Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #193 (António Guerreiro): A ideologia da avaliação

A passagem do analógico ao digital invadiu toda a nossa vida quotidiana e verifica-se até em domínios onde o regime de significação não era concebível em termos digitais. É o caso dos ‘estudos’ que estabelecem numericamente o índice de felicidade – e de outras coisas igualmente não quantificáveis – da população de um país. Uma vez quantificada e medida numa escala numérica, a felicidade já não se opõe a infelicidade – uma oposição própria do regime analógico. Em vez destas oposições tão velhas como a metafísica, o que temos é comparações entre vários índices de felicidade, que permitem, por exemplo, dizer que os noruegueses têm um índice de felicidade mais elevada do que os portugueses. Mas se traduzirmos este dado por uma linguagem do tipo “os noruegueses são mais felizes do que os portugueses” sentimos que não estamos a usar a linguagem correta, que há restos de uma metafísica inadequada a insinuar-se na frase, que estamos, implicitamente e sem querer, a ressuscitar a oposição felicidade/infelicidade.  
Quantificação também impossível, mas que ganhou honras e proveitos de ciências rigorosa, é a que estabelece os rankings das universidades, a nível mundial. Neste caso, é uma ideologia da avaliação (a que todos os funcionários estão hoje submetidos) que se faz passar por critério neutro e rigoroso. Como se mede a excelência ou a mediocridade de uma universidade de modo a colocá-la na posição 50 e não na posição 49 ou 51 ou noutra ainda mais desviada? Tal só é possível porque todos os critérios da avaliação se traduzem numericamente. Mas este modo de tradução só funciona de maneira convincente porque nos oculta as suas operações: apenas nos é dado o resultado. E foi assim que a ideologia da avaliação, que estabelece rankings e quantifica índices de felicidade, se tronou a verdadeira teologia do nosso tempo – uma teologia jansenista, de um Deus absconditus.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 26.5.2012.

Ao pé da letra #192 (António Guerreiro): Entrevistas e tagarelice

As entrevistas a escritores, que outrora constituíam um importante material para uso futuro, tornaram-se o género jornalístico mais enfadonho e destituído de interesse: da maior parte das entrevistas não ressalta uma única frase que um arquivo útil deva salvar. O ingresso na categoria de escritor tornou-se uma coisa banal e, por conseguinte, enorme é a possibilidade estatística (acrescentada aos critérios editoriais) de as entrevistas serem uma conversa muito banal e de mera autopromoção. Não há, porém, nenhuma razão para pensar que, em termos absolutos, não existem tantos escritores como antigamente (isto é, uns raros), capazes de, em circunstâncias favoráveis, assegurar uma entrevista suculenta. Mas a principal razão do carácter inócuo da maior parte destas entrevistas não está nesta determinação estatística. É uma questão de ritual. Uma entrevista era uma dádiva a alguém que se preparava para a receber (“O escritor X dá uma entrevista a Y”).  
Ora, a maior parte das entrevistas a escritores que lemos hoje são uma obrigação profissional que ambos cumprem: o escritor é enviado pela editora em tournée (se for um escritor de sucesso internacional) e os jornalistas apanham o escritor na sua tournée, que é feita exclusivamente para isso, segundo os protocolos estabelecidos. Eis uma fórmula comum usada pelas editoras nos seus contactos com os media: “O escritor X está à disposição dos jornalistas, no hotel Y, das tantas às tantas, para entrevistas.” O que daqui resulta são entrevistas em série, de gente entediada, mas tão profissional que, se necessário, dá o que não tem a alguém que não o quer. Nestas circunstâncias, raras são as possibilidades de aparecer um Thomas Bernhard, que olha para o gravador, pergunta ao jornalista se já está a funcionar e, recebendo uma resposta afirmativa, grita alarmado, em italiano, consciente do risco e do jogo: “dramma giocoso!”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 19.5.2012.

Ao pé da letra #191 (António Guerreiro): No reino dos equívocos ortográficos

Na semana passada, cometi a imprudência de usar uma palavra contra a qual o Acordo Ortográfico dispara com uma fúria cega as suas regras de aniquilação e entra em desvario: a palavra ‘panóptico’, que designa uma arquitetura carceral, o panopticon, imaginada no século XVIII por Jeremy Bentham. Quem reviu o texto emendou para ‘pan-ótico’, por analogia com outras palavras formadas com “pan” que levam hífen. Mas o mais importante é a supressão do ‘p’, que parece obrigatória, segundo o AO. Ora, tratando-se de uma palavra que sempre teve um uso culto, nunca conheceu outra pronúncia que não fosse a da “norma culta”. Ou seja, “panóptico”. Mas ninguém, nem sequer quem reviu o texto, tem obrigação – e os meios, porque não se fixou ainda um vocabulário ortográfico comum – de saber tudo aquilo que é necessário para aplicar corretamente uma das muitas exceções que o AO consagra para tentar salvar as suas regras: teria de saber que em todo o espaço da língua portuguesa a palavra se pronuncia com ‘p’ e que, por conseguinte, não há lugar à supressão da consoante, porque ela não é muda (note-se que tal saber impossível também é requerido para o uso das muitas facultatividades).  

Uma amiga brasileira confirmou-me por e-mail: “Nós aqui dizemos e escrevemos ‘panóptico’ como vocês.” Como vocês? Isso era dantes, porque o AO, estúpido como é – de uma estupidez cómico-grotesca –, promove constantemente erros de hipercorreção, sem fornecer meios que os possam evitar. E, hipertélico, acaba por ir além dos seus próprios fins e anulá-los. Sem o ‘p’, a palavra refere-se à audição e não à visão, ou então é usada no campo da química para designar um corante. Não é tudo isto absurdo, próprio de uma terra onde Ubu é rei, ainda por cima quando temos um ministro da Educação e Ciência que, antes de o ser, corroborou famigeradas denúncias de “imposturas intelectuais”?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 12.5.2012.

Ao pé da letra #190 (António Guerreiro): O Estado liberal

No seu curso sobre o nascimento da biopolítica, Michel Foucault afirma que “o panóptico é justamente a fórmula de um governo liberal”. O panóptico, recordemos, é uma arquitetura carceral imaginada pelo filósofo Jeremy Bentham, no século XVIII, que permitia a um só indivíduo, instalado num determinado ponto da estrutura, ter um ângulo de visão total sobre o conjunto das celas dos prisioneiros, sem que estes pudessem perceber que estavam a ser observados. As análises de Foucault são fundamentais para percebermos este aparente paradoxo com que estamos confrontados e do qual passámos a ter uma dolorosa experiência quotidiana: quanto mais o Estado pretende reduzir-se a um regime de frugalidade e intervir o menos possível, mais ele desenvolve os seus panópticos, os seus dispositivos de controlo e vigilância, as suas práticas e tecnologias policiais (em suma, um Estado que suspende o fundamento político e ganha fundamento policial).  

O bom funcionamento do Estado liberal só é conseguido à custa da submissão da sociedade e dos indivíduos a um regime de transparência total, até do que antes pertencia à esfera da vida privada. Deste modo, quando o Estado liberal celebra a “sociedade civil”, ele não está a celebrar o seu exterior, o que lhe permite governar apenas o suficiente, está a celebrar simultaneamente algo que é o seu produto: a sociedade civil é o que é autorizado pelo Estado e que ele pode reivindicar como prova de que funciona de maneira eficaz. Tendo em conta estes paradoxos, não admira que a questão da segurança esteja hoje tão presente no discurso político. Isso mostra bem que o liberalismo político e económico triunfante já não tem a segurança conquistadora que teve no passado: tornou-se louco, cínico, inquieto, reenviando para a verdade nua das suas contradições atuais e da sua perda de sentido.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 5.5.2012.

Ao pé da letra #189 (António Guerreiro): Exercícios de medialogia

Breve e modesto contributo, à maneira flaubertiana, para o medialeto em uso. ADN: sigla que serve para biologizar e essencializar (“está no ADN da nossa empresa...”), o que outrora era exclusivo do pensamento da Direita; Álvaro Santos Pereira: sempre Álvaro; Ativos: tudo o que pode ser convertido em valor económico e financeiro, até o património cultural, que era dito, numa definição clássica, “sem preço”; Balanço: sempre provisório; Bom tempo: sempre sol, sem frio, mesmo que nem uma erva medre; Competitivo: é a virtude das virtudes, em época de darwinismo social e económico, comparada com a qual o espírito olímpico é uma mariquice; Contextualizar: operação jornalístico-didática de alcance filosófico-narrativo que, embora esquecida do que é um texto, não esquece que tudo tem uma causa e uma circunstância; Disparar: versão popular da teoria das catástrofes, designa um efeito súbito e inesperado; nesta aceção o verbo tem um aspeto reflexo: ninguém dispara, as coisas disparam-se;  

Em alta/Em baixa: ao contrário do revisionismo histórico, que revê e usa o passado, o revisionismo das entidades que regulam e quantificam a vida económica e financeira revê o que tinha sido anunciado como futuro; Em linha com: tradução literal de “in line with something”, tem a vantagem de aludir simultaneamente ao imperativo da conformidade e da norma (“comporta-te na linha”) e à potência do online; Empreendedorismo: “ismo” que, à semelhança do futurismo, do dadaísmo, do expressionismo e outros “ismos” designa a única vanguarda do nosso tempo, a vanguarda depois da época das vanguardas; Figura: sempre emblemática; Ícone: o mesmo que “ídolo”, mas com a vantagem (ignorada, aliás, pelos iconófilos falantes) de recuperar um sentido religioso em matéria tão profana; Leitor: sempre voraz e compulsivo, isto é, estúpido como um ogre; Marcelo Rebelo de Sousa: sempre professor.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 28.4.2012.


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