Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Esgotamento do espaço II: Garrel


La cicatrice intérieure (1972) de Philippe Garrel
com Philippe Garrel e Nico


« São, aliás, fascinantes exemplos de uma tendência importante do cinema (tardo-)moderno, senão mesmo de uma das suas condições determinantes: o esgotamento do espaço. No cinema, isto deve entender-se, antes de mais, como a prossecução exaustiva das possibilidades espaciais internas (de que outro exemplo é o fulgurante início de Benilde ou a Virgem-Mãe de Oliveira, com o travelling através do labirinto das construções de madeira no verso do cenário), e só depois como o reconhecimento da sua insuficiência, que será evidente, não apenas com a progressiva concentração na dimensão temporal (e rítmica) nem com o cinema expandido, mas sobretudo com a premonição e criação avant la lettre do espaço electrónico em Back & Fourth e La région centrale de Michael Snow. » - Retroprojecção

Esgotamento do espaço I: Cassavetes

Encadeamentos


« Deste modo compreendemos claramente o que é a Memória. Ela não é, com efeito, mais que um certo encadeamento de ideias envolvendo a natureza das coisas que estão fora do corpo humano, encadeamento que se faz no espírito segundo a ordem e o encadeamento das afecções do corpo humano.
Digo: 1º Que é um encadeamento dessas ideias apenas que envolvem a natureza das coisas que estão fora do corpo humano, mas não das ideias que explicam a natureza dessas mesmas coisas; dado serem na realidade (segundo a proposição 16) ideias das afecções do corpo humano, que envolvem a natureza tanto deste como dos corpos exteriores.
Digo: 2º Que esse encadeamento se faz segundo a ordem e o encadeamento das afecções do corpo humano, afim de o distinguir do encadeamento das ideias que se faz segundo a ordem do entendimento, pelo qual o espírito percebe as coisas nas suas causas primeiras e que é o mesmo em todos os homens.
E deste modo compreendemos claramente porque passa o espírito logo do pensamento de uma coisa ao pensamento de uma outra coisa que não tem nenhuma semelhança com a primeira; assim, por exemplo, do pensamento da palavra pomum, um romano passa logo ao pensamento de um fruto que não tem nenhuma semelhança com este som articulado, e que nada tem de comum com ele, senão o facto do corpo deste homem ter sido muitas vezes afectado por estas duas coisas, ou seja, que este homem ouviu muitas vezes a palavra pomum enquanto via o próprio fruto. E assim cada um passará de um pensamento a um outro segundo tenha o hábito ordenado as imagens das coisas nos corpos de cada um. Com efeito, um soldado, por exemplo, ao ver sobre a areia os traços de um cavalo, passará logo do pensamento do cavalo ao pensamento do cavaleiro, e daí ao pensamento da guerra, etc. Mas um camponês passará do pensamento do cavalo ao pensamento de uma charrua, de um campo, etc.; e assim cada um, segundo se tenha acostumado a juntar e encadear as imagens das coisas de uma forma ou de uma outra, passará de um pensamento a tal ou a tal outro. »

Espinosa, Ética II, Prop. XVIII, Escólio

Os gansos de Sobibor (Os animais #2)




«YEHUDA LERNER: ... (em hebraico)
INTÉRPRETE (traduzindo): ... Teve apenas tempo de me dizer: “Fujam, porque levam-vos a Sobibor para serem queimados”. Foi isto o que consegui perceber.
[...]
YEHUDA LERNER: ...
INTÉRPRETE: De manhã, pudemos finalmente ler o nome do lugar em que nos encontrávamos – Sobibor.
YEHUDA LERNER: ...
INTÉRPRETE: E então percebemos que o polaco tinha dito a verdade. Mas era demasiado tarde. Já não podíamos fugir.

YEHUDA LERNER: ...
INTÉRPRETE: O comboio fazia manobras no interior do campo e o carregamento tinha sido desmantelado. Quando o comboio parou, fizeram-nos sair com gritos de “Raus!”, “Raus!”. Havia imensos alemães e ucranianos em uniformes negros. Todos os prisioneiros de guerra compunham um grupo apenas. Colocaram-nos à parte. Um alemão aproximou-se de nós, dizendo: “Preciso de sessenta homens fortes”. Pensei: em qualquer lado onde é preciso um trabalho de força, há provavelmente o que comer. Alinho. O alemão tinha exigido sessenta homens, saíram cinquenta. Então o alemão pôs-se a gritar: “Ah sim? Não querem trabalhar? Vão voltar rapidamente ao moise[?]”. Não percebemos o que queria dizer. O alemão ainda escolheu ele próprio alguns homens e, quando éramos um grupo de sessenta, levou-nos e colocou-nos à parte.

Nesse momento, ouvimos que o resto do carregamento era levado e que gritos e urros começavam a ouvir-se. E gritos de gansos, mesmo de gansos. Durou mais ou menos uma hora. E, de repente, o silêncio.

Disseram-nos depois que os alemães tinham um bando de várias centenas de gansos. E, no momento em que os levavam e os judeus começavam a gritar, os alemães provavelmente faziam os gansos correr em todas as direcções, de modo a que os gansos se pusessem a gritar também, e que o grito dos gansos cobrisse o grito dos homens.

CLAUDE LANZMANN: É certamente verdade, dado que os polacos contam o mesmo de Sobibor e de Treblinka também. Que os judeus gritavam como gansos quando eram gaseados.
YEHUDA LERNER: ...
INTÉRPRETE: Era de tal forma verdade que eram mesmo verdadeiros gansos. Eram mesmo bandos de gansos criados especialmente para poder cobrir os gritos dos homens no momento em que estes gritavam.
YEHUDA LERNER: ...
INTÉRPRETE: A razão era que, como levavam vários milhares de pessoas de cada vez, os alemães queriam evitar... Os carregamentos eram compostos por milhares de pessoas, então os alemães queriam evitar que as pessoas que se encontravam no fim do carregamento ouvissem os gritos daqueles que estavam no início do carregamento.

CLAUDE LANZMANN: Ele ouviu esses gritos de gansos e depois o silêncio. É isso?
INTÉRPRETE: ...
YOSHUA LERNER: ...
INTÉRPRETE: Quando se fez silêncio (...)»


[Sobre este filme, conferir o texto de Bruno Duarte: «Elegia política e tempo trágico», Intervalo 2, Lisboa, 2006.]


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