinema, que tinha este nome fantástico: Como vêem os filmes. No duplo sentido de como o filme vê o mundo e de como se vê um filme. Está aqui expressa toda a tensão do cinema. Aprendi tudo ali, devo dizer. Os filmes não eram destruídos pela análise. Ficavam cada vez mais ricos. O que víamos eram as suas camadas, algo ligado ao fazer dos filmes e não a algo teórico. É dessas mesmas coisas que agora falo com os actores ou com o operador de câmara. Cada filme trata dessas camadas sociológicas, filosóficas, mas também das velhas estórias, dos contos. Pode reflectir-se, pois não se tem que ser estúpido para fazer um filme. Mas não gosto dos filmes que mostram que têm pessoas inteligentes por detrás. Quero um trabalho colectivo, para que as camadas cheguem de outro modo à atenção.
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Na génese de YELLA está precisamente essa estranha conexão entre um filme de terror – CARNIVAL OF SOULS (1962) de Herk Harvey – e um documentário – NICHT OHNE RISIKO (2004) de Harun Farocki.
| CARNIVAL OF SOULS era o meu filme preferido quando tinha 18 anos. Confesso que entre os 15 e os 25 anos via apenas este tipo de filmes. Roger Corman e outros, para mim, isto é o cinema. Não via filmes baseados em obras literárias. Mais tarde lembrei-me do conto de Ambrose Bierce – «An Occurrence at Owl Creek Bridge» (1890) – que tinha lido com 14 anos na escola. Na minha cidade já não havia cinemas. Tinham todos desaparecidos no final dos anos 60. A biblioteca pública era o nosso cinema. Íamos às salas de leitura conferir os livros que não podíamos levar para casa porque tinha que se ser maior de 18 anos para os ler. E líamos todos esses policiais, contos de terror, Nabokov, etc. Fiquei muito impressionado pelo de Ambrose Bierce. Quando anos mais tarde vi aquele filme, li algures que era baseado neste conto. Isto abriu-me um caminho. No final dos anos 90, Harun Farocki fez um documentário chamado DIE BEWERBUNG / A ENTREVISTA. Fiquei tão impressionado que lhe disse que queria escrever um argumento sobre uma rapariga da Alemanha de Leste que quer ir para o típico mundo ocidental. Depois haveria um homem dos sindicatos que lhe ensina como arranjar um emprego. Mas o seu namorado mata-a. Ela não sabe que está morta, vai para o Ocidente trabalhar com aquele homem dos sindicatos, mas morre como no CARNIVAL OF SOULS. Durante o nosso trabalho conjunto no argumento, há oito anos atrás, Harun Farocki percebeu que havia algo de errado na estória. Nós não sabíamos nada acerca do mundo ocidental. O problema não era o Leste, era não saber como funciona o trabalho no capitalismo. O homem do sindicato, a fábrica onde ela queria trabalhar, não me davam nenhum feedback durante a escrita. Era como uma caricatura saída da minha cabeça. Parámos com o projecto e entretanto fizemos outros três ou quatro filmes. Depois, quando o Harun Farocki realizou esse documentário sobre capital de risco – NICHT OHNE RISIKO, percebi que podia ser interessante. Podia ser o outro lado do rio. Retirar estas coisas antigas, substituir o sindicato por estes investidores de risco. É aqui que algo acontece. Estamos a falar de multitude, do fim das nações, da palavra “povo”, e das grandes entidades colectivas, e temos ao mesmo tempo estas figuras à Bonnie & Clyde, que são o que é mais interessante no mundo, o que é novo. Dentro destas coisas novas há também algo de muito mau, de muito brutal. Como no filme, Philipp, o homem sem família, apenas com um carro. É livre, vive em hotéis e não é responsável por nada socialmente. Contudo, é também o homem que traz a morte. A partir desse momento, posso então entender porque vai Yella para o outro lado do rio, para aquela outra vida do capitalismo.
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O filme termina de uma forma estranha. Parece-me que é uma característica da Nova Escola de Berlim essa tendência para explorar os finais abertos para lá do cliché. | Penso que o começo e o final de um filme tem que ser fechado/aberto. Eyes wide shut! Depois do final poderia haver um outro filme de 90 minutos. Na vida passa-se o mesmo. Estamos feridos, o nosso corpo está cheio de cicatrizes da vida. Uma cicatriz é um filme. Uma outra também poderia resultar num filme. O que se passa depois podia também ser interessante, mas já não temos o poder de contar a estória. O filme perdeu esse poder. É do que gosto nos westerns americanos. John Wayne, no final de THE SEARCHERS / A DESAPARECIDA de John Ford, vai-se embora para uma terra de ninguém. A Guerra Civil americana acabou, ele não tem família, está muito sozinho, e é esse o final do filme. Odeio como naqueles filmes de Leste, da Checoslováquia ou assim, se acabava sem mais nada. Pronto, é só isto o fim...
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Coloca de novo a questão dos géneros, do filme negro ou policial, as estórias de crime, no interior dos seus filmes, mas sem fazer disso uma citação inteligente, uma apropriação pós-moderna. É uma herança que quer prolongar?
| É algo que tem que ver com a New Hollywood, a Hollywood pós-clássica que começou em meados dos anos 60. Para mim, com o crime começa o cinema e não há cinema sem crime...
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A girl and a gun...
| Ou a boy and a gun! O crime, mas também o amor. Mostrar pessoas que estão no limite. Pode ser com o crime, ou com questões políticas, mas tem que se chegar a um limiar e trabalhar essa fronteira. Alguém abre a janela, cheira algo que nunca tinha sentido, e fica irritada. É disto que gosto. Outra coisa de que gosto bastante é de pessoas muito cansadas. No cinema americano, os heróis estão tão cansados. Não querem ser heróis. Têm sessenta e oito anos, estão parados num quarto de motel e os assassinos vão entrar por ali adentro. Por isso têm que acordar para a vida por uma última vez. Esta situação trágica e cansada impressionou-me muito quando era jovem. O cinema ainda necessita destas situações limite porque quando se dá um crime discute-se sempre a própria sociedade. Como disse Adorno, pode haver verdade numa sociedade mentirosa? É disso que andam as personagens à procura. Pode haver amor autêntico, emoções, num mundo capitalista global?
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Não havendo um investimento equivalente na psicologia das personagens, encontramos depois nos seus filmes uma espécie de discurso não-explícito, um subtexto sobre as mutações do capitalismo, a tecnologia, as câmaras de vigilância, etc. YELLA é quase exclusivamente sobre isto. Uma estória de fantasmas que é, ao mesmo tempo, a de um país que se converte ao capitalismo.
| Não gosto quando se contam estórias na perspectiva de uma sociedade naturalmente boa, onde depois existem as câmaras de vigilância que são más, ou os maus polícias, e que se presume que quando nos livrarmos deles poderemos voltar a uma espécie de autenticidade. Acho isto estúpido e terrivelmente ingénuo. Não é esse o tema dos meus filmes. Quero que o mundo, onde as personagens e as estórias se desenvolvem, seja um mundo realista, de câmaras de vigilância, de zonas de segurança, cheio de roubos e desfalques e chefes, como em Lisboa, Milão ou Berlim. Como contar a estória deste tipo de mundo? A solidão das pessoas modernas não é do mesmo tipo que a solidão romântica do século XIX. Logo, cada filme tem que desenvolver uma pesquisa sobre essa nova solidão; sobre os novos corpos e como estes se olham nos olhos quando se tentam amar, como se tocam, como falam...
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Neste caso, o capitalismo dos investimentos de risco funciona também como um novo cenário...
| O problema começa quando se tem um acidente de carro e se é culpado, por exemplo. Há um corpo estendido na estrada e não parámos, porque queremos continuar com a nossa vida normal [como no filme WOLFSBURG]. O sentimento de culpa começa a vir até nós e já não existem instituições que nos possam acolher. O novo capitalismo destruiu todas as igrejas e ninguém lá vai. Já não temos casa para onde voltar. Quando não se tem instituições colectivas fica-se por sua conta, como um indivíduo. Como se consegue lidar com estas coisas que estavam cobertas pelas antigas casas? Como se pode voltar para a sociedade, para a segurança? É esta a estória. Era esta também a estória do western ou do film noir, ou da New Hollywood. A New Hollywood é o Vietname, e os americanos, pela primeira vez na vida, são os maus. O cinema fica tão irritado. Quando se vê STAR WARS, que é o fim da New Hollywood, há o mal, mas está lá muito longe, como a força negra. Mas até lá, os filmes estavam muito irritados. Como com a Guerra Civil no western, ou Grande Depressão dos anos 30 no film noir. Os alemães, os judeus, como Peter Lorre e assim, os que fizeram a luz, conseguiram fazer passar os seus receios europeus nesta atmosfera deprimida do país de Rockefeller que o fotógrafo Walker Evans percorreu. Pela primeira vez, a sua própria casa já não era um lar. As crises são o fundamento dos filmes. Na Alemanha não tivemos uma crise tão grande como a Depressão ou a Guerra do Vietname, e Adolf Hitler desvaneceu-se um pouco, mas existem muitas pequenas crises. Há a crise do trabalho, do individualismo e das instituições. Isto tem que ser o estúdio onde se tem que trabalhar, na escrita e na filmagem. São estas as coisas de que falamos, com os produtores ou os actores, na viagem até aos locais de filmagem. Não estamos só a pensar onde colocar a câmara para fazer uma imagem. Essa imagem tem que ser boa porque é parte das coisas que estamos à procura.
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Vê esta sua Trilogia dos Fantasmas, que também inclui DIE INNERE SICHERHEIT/THE STATE I AM IN (2000) e GESPENSTER/GHOSTS (2005), como aparentada a um mal-estar [Unbehagen]?
| Tem novamente que ver com o perder as casas, as instituições, as estruturas colectivas. E o receio de as perder. Com a individualização as pessoas, que não conseguem encontrar grupos nem a energia a eles associada, começam a transformar-se em fantasmas. Fantasmas são as figuras que não têm casa, que não têm realidade à sua volta. Sendo a realidade cada vez menor, eles perdem-na, apesar de lutarem por ela. Creio que é este o trabalho dos fantasmas. Um trabalho aparentado à palavra Unheimlich [a “inquietante estranheza” de Freud], que tem no seu interior a palavra “casa” [Heim]. Está-se num lugar que podia ser a nossa casa, mas já não é. Unheimlich não é algo fora. É o mundo normal que já não responde. Pode ver-se nos filmes. Alguém chega a casa depois do trabalho e está lá a família, as crianças, com a televisão ligada. Olha para aquilo e já não é envolvente, já não é a sua vida normal. Gosto disto. Desde que o cinema existe é sempre esta estória do tornar-se Unheimlich.
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