Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #75 (António Guerreiro)
«Sobre os balanços como sintoma de doença histórica
Chegou o fim do ano e, com ele, os balanços, as listas do que, nas diversas áreas, se entende que precisa de ser salvo. O essencial é dar a impressão de que o balanço é feito num observatório de onde se tem uma visão soberana e sem falhas sobre tudo o que se passou. Estas recensões dos ‘acontecimentos’ anuais correspondem a um modo de escandir o tempo que só produz passado. A medida começou por ser o século, foi depois a época, fixou-se a seguir na década e tornou-se há pouco tempo anual. Para esta nova forma de “doença histórica” (se não é exagerada a convocação nietzschiana), a novidade já foi depositada nos arquivos e jaz inerte em listas de glórias com as quais no preparamos para entrar num novo ano que, tal como o anterior, não podemos falhar.

E assim nos entregamos a uma forma perfeita de niilismo, para a qual já não existe tempo de experiência mas apenas o tempo imediatamente revogável das novidades. O artista americano Robert Rauschenbeng reivindicou “mais tempo e menos história”. Ele tinha percebido que, nesta sucessão cada vez mais veloz de fins e recomeços, o que resta são cronologias.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 19.12.2009; cf. «Ao pé da letra», #31.

Raros filmes de Dezembro (actualização)


Two lane blacktop
Monte Hellman

1971, 102’
4ª, dia 2, 19h30
Cinemateca*, Lisboa



O movimento das coisas
Manuela Serra

1985, 90’, 16mm, cor
Filmes esquecidos
6ª, dia 4, 18h30 – Sociedade
Portuguesa de Autores, Lisboa


The birds
Alfred Hitchcock
1963, 120’
Sáb, dia 5, 15h30 – Cinemateca


O cinema falado
Caetano Veloso
1986, 110’
Sáb, dia 5, 19h – Cinemateca
com a presença de Caetano Veloso
e Antonio Cicero


An affair to remember
Leo McCarey
1957, 119’
5ª, dia 10, 15h30 – Cinemateca


Parsifal
Hans-Jurgen Syberberg
1982, 255’
Filmes de João Bénard da Costa
5ª, dia 17, 21h30 – Cinemateca
cf. «A confissão»* (Michel Chion)


No skin of my ass
Bruce LaBruce
1991, 73’
20 Anos Medeia Filmes:
Noites brancas
6ª, dia 18(19), 1h30
King 3, Lisboa


Les nuits de la pleine lune
Eric Rohmer
1984, 102’
20 Anos Medeia Filmes
Sáb, dia 19, 12h15 – King 3



The territory
Raúl Ruiz
1981, 100’
20 Anos Medeia Filmes:
Homenagem Joaquim Pinto
Sáb, dia 19, 23h30 – King 1


Le rayon vert
Eric Rohmer
1986, 98’
20 Anos Medeia Filmes
Dom, dia 20, 12h – King 3
cf. «A doce Delphine. Fragilidade e
obstinação»* (Susana Duarte)


[apenas filmes vistos, sem repetições, em suportes originais]

Clássico ≠ moderno











[caixa de comentários: 
Anónimo disse...

¿?
Miguel Marías

André Dias disse...

A resposta mais sucinta, dada por um amigo meu, seria: "bande à part" :)
Seria fastidioso, embora enobrecedor, elaborar teoricamente como esta intuição simples (que se formou na minha cabeça ao rever recentemente AN AFFAIR TO REMEMBER, imediatamente comparada a estes planos de DALLA NUBE... que há muito me obcecam), poderia ser justificada. Podia dizer que, se não se vê nas imagens, de nada serve explicar. Creio, no entanto, que posso adiantar, sem me comprometer demasiado, que tem que ver com a ideia de um espaço "inclusivo", que acaba por devolver todo o "exterior", por oposição a um que exclui, que deixa de fora ou que "mostra" a exclusão em si, que engole, portanto, deixando buracos à mostra. Neste sentido, o primeiro plano de AN AFFAIR... seria o contraponto clássico dos de DALLA NUBE... 
Que seja abusiva a extensão disto a todo o cinema "clássico" e "moderno", concedo bem. Que não seja novidade, também. Mas que prazer nestas intuições ao ver um filme! :)

Anónimo disse...

Mis interrogantes siguen en pie, dirigidos a mí mismo. Me pregunto, por ejemplo:¿Tienen algo que ver estos dos films, separados en el espacio y en el tiempo, en los respectivos carácteres de sus autores, y esas escenas en concreto? Creo que hay alguna escena de Straub (por ejemplo, en "Nicht versöhnt") que tiene más que ver con esa de "An Affair to Remember". ¿Es (o sería) más interesante (o revelador) lo que los distingue o lo que pueda hacer que haya también entre ellos un cierto parecido, de haberlo?
¿Es tan seguro que el más reciente es moderno y que es "clásico" el más viejo? Yo cada vez lo veo menos claro, ya que las películas que encuentro más "actuales" entre las que veo son más a menudo antiguas (muy antiguas, mudas, incluso de 1912) que recién hechas. Y, al ser a la vez muy antiguas y ser todavía actuales, serían "clásicas" sin proponérselo, o incluso aspirando a lo contrario ("À bout de souffle" o "Pierrot le fou" son hoy tan clásicas como "Le Mépris"). 
Miguel Marías

André Dias disse...

Não sei dizer se os filmes têm algo que ver. Nem estou certo que seja algo que nos deva preocupar. Sei que estas cenas têm algo que as liga, algo que se aproxima mas não se limita ao "formal". Disso estou seguro, embora possa não conseguir exprimi-lo adequadamente. Tratam porventura da própria natureza do diálogo, e fazem-no de formas diferentes, quase opostas. Na primeira cena de AN AFFAIR TO REMEMBER encontramos um diálogo que se procura ocultar em público; correspondentemente, o quadro aparece cortado ao meio, por um elemento do cenário, com as personagem de costas uma para a outra, cada uma do seu lado dessa divisão; o falhanço dessa ocultação é posto em evidência pela inclusão do contra-campo. No fundo, o diálogo que não se pode ter é mostrado duas vezes. A segunda cena é igualmente um diálogo a disfarçar, e novamente a inclusão em plano aberto do espaço que mediava os planos fechados vem exibir esse falhanço circunstancial. Ora, pelo contrário, parece-me que nos planos de DALLA NUBE... as personagens de um diálogo possível são atiradas excentricamente para a margem do quadro que, no entanto, é a que as aproxima; mostra-se assim, talvez, tudo o que fica de fora em cada diálogo. A impossibilidade aqui é intrínseca ao diálogo, e não uma condição externa que urge incluir como conciliação (cómica). Parecem-me, por assim dizer, "visões" diferentes do que é um diálogo. São estas ligações suficientes para satisfazer um "ter que ver"? Não sei :)

Quanto à pantanosa dicotomia - a meu ver útil - entre cinema clássico e moderno, concordo em absoluto que ela não pode corresponder à atribuição de 
actualidade a um ou outro lado da barricada. Simplesmente, serão modos diversos de ser actual, ou melhor, de ser inactual, intempestivo, contra o seu (mais ainda, o nosso) tempo. Aliás, o cinema dito contemporâneo terá certamente a sua própria actualidade, que não corresponderá em modo à do clássico nem à do moderno (que sobrevivem), e cuja singularidade está por encontrar. Não será essa hoje uma das tarefas do crítico?

]

Ao pé da letra #74 (António Guerreiro)
«Sobre o espaço público e os seus limites na era da Net
O provedor dos leitores do Público assinalava, na semana passada, a “situação insólita” do texto de um colaborador que foi publicado primeiro num blogue e depois no jornal impresso, como se fosse inédito. Em boa verdade, esta duplicação não tem nada de insólito. É, antes, a manifestação eloquente de uma regra de proliferação. Uma das grandes esperanças depositadas na Net foi uma maior abertura daquilo a que se chama o “espaço público”. São hoje evidentes as transformações na estrutura dessa entidade que tinha um lugar central no projecto das Luzes.

Mas também é evidente que, por agora, a Net, no que diz respeito a essa abertura, não só está muito aquém do que se esperava (nalguns sentidos, houve mesmo fechamento) como veio hipostasiar as características do actual espaço público mediático, elevando-o a níveis nauseabundos de obesidade, redundância e hipertelia. Muito pouco daquilo que desapareceu dos jornais voltou a reaparecer na Net, muito pouco do que foi condenado à exclusão encontrou aí alojamento, apesar da disponibilidade infinita de espaço; em contrapartida, cresceu a opinião ruidosa e tagarela, triunfou a conversa caseira e de café.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 12.12.2009.

Ao pé da letra #73 (António Guerreiro)
«Sobre o tom apocalíptico e modos de pensar
Adoptando o tom apocalíptico outrora usado na filosofia e na crítica da cultura, alguns comentadores políticos falam de um país – Portugal – à beira da catástrofe. Nesse discurso, nada que não esteja à altura do fim e da situação-limite lhes interessa. A isto chamou o filósofo alemão Karl Löwith um “modo de pensar por catástrofes”. Este discurso, de raiz profundamente conservadora, tem um carácter cíclico mas tende a esquecer-se de que a sua lei é a do eterno retorno. Por outro lado, ele está tão arreigado à convicção de que há épocas de decadência que nem por um momento lhe ocorre que a verdadeira catástrofe pode ser o facto de as coisas continuarem como sempre foram.

No fundo, esta previsão apocalíptica corresponde a um mal que Ulrich, a personagem criada por Musil em O Homem sem Qualidades compreendeu muito bem. Ulrich percebeu que a época em que vive, dotada de um saber imenso que nenhuma outra época tivera antes, parece ser incapaz de intervir no curso da história. Ulrich remete para um mundo em que já não há acontecimentos mas apenas notícias, o que significa que o homem deixou de ter o poder de nele intervir.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual5.12.2009.

Ao pé da letra #72 (António Guerreiro)
«Sobre a linguagem opaca do corpo judicial
Nas parábolas de Kafka, a máquina infernal que arrasta as personagens para situações sem saída tem a forma de uma linguagem indecifrável ou causadora de equívocos. Exemplo supremo é a personagem que fica até ao fim da vida à porta da lei, por ignorar que, afinal, ela está aberta. Agora que estamos submetidos diariamente ao discurso jurídico, podemos verificar que ele consiste em criar opacidade nas palavras, de tal modo que todos os problemas passam a ser de linguagem. Todos temos a sensação de que juízes, procuradores, delegados se obstinam a falar com as mesmas palavras, no interior das quais se encerraram para sempre. 

Não se trata de uma linguagem, como a da ciência ou a da filosofia, codificada por necessidade de rigor conceptual. Na ciência, esse rigor serve para evitar os equívocos, para não dizer com as palavras uma coisa diferente daquilo que se pretende. Mas nesta linguagem jurídica que nos envolve acontece precisamente o contrário: as palavras cristalizam-se, tornam-se corpos sem vida, e o que passou a ter significado é o acto de as proferir. Assim, aquilo que se apresenta como a razão jurídica é afinal a performance de um corpo monstruoso: o corpo judicial.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 28.11.2009.

Ao pé da letra #71 (António Guerreiro)
«Sobre manobras editoriais e cauções impudentes
Quem quiser ler “A Consciência de Zeno” de Italo Svevo – um dos grandes romances do séc. XX –, tem à sua disposição uma edição portuguesa saída recentemente (Dom Quixote). O leitor que não gosta de ser tratado como um menor sob tutela não deixará de se irritar com o facto de o livro lhe chegar por via da “Biblioteca Lobo Antunes”, como se lê na capa, em letras pouco discretas. Pode parecer inócuo, ou apenas provinciano, mas editar Svevo com a ostensiva caução de um escritor contemporâneo é ridículo e faz com o que livro se apresente como uma traficância.

Mas, transposta esta porta onde não deveria figurar  senão o nome do autor, coisas muito mais terríveis nos esperam: uma tradução infame que atraiçoa o texto original em cada página ou mesmo em cada frase, além de suprimir os títulos dos capítulos. Trata-se da reedição de uma tradução já antiga, apenas submetida “a uma mera actualização ortográfica” (adverte o editor como quem nos assegura que não nos está a privar de uma obra genial de tradução). Terá sido nesta tradução que Lobo Antunes leu o romance de Svevo? Ou leu-o no original e aconselha esta edição à ralé?»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 21.11.2009.

Ao pé da letra #70 (António Guerreiro)
«Sobre a vida dos livros que não precisam de ser lidos
Restabelecida a acalmia, depois da tempestade de comentários, opiniões e declarações provocados por um romance pícaro feito de matéria narrativa do Antigo Testamento (“Caim”, de seu título), podemos agora retirar algumas conclusões: 1) um livro pode tornar-se polémico mesmo antes de ser lido; 2) a condição para que um livro tenha uma existência alargada no espaço público é o facto de não precisar de ser lido para se falar nele, porque o importante é aquilo que o parasita: a pessoa do autor, as circunstâncias em que é escrito; a matéria temática que o envolve;

3) os autores dos livros que não precisam de ser lidos concorrem zelosamente para que eles tenham uma vida precária que não implica a leitura, confirmando o que sabemos desde Flaubert mas é hoje de uma enorme evidência: é preciso salvar os livros de quem os escreve; 4) um livro torna-se publicamente ‘interessante’ e poderoso na medida em que consegue curto-circuitar a leitura e a crítica, sendo a sua vida gloriosa assegurada por rumor; 5) os autores dos livros que têm uma existência ostensiva mas não precisam de ser lidos têm cada vez menos autonomia relativamente aos mecanismos da indústria editorial.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 14.11.2009.

Ao pé da letra #69 (António Guerreiro)
«Sobre roubos da linguagem e os seus efeitos
Pensar é inventar conceitos; restituir o rigor das palavras; retirar-lhes as cristalizações ideológicas e do senso comum e obrigá-las a abrir horizontes. Consideremos este exemplo: numa entrevista recente, o filósofo Boris Groys fazia o louvor da ‘estagnação’ como factor que tornava possível arranjar espaço seguro para reflectir e sonhar. Deste ponto de vista, o que é negativo é a ideologia do desenvolvimento e a corrida imparável a que ela obriga; a carástrofe não é a estagnação, mas que o mundo siga o seu curso. Hoje, hoje já não é preciso uma filosofia da história, como a do positivismo do século XIX, para acreditar que a estagnação é um mal. Bastam as leis da economia que nos regem.

E, no entanto, esta lógica implacável afigura-se um desastre de que todos estamos conscienters mas ninguém sabe como suspender. A operação salvífica tem de ser semântica e consistir numa restituição da linguagem de que fomos espoliados: a ‘crise’ deve ser resgatada do território da economia, onde se alojou quase em exclusivo, e ‘estagnação’, como mostra Boris Groys, pode ser a condição a que aspiramos. Mas, para isso, precisamos de reconquistar a palavra a quem a roubou.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 7.11.2009.

Raros filmes de Novembro


A comédia de Deus
João César Monteiro

1995, 165’
Cinematografia – teatralidade
(prog. Pierre-Marie Goulet, Teresa
Garcia e Ricardo Matos Cabo)
Festival Temps d'Images
4ª, dia 4, 22h
Cinemateca*, Lisboa
com a presença de Margarida Gil,
Adolfo Arrieta e Pierre Léon


La chienne
Jean Renoir

1931, 100’
Cinematografia – teatralidade
5ª, dia 5, 19h30 – Cinemateca
com a presença de Cyril Neyrat


Day of the outlaw
André de Toth
1959, 92’
Cinematografia – teatralidade
6ª, dia 6, 19h30 – Cinemateca
com a presença de Pierre Léon


El ángel exterminador
Luís Buñuel
1962, 95’
Cinematografia – teatralidade
6ª, dia 6, 22h –
Cinemateca
com a presença de Jean Breschand,
Regina Guimarães e Saguenail


Videodrome
David Cronenberg
1983, 87’
Homenagem David Cronenberg
Estoril 2009*

Sáb, dia 7 (8), 00h30
Casino Estoril
Encontro com David Cronenberg
3ª, dia 10, 21h30
Centro de Congressos, Estoril


Lola Montès
Max Ophüls
1955, 110’, cópia restaurada
O cinema e a sua história
Estoril 2009

2ª, dia 9, 12h30
Centro de Congressos, Estoril


The life of Juanita Castro
Andy Warhol
1965, 65’
Cinematografia – teatralidade
2ª, dia 9, 22h – Cinemateca
com a presença de Luís Miguel Oliveira


Rabid
David Cronenberg
1976, 91’
Homenagem David Cronenberg
2ª, dia 9, 23h15 – Casino Estoril
Marilyn Chambers e o porno
dos anos 70
4ª, dia 25, 19h – Cinemateca


Le roi de l'évasion
Alain Guiraudie
2009, 99’
Estoril 2009
4ª, dia 11, 17h30
5ª, dia 12, 21h45
Centro de Congressos, Estoril


Berlin Express
Jacques Tourneur
1948, 86’
4ª, dia 11, 19h – Cinemateca


Die linkshändige Frau /
A mulher canhota
Peter Handke
1978, 119’
Estoril 2009
4ª, dia 11, 19h30
Centro de Congressos, Estoril
seguido de encontro com Peter Handke


To be or not to be
Ernst Lubitsch

1942, 99’
Cinematografia – teatralidade
4ª, dia 11, 19h30 – Cinemateca

Opening night
John Cassavetes

1977, 140’
Cinematografia – teatralidade
4ª, dia 11, 21h30 – Cinemateca


Shivers
David Cronenberg
1975, 87’
Homenagem David Cronenberg
4ª, dia 11 (12), 00h15
Casino Estoril


El sol del membrillo
Victor Erice
1992, 133’
Cineastas raros
Estoril 2009
6ª, dia 13
, 12h
Centro de Congressos, Estoril


Louis Lumière
Eric Rohmer
1966, 66’
4ª, dia 18, 22h – Cinemateca


Ukigusa / Ervas flutuantes
Yasujiro Ozu
1959, 110’
Sáb, dia 21, 21h30 – Cinemateca


Cría cuervos
Carlos Saura
1975, 110’
História permanente do cinema
Sáb, dia 28, 15h30 – Cinemateca


[apenas filmes vistos, sem repetições, em suportes originais]

«Se podemos pensar nisto como uma superação da teoria filosófica, gostaria de salientar que o modo de superar a teoria correctamente, filosoficamente, é deixar o objecto ou a obra que nos interessa ensinar-nos como a tomar em consideração. [...] Os filósofos assumem naturalmente que é uma coisa, bem clara agora, deixar uma obra filosófica ensinar-nos como a tomar em consideração, e outra coisa, e bem obscuro o como e o porquê, deixar um filme ensinar-nos isso. Acredito que não são coisas assim tão diferentes.»
«If one may think of this as an overcoming of philosophical theory, I should like to stress that the way to overcome theory correctly, philosophically, is to let the object or the work of your interest teach you how to consider it. [...] Philosophers will naturally assume that it is one thing, and quite clear now, to let a philosophical work teach you how to consider it, and another thing, and quite obscure how or why, to let a film teach you this. I believe these are not such different things.»

Stanley Cavell, «Words for a conversation», Pursuits of Happiness. The Hollywood Comedy of Remarriage, Harvard UP, Cambridge MA, 1981, pp. 10-11.

Ao pé da letra #68 (António Guerreiro)
«Sobre as virtudes do analfabetismo primário
Num texto intitulado “A Morte da Literatura”, M. S. Lourenço refere-se a uma distinção entre analfabetismo primário e secundário, feita por Hans Magnus Enzensberger. Foi num texto de 1985 que o poeta e ensaísta alemão estabeleceu a distinção entre as duas categorias de analfabetos, definindo o analfabeto secundário como o produto de uma nova fase da industrialização. Este tipo de analfabeto sabe ler e escrever e, diz Enzensberger, é ele o alvo privilegiado dos “meios de produção de imbecilidade” (meios impressos e audiovisuais).

Verificando que se deu, no nosso tempo, o triunfo do analfabetismo secundário e que os meios de comunicação estão maioritariamente programados à sua medida, Enzensberger faz o elogio do analfabetismo primário e acaba o texto atribuindo-lhe um papel essencial na sobrevivência da literatura, já que esta exige obstinação e memória, isto é, “as qualidades do verdadeiro analfabeto: talvez seja ele a ter a última palavra, já que não tem necessidade de outros ‘media’ que não sejam a boca e o ouvido”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 31.10.2009.

Ditos de esquerda (Pedro Costa)

«Decorria também uma revolução política em Portugal na mesma altura, pela qual acabou a ditadura fascista, e as ruas estavam cheias de anarquistas, comunistas e socialistas, por isso dos treze aos vinte e dois anos eu tive tudo, a música, o cinema, a política, tudo ao mesmo tempo. O que isto me fez perceber foi que John Ford era cem vezes mais progressista e comunista do que os documentários ditos de esquerda, que diziam coisas como “o cinema é uma arma” e “mudar o mundo”. Eram Ozu, Mizoguchi e Ford que estavam na verdade a dizer isso, tínhamos era de ter a paciência para o ver.»
«There was also a political revolution in Portugal at the same time, where the fascist dictatorship ended and the streets were full of anarchists, communists, and socialists, so from the ages of 13 to 22 I had everything, the music, the cinema, the politics, all at the same time. What this made me see was that John Ford was a hundred thousand times more progressive and communist than so-called left wing documentaries saying things like “film is a gun”, and “change the world”. It was Ozu, Mizoguchi and Ford that were saying that really, you just had to be patient to see it.»

Pedro Costa, citado por Bruno Andrade n'O signo do dragão, entrevistado por James Mansfield em Little White Lies.

[Conferir «O 25 de Abril, segundo Pedro Costa», «Outro final para o 25 de Abril», e «Sobre o involutarismo de esquerda».]

Ao pé da letra #67 (António Guerreiro)

«Sobre uma nova categoria mediática: a dos politólogos

Quem lê os jornais e vê os debates políticos na televisão já deve ter dado pelo aparecimento de uma nova categoria que, até há pouco, estava confinada aos departamentos de ciências políticas e sociais: os politólogos. Um politólogo, quando passa para os media, tem de renunciar à sua ciência e funcionar como um simples comentador que vai dizer o que ‘acha’. Por exemplo: o que acha das relações entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. E assim as televisões e os jornais desviaram uma ciência para uso interno e efeitos de autolegitimação, desfigurando-a completamente, fazendo-nos acreditar que a tarefa dos politólogos é emitirem oráculos ou produzirem um discurso sobre o lado mais contingente da vida política.

É certo que os próprios – quase todos com obra científica respeitável –, cedendo ao pragmatismo, se têm prestado ao jogo. Mas o efeito é perverso, por uma espécie de lei da reversibilidade: os politólogos ocupam o lugar dos comentadores e opinadores, mas estes, por sua vez, adquirem um estatuto de politólogos. Se a ciência é opinião, então a opinião também é ciência. Neste jogo, quem perde sempre é a ciência.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 24.10.2009.

Ao pé da letra #66 (António Guerreiro)

«Sobre a condição de não-ganhador do Nobel

Todos os anos, algumas semanas antes da decisão da Academia Sueca, surgem listas de potenciais vencedores do Prémio Nobel da Literatura e fazem-se vaticínios e apostas. Surgiu assim uma nova categoria de escritores, que são os que não-ganharam o Nobel. Quem consegue manter-se durante alguns anos nessa condição de não-ganhador acumula um capital simbólico superior aos que ganham. Não-ganhar o Nobel torna-se uma distinção, um silêncio carregado de sinais canonizadores ou até uma prova de superioridade. Os não-ganhadores do Prémio Nobel servem de arma de arremesso contra os que ganham, reserva de grandiosidade que não cabe num prémio.

No fundo, a figura do Grande Escritor, tal como Musil a concebeu, é a do que não-ganhou e ficou a pairar nese limbo glorioso, mais alto do que todas as honrarias formais. Os que ganham têm um ano de vigência, findo o qual são subtituídos e remetidos novamente para o mundo profano; os que não-ganham governam durante anos e anos e adquirem uma soberania quase imperial. No reino das letras, são vistos como a verdadeira aristocracia, neste admirável sistema de classes que introduz um suplemento de glamour na sóbria república das letras.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 17.10.2009.

Ao pé da letra #65 (António Guerreiro)

«Acerca das profecias que se auto-realizam

Agastado pelas abundantes citações que os jornais fizeram de uma nota no seu blogue sobre o silêncio do Presidente, Pacheco Pereira escreveu a seguir sobre a “operação Diário de Notícias”, terminado com uma predição: “Sempre quero ver se esta nota é citada.”. Cumpriu-se a profecia formulada de modo dubitativo, e a nota nunca foi citada. Pacheco Pereira tinha razão? Sim, na medida em que a sua profecia trazia, em si mesma, a razão que a confirma. Ela é necessariamente verdadeira porque tem o efeito de realizar o que enuncia. E alguém que viesse a citar a nota cairia fatalmente na armadilha que ela constrói: a sua citação teria sempre o sentido de um acto cometido para falsear o que é verdade desde o início, como aquelas cartas dos leitores que começam por dizer: “Estou seguro de que o jornal não terá a coragem de publicar esta minha carta.”

Trata-se, no enunciado profético de Pacheco Pereira, daquilo a que um sociólogo americano chamou “self-fulfilling prophecy”, da profecia que se auto-realiza. A estrutura deste tipo de profecia é comum a dois tipos de discurso: o discurso do paranóico e o discurso dos totalitarismos políticos.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 9.10.2009.

Ao pé da letra #64 (António Guerreiro)

«Os livros portugueses são feitos para a guerra

Uma fisiognomonia materialista dos livros produzidos actualmente em Portugal teria de proceder como quem faz a análise das manifestações superficiais de uma época para a tornar inteligível e verificar este detalhe: os livros portugueses são maiores – bem maiores – do que os livros ingleses, franceses, italianos, alemães... Têm menos espessura, mas ocupam uma maior superfície. O segredo desta particularidade (que abdicou das preocupações com a elegância) reside precisamente aí: na faculdade de conquistar espaço, de ter, por meio da pura e simples presença, uma estratégia de ocupação das livrarias e de expulsão dos seus rivais (porque a luta pelo espaço é desesperada e ganhou a feição de uma guerra civil).

O facto económico do fetichismo da mercadoria, que Lukács retraduziu em linguagem filosófica aplicando a categoria da reificação, encontra aqui matéria para uma revisão: Marx, na secção sobre o fetichismo, estava tão fascinado com a alma da mercadoria, com as suas “argúcias teológicas” e “subtilezas metafísicas”, que se esqueceu do que os nossos editores descobriram com júbilo guerreiro: o corpo da mercadoria.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 2.10.2009.

Raros filmes de Outubro


La région centrale
Michael Snow

1971, 180’
Contar o tempo*
(prog. Ricardo Matos Cabo)
4ª, dia 7, 22h
Cinemateca*, Lisboa
cf. Shooting down pictures*


Fat city
John Huston

1972, 100’
3ª, dia 13, 19h,
5ª, dia 15, 22h – Cinemateca


Tutuguri – Tarahumaras 79
Raymonde Carasco e
Régis Hébraud

1980, 25’, cor
Contar o tempo
3ª, dia 13, 19h30 – Cinemateca


Mon oncle d'Amérique
Alain Resnais
1980, 125’
6ª, dia 16, 15h30 – Cinemateca


Lost, lost, lost
Jonas Mekas
1976, 178’
Retrospectiva Jonas Mekas
DocLisboa 2009*

Sáb, dia 17, 11h
Culturgest, Lisboa
 

Programa Lumière
1895-1900, 85’
História permanente do cinema
(prog. Antonio Rodrigues)

Sáb, dia 17, 19h – Cinemateca
 

Trouble in Paradise
Ernst Lubitsch
1931, 80’
História permanente do cinema
Sáb, dia 17, 22h – Cinemateca


California Company Town
Lee Anne Schmitt
2008, 76’
Riscos 
(prog. Augusto M. Seabra)
DocLisboa 2009 

Sáb, dia 17, 22h30 – Culturgest
 

Cocorico! Monsieur Poulet
Jean Rouch
1974, 90’
Eram os anos 70
(prog. Antonio Rodrigues)
2ª, dia 19, 19h30 – Cinemateca


Poussières d'amour
Werner Schroeter
1996, 130’
DocLisboa 2009
3ª, dia 20, 19h
Sáb, dia 24, 21h
São Jorge 3, Lisboa


Die Nordkalotte / A calota polar
Peter Nestler
1991, 90’
Contar o tempo
3ª, dia 20, 19h30 – Cinemateca


Shirin
Abbas Kiarostami
2008, 92’
Riscos
DocLisboa 2009
3ª, dia 20, 20h30 – Londres 1, Lisboa


Sem nen kizami no hidokei:
Naginomura monogatari
/
A aldeia de Magino: um conto
Shinsuke Ogawa
1986, 222’
Contar o tempo
4ª, dia 21, 22h – Cinemateca


Material
Thomas Heise

1988-2009, 164’
DocLisboa 2009
6ª, dia 23, 16h15 – Culturgest


Les voitures d'eau
Pierre Perrault

1969, 110’
Contar o tempo
6ª, dia 23, 19h30 – Cinemateca


Les glaneurs et la glaneuse
Agnès Varda

2002, 62’
5ª, dia 29, 19h – Cinemateca


Les antiquités de Rome
Jean-Claude Rousseau

1989, 105’
Contar o tempo
6ª, dia 30, 22h – Cinemateca


Husbands
John Cassavetes

1970, 154’ (versão longa)
História permanente do cinema
Sáb, dia 31, 21h30 – Cinemateca


[apenas filmes vistos, sem repetições, em formatos originais]


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