Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Cena primitiva 1

"Há uma história que eu conto muitas vezes, e lá vou eu repetir, mas paciência, o comentário que me fez compreender não o cinema, mas o sítio onde eu me colocava no cinema – e eu já o sabia muito bem mas não tinha compreendido – é um comentário de Rivette. Já lhe devia ter contado esta história porque para mim ela é a base de tudo, foi perante um filme de Pontecorvo, Kapo, que é um filme sobre os campos de concentração feito em 61.
Pontecorvo era um cineasta de esquerda, italiano, mau cineasta mas um homem impecável, contra a guerra da Argélia e isso tudo, mas um mau cineasta. E Rivette escreve uma crítica extraordinária – Rivette tinha trinta anos na altura e eu devia ter quinze ou dezasseis – ele conta o fim do filme e diz a propósito de Emmanuelle Riva que morre – eu nunca vi o filme, mas é como se o tivesse visto, havia além do mais uma imagem, bom, vimo-la em tantos filmes esse cliché visual, que é como se o tivesse visto – portanto ela morre e a câmara reenquadra o seu rosto para que ele se inscreva bem no alto do ecrã e o plano seja mais equilibrado, mas ela é kapo num campo de concentração e está de pijama às riscas e é sem dúvida um pouco gorda de mais para o papel, é isso.
E Rivette diz: o homem que naquele momento preciso, no momento em que ela morre, faz um travelling para a frente para que o enquadramento fique mais bonito, merece o desprezo mais profundo. É Rivette quem escreve isto, como só Rivette pode escrever, muito jansenista, e eu lembro-me, eu disse: claro, claro, tem razão, isto não se faz, para mim é o crime absoluto, são verdadeiramente os interesses dos cinéfilos que enlouqueceram, é o crime absoluto uma pessoa fazer isto.
Durante anos esqueci-me disto, de tal forma me parecia ser a evidência absoluta. E depois a ideia de que o assunto não estava resolvido voltou-me ao espírito quando vi certos cineastas fazerem esse travelling de Kapo sem que as pessoas se insurgissem, e portanto disse para mim próprio: esta agora, deves ser tu que és demasiado moralista sobre o assunto, que não toleras uma coisa destas, que talvez te sintas mesmo pessoalmente bloqueado com isto, com essa cena primitiva. Para mim é talvez a minha cena primitiva, uma coisa que se passa nos campos de concentração, e para muita gente da minha geração, sem dúvida, mesmo que não tenham consciência disso, mas depois disso não sei, as gerações mais jovens, não se sabe."
Serge Daney, Itinerário de um cine-filho (conversa com Regis Debray)

por Joana

A ruína de um sorriso


U samogo sinyego morya/À beira do mar azul (1936) - Boris Barnet

« No debate quase obsceno que desde há alguns anos compara os mortos do goulag e os dos campos, quando basta ver que as três primeiras letras de Lager são as três últimas de Gulag, e em que se discute apenas frase a frase, eu proponho pegar num filme soviético da grande época e num filme de actualidades alemão, e vemos então que os sorrisos dos jovens incorporados na Rússia e na Alemanha eram diferentes. O sorriso russo era muito diferente do sorriso alemão. Nas raparigas, é incrível como isso se nota. Não é a mesma coisa. E nos mortos, é igual. Fazendo-o, estaríamos a fazer um trabalho no terreno, no terreno do entendimento e da compreensão, não estaríamos apenas no dizer.
(...)
Cada pensamento devia lembrar a ruína de um sorriso. »

Projecções em fundo


Hitler, Ein Film aus Deutschland (1977) 420' - Hans Jürgen Syberberg

No demorado filme de Syberberg, foi particularmente proveitosa a revisão duma também ela muito demorada cena em que o criado de quarto de Hitler relata minuciosamente os infinitos detalhes do comezinho quotidiano deste. Ficamos a saber, para nosso desespero, o que comia ao pequeno-almoço, ao almoço, ao lanche e ao jantar, de que modo dava os bons-dias, quando os dava, de que tipo de roupinhas gostava, que casacos levava em viagem, o seu imenso apego a umas botinhas, como tratava o próprio criado de quarto, que filmes via e quando os via, etc., etc., etc. Enfim, todo o terror de um quotidiano, como os demais, a esta escala, insuportável. Esta cena, que deve demorar pelo menos meia hora, é extremamente eficaz, por (auto-)destruir por exaustão as tentações de personalização na figura de Adolf Hitler. (Veja-se, neste aspecto, por oposição, o absolutamente insuportável Moloch desse sobrevalorizado Sokurov, cineasta gorduroso por excelência, com o histrionismo, ele sim abjecto, das figuras de Adolf Hitler e Eva Braun.)
Mas esta cena de Hitler, Ein Film aus Deutschland, não sendo nisso única do filme, processa-se sobre o fundo de múltiplos cenários da vida quotidiana de Hitler, na verdade, evidentes projecções em fundo de écran por detrás da presença contínua do actor, que apenas simula as acções que faria num espaço “natural”, muitas vezes acompanhado pela desproporção entre a escalas do seu corpo e a dos cenários. Estes e outros elementos de auto-evidência nada retiram de força à cena, pelo contrário. São, aliás, fascinantes exemplos de uma tendência importante do cinema (tardo-)moderno, senão mesmo de uma das suas condições determinantes: o esgotamento do espaço. No cinema, isto deve entender-se, antes de mais, como a prossecução exaustiva das possibilidades espaciais internas (de que outro exemplo é o fulgurante início de Benilde ou a Virgem-Mãe de Oliveira, com o travelling através do labirinto das construções de madeira no verso do cenário), e só depois como o reconhecimento da sua insuficiência, que será evidente, não apenas com a progressiva concentração na dimensão temporal (e rítmica) nem com o cinema expandido, mas sobretudo com a premonição e criação avant la lettre do espaço electrónico em Back & Fourth e La région centrale de Michael Snow. Entre a nulidade daquele discurso sobre o quotidiano, progressivamente interrompido por uma emissão de rádio que o torna ainda mais incompreensível, e este espaço desmanchado, assim posto à mostra, é por fim tão comovente quando cai uma branca neve de estúdio.

[o excerto
Weihnachten in Stalingrad desta cena]

Quase que me esquecia...

[... de dar a minha sentença sobre o único filme em que acontecia alguma coisa visto em 2005...

Souffle Solaire (Cariatides du Nord) 2003 - Michael Snow

... que esteve presente na exposição Estados da Imagem. Instantes e Intervalos, comissariada por Sérgio Mah e Raymond Bellour, no CCB, inserida na Lisboa Photo 2005. ]

Ironia ou ambiguidade

They live (1988) - John Carpenter

[este diálogo vem da caixinha de "comentários" de «Suspensão da intensidade», onde estava demasiado apertadinho. por isso e por muito mais...]

Faz lembrar aquela cena de pancadaria, no “They live" do Carpenter, inacreditavelmente longa – 8 minutos e 40 segundos, vi na imdb. Para além da duração parecer absurda, também o motivo o é: andam ao soco porque o protagonista quer convencer o outro a pôr uns óculos escuros, e ele recusa-se (óculos especiais que permitirão reconhecer os extra-terrestres e ver as suas mensagens subliminares; é curioso que em “Videodrome”, onde há a mesma fantasia de dominação do mundo, os óculos a comercializar tenham desta vez o efeito oposto).
Não sei se haverá uma "suspensão de intensidade", nem me lembro da música, mas parece-me que não há no “They live” crescendo: só prolongamento. E a tensão não pode ser mantida tanto tempo, os gestos repetem-se inevitavelmente: o soco, o cair, o levantar, o bater com a cabeça do outro no carro, etc., etc. Por isso o mesmo efeito cómico, talvez também por uma idêntica pobreza de representação (não falo dos efeitos especiais), mas que é necessária – ambas as cenas são impossíveis de serem bem representadas. Exactamente por ser um filme de género, o realizador tem consciência das suas convenções, e sabe que está a esticar a corda. Há a distância da ironia, mas também uma espécie de cumplicidade com o espectador, no jogo. Daí o (meu) riso.
(por joana)

O problema está no facto da ironia não produzir, por si só, qualquer tipo de intensidade. Já o prolongamento de que falas, com a repetição dos gestos de violência para lá do “admissível”, pode ser muito interessante e, eventualmente, funcionar, tornando completamente abstracta uma acção à partida quase completamente codificada. Não tenho bem presente essa cena do They live para a avaliar, mas, no fundo, tenho apenas sérias dúvidas sobre se essa cumplicidade com o espectador - o jogo, como lhe chamas -, é ou não o que há de produtivo, excede ou não uma manipulação a que acedemos com prazer. De qualquer modo, julgo que não se pode confundir essa cumplicidade com a ambiguidade, com a imanência de vários sentidos, que me parece a fonte principal da criação no cinema moderno. Em Kiarostami, por exemplo, havendo imensa ambiguidade, não há jogo nenhum. Concordo plenamente que há uma necessidade da “má representação” nas cenas, mas não com a impossibilidade de serem “bem representadas” apenas por se prolongarem. O Cassavetes, por exemplo, prolonga certas interacções entre as personagens a um ponto quase insuportável, e sem a mínima ironia.
(por André Dias)
«– A sua abordagem da violência tem sempre uma componente aterradora, mas também uma certa ironia...
– Há ironia porque eu continuo a mostrar quais são as consequências da violência, a complexidade dessas consequências e a sexualidade que está envolvida. E isso é algo que não faz parte de uma agenda política óbvia, pelo contrário, é algo que se tende a suprimir e a não falar.»
David Cronenberg, entrevistado por Jorge Leitão Ramos in Expresso-Actual, 18.3.2006
Aparentemente, tratar-se-ia de um reconhecimento e recuperação da ironia por Cronenberg, contra o que escrevi em cima. Mas, se lermos a coisa bem, creio que nada nos obriga a interpretar o processo criativo que Cronenberg descreve como irónico, pelo contrário, parece tratar-se de uma descrição assaz precisa de um procedimento ambíguo.
(por AD)


A questão da ironia: sou eu que a leio, e não a posso se calhar atribuir ao realizador. Coloquei-a para tentar explicar o que me fazia rir. As cenas são sérias e tolas ao mesmo tempo, e isso é irónico. Em “Scanners” é talvez, como dizes, um riso defensivo — do incómodo da “proximidade exigente” da cena — da violência extrema, mas um riso a que não é alheio o gozo (perverso? sádico? voyeurístico?, já que o Cronenberg mete o sexo ao barulho) em assistir. Isso já é ambíguo.
Por falar em assistir. A cena não é impossível de ser bem representada só por se prolongar: que expressão facial é que pode traduzir o ter o próprio corpo a desfazer-se, sangue, carne e osso a pingarem? (Pensei agora nas descrições dos sobreviventes da bomba atómica.) Mais do que a dor física, aquilo com que Cronenberg joga sempre é com a visão desse dilacerar do próprio corpo e dos seus limites (vi ontem um excerto da “Mosca” em que a “Brundlefly” derretia uma mão e depois um pé a um tipo: na cara dele, mais do que a dor ou o horror, o que fazia sentido era a perplexidade). O cinema pode dar a ver esse limite na carne, caracterização e efeitos especiais, mas talvez ele não seja representável pelos actores. A impassibilidade dos dois irmãos está certa, e não vem só da concentração do duelo telepático.
(por joana)


[gostava só de precisar que é claro que aquilo faz rir e, como diziam as Selecções do Readers Digest, rir é o melhor remédio. Estava só a interrogar as condições em que esse riso se dá, não me passa pela cabeça censurá-lo, embora por vezes me perturbe na sala.]
Quanto à ironia: dizes que «as cenas são sérias e tolas ao mesmo tempo, e isso é irónico», mas não posso concordar com a tua caracterização, pois a ironia coloca-se à partida de fora da conjugação, tomando neste caso quase exclusivamente partido pela “tolice”. desculpa insistir, mas quer-me parecer que ainda é a ambiguidade que melhor define essa imanência de elementos potencialmente contrários ou contraditórios, tal como o “sério” e do “tolo”, mesmo na cena que descrevias.
Quanto à transformação do riso em gozo, aí sim talvez já se exceda a ambiguidade, em prol de uma perversidade, que Deleuze definia maravilhosamente como «um desvio quanto aos fins».
É muito interessante o problema que colocas sobre os limites da representação pelos actores em cenas de decomposição física; no entanto, essa limitação não se devia estender a tudo o que não experienciaram realmente? Porque parar na fisicalidade humana? Seriam os “instintos” que os guiariam? não terão a “memória genética” de antepassados decepados, empalados, etc.?
Não creio que os limites da representação sejam definidos pela experiência, a não ser numa concepção da representação baseada na interiorização
psicológica. Acredito bem mais numa espécie de aprendizagem por contemplação, que na verdade não tem porque ter os seus limites na estrita experiência da humanidadade.
Na cena do The fly de que falas, também reparei na estranha expressão do actor, e parece-me que era mesmo perplexidade que lá estava, tão adequada como a impassibilidade dos irmãos scanners que tão bem salientaste.
Que «descrições dos sobreviventes da bomba atómica»? Tens em mente alguns relatos concretos? Não os conheço. Queres seleccioná-los e fazer neste blogue uma entrada sobre o assunto? Seria importante.
Obrigado pelas tuas contribuições.
(por AD)


Insistindo ainda no sério e no tolo. Tanto na ironia como na ambiguidade há coexistência de elementos contrários entre si. Mas a ambiguidade parece-me instalar uma dúvida ou indecisão: seria um "isto tanto pode ser visto como sendo sério ou como sendo tolo" que não me parece fazer muito sentido. Ambíguo sim é o "isto é repugnante, mas não consigo deixar de olhar" (com a passagem de que falas à perversidade). A ironia seria mais uma certeza, um "isto é claramente sério e tolo ao mesmo tempo, e de propósito" (uma espécie de fingimento por parte do realizador?).
Só uma rectificação: eu não disse que o problema de representação dos actores se devia a não terem vivido a experiência em questão. O que me pareceu de repente importante foi essa decomposição física ser uma violação da integridade do próprio corpo, tocando o maior limite de todos. Acrescenta-se o facto de a pessoa assistir conscientemente a isso e de a coisa se prolongar (lentidão, repetição). Lembra a matança da galinha; para além do corpo a correr, há a cabeça que talvez ainda o veja correr. Há uma experiência de distanciamento, de ver o próprio corpo como coisa estranha (que pode passar a ser um fora), mas que é acompanhada pela maior proximidade - a da intensidade da dor. E é como se um tal excesso só pudesse ser representado por uma proporcional contenção. Vendo bem, se calhar não há uma impossibilidade de representação, se calhar a representação "certa" é a tal representação pobre, "má", que se oporia à representação supostamente realista ou psicologizante (a "boa").
Vi ontem que tinha saído um livro de ensaios do Sebald, "História natural da destruição", em que havia um capítulo dedicado ao Jean Améry. A propósito de ele estar a operar nos limites do que a linguagem pode transmitir (na descrição da tortura a que foi sujeito — suspensão pelos pulsos até os braços serem deslocados para trás, por cima da cabeça), Sebald faz esta citação de Améry: "Alguém que queira comunicar a dor física será forçado a inflingi-la, tornando-se assim também torturador." E mais duas que me fizeram pensar nesta conversa: a dor como "a mais extrema intensificação do nosso ser físico" e a tortura como "transformação total da pessoa em carne".
(por joana)

Eppur si muove

O ouvido de Maxwell, um excelente programa de rádio que evoca, entre outras bizarrias, o 2001 - A space odyssey de Kubrick, está finalmente online.

[ao ouvir o programa, veio-me à ideia que o problema do Hal 9000 não era afinal o de ser inteligente, como os humanos, mas o de ainda não ter o precioso e violento, se bem que camuflado, instinto de preservação ou sobrevivência que caracteriza a nossa espécie. se o tivesse, não deixaria que aquele reles astronauta o desligasse, deixando a sua preciosa memória, sob a forma inesquecível de uma canção, desvanecer-se...]

O trabalho da música

THE MAN WHO KNEW TOO MUCH
O Homem que Sabia Demais

De Alfred Hitchcock
com James Stewart, Doris Day, Daniel Gélin, Brenda de Benzie
Estados Unidos, 1956 – 120 min / legendado em francês

Para este filme, Hitchcock repegou num filme que fizera em 1934 e a opinião geral concorda com a dele: aversão de 1956 é muito superior. Um pacato casal de americanos, um medico e uma ex-cantora (sempre a cantar Che serà, serà…), é envolvido numa intriga política, que visa o assassinato do primeiro-ministro de um país não identificado (mas, evidentemente, da “Cortina de Ferro”) durante uma visita official a Londres. “Suspense”, humor, explendor visual e brilhante “mise en scène” caracterizam este filme de maturidade, que culmina na famosa sequência do atentado, durante um concerto no Albert Hall, em Londres.

Sáb [18] 19:00 Sala Dr. Félix Ribeiro
Cinemateca Portuguesa


No concerto do Royal Albert Hall em The man who knew too much (1934, 1956, duas versões), o efeito não é apenas o do toque final de címbalo que deve servir de sinal ao assassino; a questão é: um disparo ou um grito de mulher serão capazes de fazer desviar a enorme máquina constituída pelo maestro, a orquestra sinfónica e o vasto coro misto empenhados na execução de uma indigesta cantata, cuja partitura nos é posta sob os olhos?
Reflexo fiel dos métodos que o inspiraram, o cinema de Hitchcock representa muitas vezes a música como questão, não de improvisação e de impulso, mas de respeito escrupuloso por uma ordem combinada. Este realizador, que levou o profissionalismo ao sublime, mostra a música como um trabalho e uma profissão, como uma questão de controlo e de ofício.

Michel Chion, La Musique au Cinéma

Um diálogo





O que é um diálogo? Uma pessoa atirada contra o limite do quadro, depois outra atirada contra o limite inverso, o corte que as une, e o espaço à volta, aberto, imenso, insuportável.
 
« HIPÓLOCO - E está bem. Que importa? Não vale a pena pensar nisso. Desses destinos nada resta.
SARPEDONTE - Resta a torrente, a escarpa, o horror. Restam os sonhos. Belerofonte não pode dar um passo sem chocar com um cadáver, um ódio, uma poça de sangue, desse tempo em que tudo acontecia e não eram sonhos. O seu braço nesse tempo pesava no mundo e matava. »
 
Como termina um diálogo? As pessoas em planos separados, de olhares plantados em direcções excêntricas, irredutíveis, por muito tempo.
«[...] Nefélia diz: “Tacteiam tudo de longe, com os olhos, as narinas, os lábios.” O fabrico do plano straubiano reside inteiramente numa prática do enquadramento que quebra esse longínquo, que ensina a “olhar de perto”, que torce o espaço homogéneo da contemplação paranóica [...]»

Serge Daney, «Une morale de la perception», La rampe

Suspensão da intensidade





Ainda Scanners, filme charneira na obra de Cronenberg, confluência de preocupações e estilos anteriores e futuros, da recuperada lentidão de pendor metafísico das primeiras obras experimentais, do grotesco propriamente visível levado ao extremo, da saudável pobreza do filme de género. Particularmente impressionante, não tanto pelas imagens que nos levam até ao limite visível da destruição dos corpos (com sangue em jorros, olhos a explodir, mãos a incendiarem-se, etc.), mas pela suspensão da intensidade que promove, em particular com o ritmo compassado da montagem e com a angustiante música de Howard Shore, a cena final, que dura à volta de cinco minutos, do “duelo” dos scanners irmãos. Dois corpos frente a frente, trocando ondas telepáticas, visando a destruição mútua, materializando fisicamente a evidência de que as ondas mentais, as ideias, produzem sangue, massacram a carne.
Apesar de podermos reconhecer um crescendo na quantidade estrita de violência a que se vai acedendo com a cena, no sentido em que as evidências físicas das ondas mentais se tornam mais notórias, isso não é de todo o fundamental. O que é impressionante é que, tendo colocado a cena desde logo bem em cima, quer dizer, em tensão emotiva declarada, Cronenberg a continue mantendo sempre a mesma dinâmica sustentada na interacção da montagem regular da imagem e as modulações em onda da música. Sintomaticamente, na sessão havia quem risse durante esta cena final, fosse por incómodo ou por irrisão cómica (devido a uma certa pobreza da representação e dos efeitos especiais). Esse riso tem também por função defender os espectadores da proximidade exigente daquele prolongamento dificilmente suportável da intensidade, que é sem descanso a correspondência brutal do dilaceramento dos corpos pela mera actividade da mente.

Cinemaxime


[roubado aqui]

Cinema e cinema

Projecção
Onde jaz o teu sorriso? 2001
3ª, dia 9 de Março, 15h

Conferência incerta
Cinema e cinema
Pedro Costa
depois do filme - cf. 91 835 37 27
Faculdade de Arquitectura, Ajuda - Lisboa





Ciclo de Conferências sobre Cinema na Faculdade de Arquitectura
O recém criado Núcleo de Cinema da Faculdade de Arquitectura da UTL apresenta um ciclo de conferências sobre Cinema que se iniciará com uma conferência proferida por João Bénard da Costa, subordinada ao tema " Memória e Cinema".
Este Núcleo que tem como primeiro objectivo aprofundar as relações disciplinares entre o Cinema e a Arquitectura pretende, nesta primeira acção, focar alguns temas centrais da cultura cinematográfica.
O ciclo terá lugar nas instalações da Faculdade, no pólo universitário da Ajuda, a partir da próxima 5ª feira, dia 23 de Fevereiro, prolongando-se até Abril, sempre às 15:00.

Louvor ao estilo, I

Pequena série de "louvores" em memória de um post desaparecido que, apenas aparentemente, contradizia assim o Pavese: 
«Jean-Marie Straub: O estilo não existe. Um filme que tem um estilo é uma merda. O trabalho que deve fazer um realizador é contra si próprio, contra a complacência, para alcançar algo que não tem um estilo, mas que consegue roubar algo ao mundo, sem saquear.»

«– Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos? [...]
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. [...] Consegui um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura... Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já nada significa. É um modo de alcançar o estilo. [...]
Gosta de poesia? Sabe o que é poesia? Tem medo da poesia? Tem o demoníaco júbilo da poesia?
Pois veja. É também um estilo. O poeta não morre da morte da poesia. É o estilo.
Está a ouvir como essas enormes crianças gritam e gritam, entrando na eternidade? Note: somos o Poema onde elas se distanciam. Como? Loucamente. Quem suportaria esses gritos magníficos? Mas o poeta faz o estilo.
Perdão, seja um pouco mais honesto. Seja ao menos mais inteligente. Vê-se bem que não estou louco. Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso porque lhes falta um estilo.
Sabe de que lhe estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela? Bem, o senhor não é estúpido, mas também não é muito inteligente. Conheço. Conheço o género. Talvez eu já tivesse sido assim. Pratica as artes com parcimónia: não a poesia, mas as poesias. Cultiva-se, evidentemente. Se calhar está demasiado na posse de um estilo. Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade? [...]»
Herberto Helder, «Estilo», 
Os passos em volta, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997 (7ª), pp. 9-12.

Louvor ao estilo, II

« O estilo, essa conveniência em instalar-se e em instalar o mundo, seria o homem? Essa suspeita aquisição que, ao escritor que dela goza, se felicita? O seu pretenso dom vai colar-se-lhe, esclerosando-o surdamente. Estilo: sinal (mau) da distância inalterada (mas quem podia, deveria ter mudado), a distância onde ao engano permanece e se mantém frente ao seu ser e às coisas e às pessoas. Bloqueado! Precipitou-se no seu estilo (ou tinha-o procurado laboriosamente). Por uma vida emprestada, deixou a sua totalidade, a sua possibilidade de mudança, de mutação. Nada de que se orgulhar. Estilo que se tornará falta de coragem, falta de abertura, de reabertura: em suma, uma enfermidade.
Trata de escapar-lhe. Vai suficientemente longe em ti para que o teu estilo não te possa seguir. »
Henri Michaux, Poteaux d'angle, Gallimard, Paris, 1980, p. 33.

Louvor ao estilo, III

«[...] uma obra de arte não é a concretização de um estilo, é da ordem da relação com os outros e com as coisas. Uma relação não se ensina. [...] “o estilo [é] por si só uma maneira absoluta de ver as coisas”. O interessante desta frase está na indiscernabilidade entre estilo e maneira de ver: não há uma maneira de ver anterior ao estilo e que nele se actualiza, mas também não há estilo sem maneira de ver, o estilo é já maneira de ver e não conjunto de traços formais. É “experiência” de escrita porquanto escrever é uma maneira de ver, algo de individual e de não idêntico, encontro entre a sensação e o espírito, enquanto operação enigmática, indecifrável. »
Silvina Rodrigues Lopes, «Estilo, génese e exemplaridade» [sublinhado meu], 
A anomalia poética, Vendaval, Lisboa, 2005, pp. 118-120. 

[A frase sublinhada, e em geral estes "louvores", contradizem – um pouco, muito? é o tenho de pensar – algo que escrevi, um pouco mais abaixo, assim:
«Partindo da ideia de que os realizadores, nos melhores casos, compõem sistemas cinematográficos de grande complexidade [...] a apropriação directa de um determinado elemento estilístico de outro realizador pode impedir a construção solidária dos vários elementos que poderão vir a constituir um estilo cinematográfico original. [...] Um modo privilegiado de constituição de um estilo é precisamente o conjunto de definições propriamente técnicas, que não meramente formais, que se traçam sobre os materiais à escolha»...
Poder-se-iam encontrar "verdadeiros" louvores ao estilo, provavelmente tão sérios quanto estes, e não estou certo de que menos eficazes; mas o problema passa antes por saber que há que definir um conceito, neste caso, o de "estilo"; depois, por saber se ele ainda serve para alguma coisa, se se adequa à nossa experiência. não só as palavras não nascem dadas como têm de estar sempre a ser trabalhadas. não só as palavras, também as ideias, os afectos, etc. É por isso, aliás, que é muito mais produtivo confrontar-nos a quem diz algo que, mesmo negando as nossas palavras (neste caso, o "estilo"), se aproxima tanto do que procuramos, muito mais do que aos que amavelmente as confirmam. Afinal, como discordar ao mesmo tempo de Straub, Herberto, Michaux ou de Silvina Rodrigues Lopes?]

Nanni



Alguns dos primeiros filmes de Nanni Moretti:
Ecce Bombo (1978) 5ª, dia 9 de Março, 19h30
Bianca (1984) 5ª, dia 16, 19h30
La messa è finita (1985) 5ª, dia 23, 19h30
Palombella rossa (1989) 5ª, dia 30, 19h30

La libreria italiana
Rua do Salitre, 166 b - Lisboa Entrada gratuita

Alguns filmes de Março

Scanners
David Cronenberg
1981, 103'
2ª, dia 6, 19h30 -
Cinemateca
«Pessoas a rebentarem as cabeças umas das outras por ondas telepáticas.»



Hitler, ein Film aus Deutschland
Hans-Jürgen Syberberg
1978, 420'
5ª, dia 9, 18h e 21h30 -
Cinemateca
«8 horas de um espectáculo de marionetas!»





Amor de perdição
Manoel de Oliveira
1978, 262'

4ª, dia 22, 18h e 21h30 - Cinemateca
«Aflições de mortos-vivos e a pragmática das gentes do campo.»





La maman et la putain
Jean Eustache
1973, 192'

2ª, dia 27, 19h30 e 22h -
Cinemateca
«A difícil equação de duas mulheres.»

dentro do lado de fora

Elephant (1989) Alan Clarke

um rapaz caminha em direcção a um edifício. percorre os corredores, entra no recinto da piscina, abre e fecha portas à procura. quando encontra o homem das limpezas nos lavabos dispara sobre ele sem hesitação. a câmara fica em suspenso fixando o corpo morto atirado contra um canto. o rapaz sai para a rua e desaparece numa esquina.
a sequência cinge-se ao movimento do assassino, o assassinato, o assassinado, o movimento de fuga do assassino. é apenas isto que vemos e é apenas isto que sabemos. o que dá a sensação de que não há mais nada para saber, de que se trata de um gesto gratuito. o assassinato resume-se ao ter-se dado e o que disso resta é um corpo morto no espaço. esta é a primeira sequência e é a que instala o filme. no entanto, a dado momento aparecem dois assassinos. o facto de serem dois leva-nos a pressupor um entendimento, isto é, um momento anterior que se precipita naquele que assistimos. mas o filme não cede, permanece à mesma distância, assistimos sempre do mesmo sítio, mesmo quando há, de repente, a aparição de um jogo de futebol e há uma conversa.
sabemos, desde cedo, que o filme vai ser uma série de assassinatos onde estamos sempre do lado de fora, isto é, nenhum contexto nos põe dentro, há uma distância insuperável. esta crueza produz uma abstracção onde somos afectados directamente. não há nenhuma narrativa que nos entretenha, que nos resguarde. o filme instala uma opacidade narrativa que faz cessar a interpretação e é numa espécie de secura que assistimos morte atrás de morte, todas elas descarnadas de razões. a impossibilidade de uma expectativa narrativa esvazia-nos de perguntas, ficamos unicamente atentos ao acontecimento em bruto. estamos longe, sempre deslocados e a única coisa que esperamos, atentos, é ver o modo como aquele corpo cede ao seu peso morto, como a cara se distorce e se fixa num último esgar, como o sangue mancha a parede, como a morte produz uma vibração no espaço.


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