Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #171 (António Guerreiro): A miséria da ortografia

Estes linguistas que engendraram um acordo ortográfico que nos foi politicamente imposto têm uma ideia tão pindérica e instrumental da ortografia que jamais perceberão o ‘hénaurme’ em vez de ‘énorme’, de Flaubert, e a ‘dansa’, de Sophia – alguém consegue imaginá-la como ‘Sofia’ – de Mello Breyner Andresen, que a poeta justificava assim: “Deve-se escrever com ‘s’, como era antes, porque o ‘ç’ é uma letra sentada, uma letra pesada.” Podemos argumentar que há algo na literatura que passa por um texto irredutivelmente gráfico e podemos isolar nela o jogo da forma e da substância da expressão (ortho) gráfica. Mas todos nós desenvolvemos o sentido de um valor icónico-semântico-performativo da ortografia que faz com que sintamos como uma violência e uma amputação a queda das consoantes mudas, por exemplo. Aqueles que recusam seguir as normas do acordo ortográfico não são, em princípio, uns snobs: são objetores (isto é, ‘objectores’) de consciência. 
Mas a questão coloca-se ainda com mais acuidade nas palavras que passam a ser utilizadas como conceitos. Alguém que escreva sobre a teoria da ‘acção’ (da vita activa), de Hannah Arendt, que esforço tem de fazer para prescindir daquele ‘c’ sem cair na debilidade? E alguém que estude a teoria da soberania de Carl Schmitt conseguirá rebaixar-se ao nível da ‘exceção’ que está no centro da noção schmittiana do soberano: “Soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção”? Garantem-nos que tudo isto é uma questão de hábito, mas a verdade é que há uma espécie de arquigrafia que nenhuma reforma ortográfica conseguiu ainda liquidar (o Acordo, em muitos casos, parece aplicado nessa tarefa criminosa). Estes linguistas que colocaram os seus bons ofícios científicos ao serviço da elaboração deste Acordo são avatares anedóticos daquela que já foi considerada a “ciência farol das ciências humanas”. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 23.12.2011.

Ao pé da letra #170 (António Guerreiro): Significantes flutuantes

Em Portugal, o Governo anda atarefadíssimo a fazer reformas. Mas, se nos deslocarmos para Itália, também a prioridade são as reformas; e para Espanha, e para França... A palavra ‘reforma’ segue à frente, na torrente quotidiana de discursos. ‘Reforma’ tornou-se uma palavra vazia de sentido ou com um significado indeterminado, apta a ser preenchida, como quisermos, isto é, como os decisores políticos quiserem. É qualquer coisa, aliquid, uma palavra-maná. Foi o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss quem, na introdução à obra de Marcel Mauss, se referiu a estas palavras de tipo maná, sem referente nem sentido precisos, dando-lhes o nome de significantes flutuantes. Que se dê o nome de palavra-maná ao significante flutuante mostra bem como este é dotado de uma mágica substância mística. Cada governo precisa pelo menos de uma destas palavras para poder apoderar-se de um sentido que dê a ilusão de preencher o lugar vazio que ocupa. Para Cavaco, foi a ‘modernização’, para Guterres, a ‘solidariedade’, para Sócrates, a ‘tecnologia’, para Passos Coelho, a ‘reforma’.
A existência de significantes flutuantes deve-se a uma fundamental inadequação entre significantes e significados, isto é, a um excesso de significantes e a uma falta de significados. Saber tirar partido desta condição é a grande arte dos feiticeiros, dos xamãs, dos profetas. Sem esta inadequação não haveria palavra mágica, nem divina, nem qualquer invenção mítica e estética. Nem haveria poesia nem outras formas de literatura. E também nunca teria havido revoluções. O espantoso, apenas isso, é que os significantes flutuantes já não são daqueles que despertam o sonho, incitam à ação e nos elevam o olhar. Parecem reconduzir-nos sem ilusões para as camadas inferiores, sem substância mística, para as regiões do baixo materialismo, onde a forma se enforma e, redundandemente, se reforma.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 17.12.2011.

Ao pé da letra #169 (António Guerreiro): Homo culturalis

O regozijo nacional por o fado ter sido classificado pela UNESCO como Património Cultural Imaterial não nos deve fazer esquecer que não há foco de luz que não projete também a sua sombra. E, neste caso, a sombra é aquela que, expandindo-se a alta velocidade, cobre o mundo de museus e mausoléus. Com a noção de “património imaterial”, o museu estende-se mesmo além do espaço físico e captura no seu culto comportamentos, práticas, formas de vida. Aloïs Riegl, diretor de um museu em Viena e considerado o inventor da noção moderna de património, escreveu no princípio do século XX um livro sobre o culto moderno dos monumentos, onde analisa o dilema destruição/conservação (um dilema muito moderno, muito próprio das épocas das vanguardas), na medida em que a destruição pode ser criadora e a conservação esterilizante.  
Mas não se pode pensar a museificação sem o seu correlato, a culturalização: a capacidade pan-inclusiva da cultura, os mecanismos de homogeneização de que ela é dotada, enquanto dissolvente de todas as asperezas. Anima-a um dispositivo mortal de apaziguamento, como observou algures Blanchot: “Que existam acontecimentos interessantes e mesmo importantes e que, no entanto, nada possa ter lugar que nos perturbe, esta é a filosofia de todo o serviço da cultura.” O homo culturalis é uma espécie triunfante, em estado de proliferação cancerosa. É a forma encarnada de filisteísmo. Onde quer que ainda exista vida, experiência e aura, lá estará o homo culturalis para edificar um museu, uma reserva, um parque. É certo que, patrimonializado, o fado não fica submetido a nada, nenhuma incumbência o vem condicionar, e difunde-se o seu acrescido capital simbólico. A sombra de que falávamos está noutro lado: nas representações plácidas e tranquilizantes, com o brilho do ouropel, sem pecado nem partes malditas, induzidas por estas operações estético-culturais de patrimonialização e museificação.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.12.2011.

Ao pé da letra #168 (António Guerreiro): Os animadores do gosto

O suplemento literário do El País publicou na semana passada uma “radiografia da crítica literária”, sob a forma de um inquérito feito a 20 “influentes líderes da opinião literária da Europa e da América” (assim os apresentava o jornal). Desse inquérito, podemos tirar as seguintes conclusões: a crítica literária está em crise em todo o lado e em risco de se tornar uma coisa do passado; a crítica literária não está a morrer de morte natural (ninguém defende que se tornou obsoleta), mas foi vítima de um conjunto de condições que levaram a que se tomasse de assalto a esfera pública literária. Na medida em que a crítica literária é uma matriz da crítica de todas as disciplinas artísticas, fácil é perceber o que se passa em todos os domínios. Houve um tempo, ainda não muito distante, em que o motivo de debate eram o modo como ela se situava no interior das ciências humanas (era o tempo em que a diferença entre a “crítica impressionista” e a “crítica universitária” tinha um valor importante na economia dos discursos).  
Esse tempo, e tudo o que nele estava em jogo, tornou-se caduco, ultrapassado pelas circunstâncias. E nada representa melhor essa caducidade do que as famigeradas estrelas, as listas, os balanços anuais, as antecipações de “o que aí vem”. Com estes métodos de classificação e de hierarquização, a crítica, que tinha consistido em transformar a opinião em conhecimento (como dizia Samuel Johnson), é solicitada a fazer o contrário: transformar o conhecimento em opinião. Nesta época pós-crítica e da hipertrofia da opinião, o papel do crítico está reduzido ao de um animador do gosto ou animador cultural. E tão impositivo se tornou este modelo que até os comentadores políticos surgem investidos nesse papel de animadores, onde os de gosto mais à esquerda contracenam com os de gosto mais à direita, num palco onde se desenrola o espetáculo de variedades. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 3.12.2011.

A ideologia não existe (Deleuze)

Todas as sociedades são, ao mesmo tempo, racionais e irracionais. São forçosamente racionais pelos seus mecanismos, engrenagens, sistemas de ligação, e mesmo pelo lugar a que assignam o irracional. No entanto, tudo isto pressupõe códigos ou axiomas que não são produto do acaso, mas que também não têm uma racionalidade intrínseca. Como na teologia: tudo é de facto racional se se aceita o pecado, a imaculada concepção, a encarnação. A razão é sempre uma região talhada no irracional. Não de todo ao abrigo do irracional, mas uma região atravessada pelo irracional e definida apenas por um certo tipo de relações entre factores irracionais. No fundo de toda a razão, o delírio, a deriva. Tudo é racional no capitalismo, salvo o capital ou o capitalismo. Um mecanismo bolsista é efetivamente racional, pode compreender-se, aprende-lo, os capitalistas sabem dele servir-se; no entanto, é completamente delirante, é demente. É neste sentido que dizemos: o racional é sempre a racionalidade de um irracional. Há algo que não foi suficientemente notado em O Capital de Marx: a que ponto está ele fascinado com o mecanismos capitalistas, precisamente porque estes são, ao mesmo tempo, dementes e funcionam muito bem. Então, o que é racional numa sociedade? É – estando definidos os interesses no quadro dessa sociedade – a maneira como as pessoas os perseguem, perseguem a sua realização. Mas nisso existem desejos, investimentos de desejo que não se confundem com os investimento de interesse, e dos quais os interesses dependem nas suas determinações e na sua própria distribuição: todo um enorme fluxo, toda a espécie de fluxos libidinais-inconscientes que constituem o delírio dessa sociedade. A verdadeira história é a história do desejo. Um capitalista ou um tecnocrata atuais não desejam da mesma maneira que um mercador de escravos ou que um funcionário do antigo império chinês. Que as pessoas numa sociedade desejem a repressão, para os outros e para si mesmos, que haja sempre pessoas que querem chatear os outros, e que tenham a possibilidade de o fazer, o “direito” de o fazer, é isto que manifesta o problema de uma ligação profunda entre o desejo libidinal e o campo social. Um amor “desinteressado” pela máquina opressiva: Nietzsche disse belas coisas sobre este triunfo permanente dos escravos, sobre a maneira como os amargurados, os deprimidos, os estúpidos nos impõem o seu modo de vida. >



Justamente, em tudo isso, o que é verdadeiramente específico do capitalismo?
Será que, no capitalismo, o delírio e o interesse, ou então o desejo e a razão, se distribuem de uma maneira de facto nova, particularmente “anormal”? Creio que sim. O dinheiro, o capital-moeda, é um ponto de demência tal que não teria na psiquiatria senão um equivalente: aquilo a que se chama estado terminal. É demasiado complicado, apenas uma observação de pormenor. Nas outras sociedades existe exploração, existem igualmente escândalos e segredos, mas isso faz parte do “código”, existem mesmo códigos explicitamente secretos. No capitalismo é muito diferente: nada é secreto, ao menos em princípio e segundo o código (é por isso que o capitalismo é “democrático” e se reclama da “publicidade”, mesmo em sentido jurídico). E, no entanto, nada é confessável. É a própria legalidade que não é confessável. Por contraste com outras sociedades, trata-se do regime, ao mesmo tempo, do público e do inconfessável. É específico do regime do dinheiro, um delírio efetivamente particular. Veja-se aquilo a que se chama de escândalos atualmente: os jornais falam bastante, toda a gente finge defender-se ou atacar, mas procuramos em vão o que há de ilegal naquilo, tendo em conta o regime capitalista. A declaração de impostos de Chaban, as operações imobiliárias, os grupos de pressão e, mais em geral, os mecanismos económicos e financeiros do capital, tudo é mais ou menos legal, salvo pequenas manchas; sobretudo, tudo é público, ainda que nada seja confessável. Se a esquerda fosse “razoável”, contentar-se-ia em fazer a vulgarização dos mecanismos económicos e financeiros. Nem seria preciso publicar o privado, contentar-nos-íamos em fazer confessar aquilo que é público. Encontrar-nos-íamos numa demência sem equivalente algum nos hospícios. Em vez disso, falam-nos de “ideologia”. Mas a ideologia não tem importância alguma: o que conta não é a ideologia, não é sequer a distinção ou oposição “económico-ideológico”, é a organização de poder. Porque a organização de poder é a maneira na qual o desejo já está no económico, na qual a libido investe o económico, assombra o económico e alimenta as formas políticas de repressão. 
A ideologia é uma ilusão de perspectiva [trompe-l’oeil]?
Nada disso. Dizer «a ideologia é uma ilusão de perspectiva» é ainda a tese tradicional. Metemos a infraestrutura de um lado, o económico, o sério, e depois, do outro lado, metemos a superstrutura, da qual a ideologia faz parte, e rejeitamos os fenómenos de desejo na ideologia. É uma boa maneira de não ver como o desejo trabalha a infraestrutura, como a investe, como dela faz parte, como deste modo organiza o poder, como o sistema repressivo se organiza. Não dizemos: a ideologia é uma ilusão de perspectiva (ou um conceito que designa certas ilusões). Dizemos: a ideologia não existe, trata-se de um conceito ilusório. Por isso convém tão bem ao PC, ao marxismo ortodoxo. O marxismo deu tanta importância ao tema das ideologias para melhor esconder o que se passava na URSS: a nova organização do poder repressivo. A ideologia não existe; não existem senão organizações de poder, uma vez dito que a organização de poder é a unidade do desejo e da infraestrutura económica.

Gilles Deleuze, «Sur le capitalisme et le désir» (1973), 
in L’île déserte. Textes et entretiens 1953-1974, ed. David Lapoujade, Minuit, Paris, 2002, pp. 365-68.

Ao pé da letra #167 (António Guerreiro): O clube do ‘top’ e as suas guerras

Uma prática muito comum, que consiste em falsificar os tops dos livros mais vendidos, explica-se pelo efeito performativo que tem a publicação dessas listas: aparecer no top potencia o número de vendas, segundo um mecanismo tautológico que nos garante que tudo o que é bom aparece e tudo o que aparece é bom. Os tops não são um mero dado de um sector económico, não são uma informação sobre um estado de coisas, não são uma simples constatação: são um ato que produz efeitos ou que, pelo menos, pretende produzi-los. Tal como produz efeitos outro tipo afim de exibição quantitativa: as grandes torres de exemplares de um mesmo título à entrada das livrarias servem para incitar à compra por impulso e estimular a “rotação rápida”. A glória da quantidade que os tops celebram não tem mais de meio século. Até ao final dos anos cinquenta, o número de cópias de um livro vendidas não era do domínio público, até porque a regra da consagração, tal como ela tinha sido instituída pela autonomia do campo artístico, na segunda metade do século XIX, implicava o princípio de uma economia às avessas: o mais provável é que um livro que vendia muito estivesse naturalmente arredado da consagração.  

Por essa mesma razão, os escritores e os artistas fugiam das honrarias (“Les honneurs déshonnorent”, dizia Flaubert). A última coisa que um escritor queria era entrar num top club ou ver o seu nome associado a um hit-parade. Esse gesto não pode ser apenas interpretado como um puritanismo herdado da conceção heroica do artista; era um modo de assegurar a autonomia da literatura. No campo da arte, o correspondente aos tops de livros é a exibição pública dos valores de mercado de uma obra. Os contemporâneos de Picasso conheceram-lhe a fama, mas, a não ser já no final da sua vida, não conheciam a lista dos preços dos seus quadros. Também aqui o objetivo é o mesmo: fazer crescer aquilo que, aparentemente, só se está a medir. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 26.11.2011.

[Mostra/Seminário “O animal e a câmera” no forumdoc.bh.2011]


21 de Novembro a 4 de Dezembro de 2011
Cine Humberto Mauro/Palácio das Artes, Centro Cultural UFMG e Campus UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Entrada franca

O forumdoc.bh, Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte dedica-se à exibição, à discussão e ao fomento da produção cinematográfica, sobretudo a documental. Ao longo de quatorze anos consecutivos, o forumdoc.bh exibiu quase três mil filmes, para um público total estimado em 70 mil pessoas. Organizado pela Associação Filmes de Quintal, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, o festival se destaca pela curadoria criteriosa, seja com eixos temáticos ou retrospectivas de autor, trazendo a público filmes clássicos e contemporâneos cujo acesso é restrito, além do amplo debate que visa dialogar com cinéfilos, pesquisadores, realizadores e o público em geral.
No decorrer de sua história, o forumdoc.bh exibiu mostras de autores fundamentais para sepensar o cinema documentário, tais como: Jean Rouch, Pedro Costa, John Marshall, AgnèsVarda, Jean-Louis Comolli, Timothy Ash, Chantal Akerman, Zacharias Kunuk, Martin Maden,Bob Connolly, Chris Owen, Fernando Birri, Ousmane Sembéne, Abderrahmane Sissako, Idrissa Ouedraogo, Flora Gomes, Safi Feye, Frederick Wiseman, Ed Pincus, Pierre Perrault, Michel Brault, Robert Drew, Richard Leacock, D.A Pennebaker, the Maysles brothers, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Eduardo Coutinho, Arthur Omar, Aloysio Raulino, Andrea Tonacci, Carlos Prates, Ozualdo Candeias e Eduardo Escorel, além de projetos coletivos, como o Vídeo nas Aldeias.

MOSTRA/SEMINÁRIO ”O ANIMAL E A CÂMERA”
A mostra/seminário “O animal e a câmera” apresentará uma seleção de cerca de 20 filmes que tematizam modalidades diversas de relacionamento entre o homem e o animal. A maioria dos filmes estão centrados na caça e pesca como modos mediadores dessa relação cinematográfica. Documentaristas como Robert Flaherty, John Grierson, Jean Rouch, John Marshall, Frederick Wiseman, Arthur Omar, Andrea Tonnaci, dentre outros, compõem a mostra. Um seminário dedicado ao tema contará com a presença de nomes importantes do cinema e da antropologia, tais como, Tânia Lima, André Dias, Cezar Migliorin, Renato Sztutman, Takumã Kuikuro, dentre outros, que dialogarão com a mostra em palestras e mesas-redondas.

FAFICH Auditório Sônia Viegas/UFMG
22/11 Terça-feira

CINE HUMBERTO MAURO
24/11 Quinta-feira
19h PRIMATE Frederick Wiseman 1974, 105’

25/11 Sexta-feira
21h LA BÊTE LUMINEUSE Pierre Perrault 1982, 127’

26/11 Sábado
21h30 Fórum de Debates MESA REDONDA: “O animal e a câmera” com André Dias, Renato Sztutman, Paulo Maia

[Curso Marías / Buñuel na Cinemateca]

Ao pé da letra #166 (António Guerreiro): A culpa e a dívida

A linguagem é o primeiro instrumento de todas as trocas, e muitos conflitos e desacordos têm origem em problemas de linguagem. Quando a troca é entre línguas diferentes, há zonas idiomáticas intraduzíveis. Para percebermos a atitude moralista e disciplinadora da senhora Angela Merkel perante os países da zona euro mais atingidos pela crise da dívida não basta evocar, como explicação, a defesa irredutível de interesses nacionais (que, neste caso, chocam com o ideal supranacional da Europa) e recordar a história da Alemanha. Temos também de entrar numa lógica de pensamento a que a nossa língua não nos obriga. Neste caso, é conveniente saber que em alemão a palavra que traduz a nossa “dívida” é a mesma que diz a nossa “culpa”: “Schuld” tem ambos os significados. As consequências desta determinação linguística para a economia são enormes, como podemos hoje avaliar. A experiência do débito como culpa e da culpa como débito supõe uma conceção do capitalismo onde se sobrepõem categorias éticas, jurídicas e teológicas.  

Angela Merkel pode até nunca ter lido Max Weber, mas fala a mesma língua – em que “Schuld” significa “dívida” e “culpa” – do sociólogo alemão que formulou a tese da relação entre a ascese protestante e o espírito do capitalismo. E fala a mesma língua em que Marx sublinhou a derivação parasitária da economia capitalista da religião cristã. E fala ainda a mesma língua em que Walter Benjamin definiu “o capitalismo como religião”, como um culto “gerador de culpa” (ou de dívida, já que a palavra é a mesma) que não redime o pecado mas torna-o universal. Um culto permanente, uma festa contínua que não obedece a uma doutrina dogmática e que se celebra todos os dias, para o qual – e pronunciemos em voz baixa o que vem a seguir para nenhum dos governantes nos ouvir – não há dias feriados. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 19.11.2011.

À beira do mar azul... ♪♪


 [audio]

U SAMOGO SINEVO MORIA
À Beira do Mar Azul
de Boris Barnet
com Elena Kuzmina, Lev Sverdlin, Nicolai Kriuchkov
URSS, 1933 - 71 min / legendado em português
«Este filme é, como a generalidade da obra de Barnet, aparentemente “leve”, de um lirismo magistral, filmado do modo mais livre e menos convencional: dois jovens pescadores de um kholkoze apaixonam-se pela mesma rapariga, tornando-se rivais até um desconcertante final. Uma sequência inesquecível: a “ressurreição” da protagonista. Pouco visto à época, fora da URSS, À BEIRA DO MAR AZUL é hoje unanimemente considerado uma das obras máximas do cinema russo, ou do cinema tout court
> Sex. [18] 19:00 | sala dr. Félix Ribeiro, Cinemateca Portuguesa, Rua Barata Salgueiro 39, Lisboa

Sessão apresentada por Bernard Eisenschitz e Pierre Léon no âmbito do programa cinematografia – musicalidade 1.

Ao pé da letra #165 (António Guerreiro): A crítica em falso

A reação da Igreja, através de uma nota do Secretariado Nacional da Pastoral de Cultura, ao último livro de José Rodrigues dos Santos cai exatamente num equívoco que é o mesmo da crítica 'profana': o de elevar o livro a um estatuto que não tem. Walter Benjamin ensinou-nos esta coisa fundamental: um livro mau, num grau em que está ausente qualquer princípio crítico que é inerente à literatura, é incriticável enquanto tal (o que pode ser criticável é tudo o que o envolve no seu aparecimento e difusão). Este princípio, mesmo que não racionalizado e explicitado, vigorou até um tempo relativamente recente. Data do século XIX o aparecimento de uma literatura de entretenimento que tinha, na melhor das hipóteses, alguma importância económica, mas cujos caminhos nunca se cruzavam com os do ‘sistema literário’. E era exclusivamente deste que emanava o sistema da crítica.  
A partir do momento em que as regras de difusão e legitimação crítica começaram a ser permeáveis aos critérios do sucesso mediático e comercial e enfraqueceram o poder das instâncias (a Universidade, por exemplo) que não deixavam que a literatura se confundisse com as produções das ‘belas letras’, os dois campos passaram a cruzar-se e a mobilizar os mesmos meios, os mesmos métodos de difusão e os mesmos discursos. As categorias de ‘ficção’ e ‘não-ficção’ utilizadas pelas livrarias e por muitas revistas e suplementos literários são uma manifestação deste estado de coisas. Diga-se em abono da verdade que, se a literatura de entretenimento acedeu às esferas dantes reservadas ao que tinha a consagração apenas outorgada pelo ‘campo literário’, a literatura também passou a competir nos modos de edição e difusão com o entretenimento. O que facilitou o estado de confusão, nesta matéria, em que vivemos hoje. E explica que se gastem munições críticas e teológicas em alvos que se situam noutro campo de batalha.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 12.11.2011.

Ao pé da letra #164 (António Guerreiro): O sublime a que temos direito

“Colossal”, essa palavra que entrou recentemente no discurso político e fez o seu curso tornando-se objeto de glosas irónicas ou mesmo paródicas, é uma arma de fino recorte filosófico, consagrada como conceito por Kant na sua analítica do sublime. Remetendo-a para o campo conceptual onde o pensamento crítico da modernidade a entronizou, obrigatório é concluir que o sublime a que todos hoje temos direito, enquanto experiência de algo colossal, é-nos fornecido pela representação matemática da grandeza das dívidas, dos ganhos, dos empréstimos. Milhões, milhares de milhões, biliões de euros: estes números que desfilam à nossa frente como cálculos objetivos para a nossa vida presente e futura são tão incomensuráveis para todos nós como a especulação metafísica sobre a eternidade. Na sua Crítica da Faculdade do Juízo, Kant definiu o sublime como “o que é absolutamente grande” e como “o que é grande para além de toda a comparação”. E uma das categorias do sublime que ele define é o sublime matemático: o sentimento de uma grandeza desproporcionada em relação às nossas faculdades sensíveis, isto, é, que ultrapassa a medida dos nossos sentidos.  

Assim, Kant chama colossal ao que, por ser demasiado grande para a nossa faculdade de apreensão, exerce uma violência sobre a nossa imaginação. Por via das grandezas colossais, as finanças fornecem hoje um suplemento de sublimidade às massas, ao povo, que perante o colossal ainda mais se sente o “menu peuple”, o povo miúdo: esse que, ao contrário do “povo” das constituições democráticas modernas, não é soberano nem entra no cálculo das decisões políticas. Resta-lhe – resta-nos – a experiência de prazer e ‘desprazer’ que o sublime colossal oferece ao interesse dos sentidos; e o ‘desprazer’ que advém da experiência do confronto com o nosso próprio limite natural.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 5.11.2011.

[Programa de cinema: ‘Resíduos’]

Ao pé da letra #163 (António Guerreiro): Os bárbaros que não chegam

Há, em última instância, um acordo relutante e inconfessado entre os que defendem que a superação da crise económica e financeira se faz através da imposição da mais estrita austeridade e os que advogam que essa medida terá um efeito fatal e o que é preciso é estimular o consumo: ambas as partes caem no erro de uma falsa alternativa entre meios e fins que paralisa toda a política (e só serve quem está interessado em trabalhar para a despolitização). Ambas as partes, em suma, obedecem ao mandamento primeiro da teologia económica: o crescimento. Muito timidamente, e enquanto elaboração teórica, surgiu nos últimos anos um discurso do decrescimento que não parece ainda ter adquirido grandes condições para prosperar. Crescer é o mais resistente direito adquirido, cúmplice de um ‘progressivismo’ supra-ideológico. É evidente que mesmo o pensamento que se reivindica de esquerda colabora ativamente com os instrumentos e os modos de pensar que nos governam (desde logo, o produtivismo e o economismo) e, no fundo, não aspira senão a reconciliar tudo com o seu contrário.  
Ora, só um pensamento e uma prática que ousassem levar às últimas consequências uma total falta de ilusão em relação à nossa época poderiam superar esta oposição ao austeritarismo que o preserva no entanto na sua lógica e até na sua pragmática. Todos aqueles que criticam o sistema em que vivemos, hoje à beira do colapso, parecem querer salvá-lo, incapazes de dar o salto que lhes permitiria pôr a questão de um recomeço – esse recomeço que já Walter Benjamin, no início dos anos trinta do século passado, dizia ser a atitude própria dos grandes construtores, daqueles que, fazendo tábua rasa do que vigorava antes, são induzidos a construir a partir do pouco que têm, sem olhar à direita nem à esquerda. Para essa atitude dos construtores capazes de fazer tábua rasa reservou Benjamin o conceito de barbárie positiva. Onde estão estes bárbaros?  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.10.2011.

Crazy Horse

Agora que finalmente alguns vão poder assistir a um documentário de Frederick Wiseman simultaneamente com honras de abertura de festival e saída em sala – naquilo a que se poderia chamar, ironicamente, a sua “institucionalização” final –, ainda que sob mal disfarçado apelo ao “luxuoso e sensual” (“o que interessa aqui são as nádegas”, escreveu alguém, num momento de inspiração) – talvez seja útil, ainda que a despropósito, fazer notar algo relativamente óbvio. Ao invés do que esta promoção soft-core sugere, não partilha antes a grande obra deste cineasta americano algumas características não negligenciáveis com a pornografia hard-core? Porventura, não tanto – ou não apenas – no sentido geral de a sua perscrutação do social em open spread ser ela própria obscena... (A crueza dos seus filmes com a vida demasiado cozinhada que levamos, nos seus melhores momentos, ao nível exaustivo do detalhe e decomposição que oferecem, aparece, na verdade, mais como uma comovedora comédia romântica, polvilhada pelos inúmeros arrufos a cada encontrão entre as instituições estatais e privadas e os cidadãos vulgares – homens infames –, suas personagens.) Ainda assim, uma questão (cujas consequências necessitam resposta) permanece: onde senão num filme de Wiseman – e excetuando filmes pornográficos de um subgénero relativamente raro – se podem encontrar – trazidos à visibilidade e impondo uma nova inteligibilidade – gestos como o de uma mulher a manusear o pénis de um cavalo?
Now that some will finally be able to watch a Frederick Wiseman’s documentary simultaneously at a grandiose festival’s opening session and coming to a screen near us—in what one could call, ironically, its final ‘institutionalisation’—, even if under unashamed appeal to the ‘luxuriant and sensual’ (‘what matters here are the buttocks’, someone particularly inspired wrote), it might be useful—although inappropriate—to notice something rather obvious. Contrary to what that soft-core promotion suggests, doesn’t the great work of this American cineaste share instead some rather non-negligible characteristics with hard-core pornography? Maybe not so much—or not only—in the general sense of its scrutinizing of the open spread social, in itself, being obscene… (The crudeness of his films with the overcooked life we live, in its best moments, actually becomes more like a moving romantic comedy, splashed with numerous splats emerging from the encounters between state and private institutions and—infamous men—ordinary citizens, their characters.) Nonetheless, the question—whose consequences have to be accounted for—remains: Where other than in a Wiseman film—and excepting pornographic movies of a relatively rare subgenre—are we to find—brought to visibility and imposing a new intelligibility—gestures like those of a woman handling a horse’s penis?

P.S.: A França e o vídeo são como a kriptonite de Wiseman.
P.S.: France and video are like Wiseman’s kryptonite.

Ao pé da letra #161 (António Guerreiro): O futuro está só nos detalhes

Um dos dados do mundo atual com o qual tivemos de nos familiarizar é o facto de a gestão económica, política e social ser feita na dimensão do futuro. Deixou, aliás, de haver futuro a partir do momento em que ele passou a ser totalmente colonizado pelo presente. A ciência da estatística, tendo adquirido um elevadíssimo rigor, permite antever tudo o que se vai passar, exceto os detalhes que são capazes de provocar verdadeiros desastres, como acontece na economia. Por isso é que o futuro deixou de ser outra coisa senão a catástrofe e, mais do que nunca, o bom Deus, neste mundo secularizado, está apenas alojado nos detalhes. A estatística e as previsões estão para o curso racional do mundo como o inconsciente está para a instância do Eu: é uma estrutura que tem o poder de sobredeterminar os nossos atos conscientes. E se há uma compulsão para a repetição dos mesmos erros é porque os atos falhados são inevitáveis. Sendo tudo sobredeterminado, a organização do mundo deixou de poder contar com o livro arbítrio.  
A grande palavra determinante da modernidade, “autonomia”, desapareceu. Não mudou de mãos, não ficou restringida a uns poucos: pura e simplesmente eclipsou-se. Esta é uma forma da harmonia universal que não se traduz exatamente na fórmula leibniziana segundo a qual vivemos no melhor dos mundos possíveis. A questão que se coloca é a de perceber que as previsões em função das quais se faz a gestão política e económica se tornaram quase uma ciência exata porque sobredeterminam o que se vai passar, até ao mais ínfimo pormenor. O futuro não é sondado por uma ciência rigorosa, é sobredeterminado por ela. Por isso é que deixou de haver política e há apenas gestão. E tudo o que chega de surpresa é uma catástrofe. Primeiro, com a comunicação eletrónica instantânea, perdemos o sentido da distância; agora, já vivemos em curto-circuito permanente: o futuro está a ser, o que significa que já foi.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 15.10.2011.

Ao pé da letra #159 (António Guerreiro): A máquina de destruir escritores

Sigamos Valter Hugo Mãe, se quisermos ver em funcionamento, sem hesitações nem álibis, a máquina de destruir escritores. A engrenagem subiu ao palco, sob a forma de tragicomédia, no festival de Paraty, de onde saiu uma personagem grotesca que se oferece em espetáculo numa representação de cabaré, amplificada por aplausos emocionados de espetadores que gostam do teatro das emoções e acham que um escritor é tanto melhor quanto mais escreve como respira, isto é, como mente. A maquinação continuou por conta da editora, que tem os seus dispositivos de destruição afinados pela cega engenharia de promoção dos produtos editoriais. Finalmente, a grande engenhoca do lançamento, para a qual se convocou o mais respeitável construtor da nossa democracia para a tarefa da mobilização nacional em torno do escritor, coroou este percurso pelo qual um romance passa a ter um destino extraliterário.  


A ideia que está na base é a de que a literatura precisa de ser dissimulada e integrada nos mecanismos espetaculares de excitação para ter sucesso. Terminada a festa da destruição do escritor, fica o objeto desamparado do romance, no meio dos destroços. Quem, por dever de ofício, por curiosidade ou porque não se pode subtrair à ‘atualidade’, assistiu aos atos preparatórios da implosão, só tem um desejo, que, a cumprir-se, proporcionaria o júbilo pérfido da vingança: que o romance se erga acima do seu autor, apesar dele, ignorando os seus desvarios e as engenhocas promocionais de destruir escritores. Infelizmente, o desejo não se cumpre, o júbilo perverso fica adiado e o dito romance, tão patético como a engrenagem destrutiva que preparou o seu aparecimento, faz-nos passar por aquela experiência muito embaraçosa de sentir a vergonha que caberia ao outro. Nem um deus, quanto mais um filho, o pode salvar.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.9.2011.

Ao pé da letra #160 (António Guerreiro): Kafka para economistas

Teve grande repercussão o facto de o ministro Vítor Gaspar ter citado o conto "Um Médico do Campo", de Kafka, para dizer que também para o responsável das Finanças "passar receitas é fácil, conseguir ser entendido pelas pessoas é difícil". Kafka conseguiu ver o seu nome ligado a coisas tão temíveis – kafkianas – que ouvir um ministro das Finanças evocá-lo até parece exercício de suprema crueldade. No entanto, Vítor Gaspar tinha à sua disposição, na obra de Kafka, um conto de onde poderia tirar uma citação muito mais pertinente, nas atuais circunstâncias. Trata-se de "A Colónia Penal", onde uma máquina de tortura inscreve palavras no corpo do preso relativas à pena. A dívida – também a soberana – contrai-se através de um ato de promessa: a de que será paga. Mas o performativo da promessa (que consiste em dizer “eu prometo” – e dizendo isto não estou a constatar uma ação mas a praticá-la) não constitui em si mesmo o reembolso da dívida.  

A promessa tem seguramente a garantia de instituições nacionais que são como “homens de palavra”, mas, sabemo-lo agora com exatidão, os credores estão munidos de máquinas terríveis, como as da colónia penal concebida por Kafka, para garantirem que a promessa seja cumprida e não se fique pelas palavras que fizeram dela um ato. O performativo da promessa implica e pressupõe uma mnemotécnica da crueldade e da dor que, à semelhança da máquina da colónia penitenciária de Kafka, escreve no corpo do endividado, dilacerando-o, a promessa de reembolsar a dívida. E a ferida vai abrindo à medida que há uma dilação da promessa. A dívida tornou-se assim uma laceração cada vez mais aberta nalguns corpos nacionais. Nietzsche também viria a propósito: “Grava-se algo com o ferro em brasa para o fixar na memória: ela só conserva o que não para de fazer mal.”  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 8.10.2011.

Ao pé da letra #158 (António Guerreiro): Vícios linguísticos

Como é que uma palavra, uma expressão, um vocabulário ‘pegam’ como um tique ou um hábito social e entram na engrenagem da repetição mimética? Nos últimos tempos, este mecanismo que funciona como uma câmara de ecos pôs em circulação a palavra ‘narrativa’ no comentário político, em frases do tipo: “Afinal, a narrativa da dívida é outra”; ou: “Não devemos acreditar na narrativa da superação do défice.” Nas colunas de opinião de jornais, este uso da palavra ‘narrativa’ sofreu uma inflação e difundiu-se como acontece aos estereótipos. De onde vem esse uso? Podemos descobri-lo, na sua origem mais plausível, num pequeno livro que teve um grandioso efeito: La condition postmoderne (1979), de Jean-François Lyotard. Aí, este filósofo francês, entretanto falecido, definia a pós-modernidade como uma crise das narrativas, como o fim de um metadiscurso a que ele chamou “narrativas da legitimação”. Na sua perspetiva, o modernismo ter-se-ia caracterizado por grandes discursos legitimadores (por exemplo, o discurso do iluminismo e do marxismo) que chegaram ao seu fim.  

Ora, é precisamente neste sentido de narrativa de legitimação que, de repente, por um fenómeno mimético, a palavra ‘narrativa’ passou a fazer parte do jargon do comentário político. Tão interessante como este fenómeno das palavras que pegam é o do uso errado de palavras ou expressões até ao ponto em que esse uso se torna quase universal. Por exemplo: ‘grau zero’. É escusado lembrar que ‘grau zero’ não é pura e simplesmente ausência de qualquer coisa. Designa algo diferente: consiste numa presença que se faz notar pela ausência de um indicador, é uma existência que se torna notável exatamente por estar ausente. Assim, podemos dizer, por exemplo, que o liberalismo atual não é tanto a defesa de que o Estado se ausente da economia mas que ele se reduza ao grau zero.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.9.2011.

Ao pé da letra #157 (António Guerreiro): O 11 de setembro e o ‘Kitsch’ total

O 11 de setembro – pudemo-lo verificar agora até à náusea – tornou-se, sobretudo pela exploração das imagens literalmente espetaculares que o documentam e, ao mesmo tempo, o monumentalizam, grandiosa presa de um ideal estético. E esse ideal estético é o kitsch. Dito de uma maneira direta: o 11 de setembro tornou-se um espetáculo kitsch planetário – o maior da história da Humanidade – que faz com que aquilo em relação ao qual se reivindica um dever de memória seja afinal objeto de um esquecimento grosseiro. O extermínio dos judeus deu origem a uma atitude mística e iconófoba porque dele não havia imagens: o ataque às torres gémeas deu origem àquela comoção universal que se tem perante o sublime porque havia demasiadas imagens grandiosas. E, assim, o 11 de setembro resultou numa iconofilia (e é como reação a esta iconofilia, e não como alusão a um irrepresentável, que temos de interpretar a capa totalmente negra da Revista Única, concebida por Pedro Cabrita Reis). 

Essa comoção não esconde um enorme fascínio, que precisa de ser disfarçado com pudicas exclamações de horror. E esse fascínio – que é o fascínio pelo sublime – tem por base o kitsch espetacular do qual ficámos reféns. Não são as fotografias e os registos em vídeo que são kitsch, em si, mas o modo como são difundidos, editados, sublinhados, musicados, legendados, repetidos, de modo a exercer uma ditadura emocional. O músico alemão Karlheinz Stockhausen, logo a seguir ao colapso do World Trade Center, disse que se tratava da maior obra de arte total. Foram declarações muito inconvenientes, que lhe valeram o cancelamento de muitos concertos. Mas estas palavras de Stockhausen eram afinal o prenúncio de uma estetização irresponsável que viria a seguir, ao nível das revistas de moda. O resultado é o que se vê. Se Flaubert voltasse para reescrever o seu “Dictionnaire des idées reçues”, diria na entrada sobre o 11 de setembro: “Deste dia, dizer sempre ‘o dia em que...’”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 17.9.2011.

Ao pé da letra #156 (António Guerreiro): O salário dos ricos

A questão dos impostos levantou uma discussão indigente sobre o que é ser rico e ser pobre. Para começar, dever-se-ia ler um ensaio de Georg Simmel, de 1907, onde este sociólogo alemão formula uma definição: “É pobre aquele cujos meios não são suficientes para os fins que persegue”. Em vez de identificar a categoria social específica dos pobres, Simmel mostra que a pobreza não pode ser definida de maneira quantitativa por características que lhe seriam próprias: não é um dado absoluto, mas relativo. Um professor universitário que não tem dinheiro para comprar livros é pobre. Outra coisa que nos ensina Simmel é que a assistência aos pobres não se destina a socorrê-los, mas a proteger a sociedade da sua presença. Quanto aos ricos, importa verificar que os títulos de pertença à alta-burguesia já não se definem pelo valor da propriedade, mas por um certo nível de remunerações e o modo de vida que ele permite. 

A burguesia moderna é a burguesia assalariada (muita gente de esquerda parece que ainda não percebeu que a correspondência que Marx tinha estabelecido entre proletariado e assalariado está hoje quebrada). Só que esse salário, ao contrário do “salário fundamental” da grande maioria dos trabalhadores, tem um preço ‘político’, independente do mercado. É o sobressalário arbitrário. Não é a qualificação, o mérito e a lei da oferta e da procura que fazem com que um gestor ganhe muitos milhares de euros por mês: ele ganha-os por uma arbitragem política da sociedade que determina que o poder deve estar aí e não, por exemplo, num indivíduo que detém uma posição singular no ramo do saber e da ciência. O mesmo acontece com as vedetas de televisão: elas devem o seu sobressalário não à qualificação, não ao facto de fazerem aquilo que mais ninguém poderia fazer, mas por uma arbitragem do poder na sociedade mediática que leva a aquele que paga ganhe precisamente por pagar muito. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.9.2011.

Ao pé da letra #155 (António Guerreiro): Os blogues e a estrutura mafiosa do poder

Quando surgiram, os blogues eram portadores de uma grande virtualidade que nos remetia para a herança mais indeclinável do projeto iluminista: a racionalidade, a discussão e a socialização do saber que exigem a abertura do espaço público mediático. Fazendo um balanço do que se passou em Portugal, devemos concluir que esse projeto falhou. E são sobretudo os blogues de carácter político que exibem esse falhanço escandaloso. De um modo geral, a propaganda (à esquerda e à direita) sobrepôs-se à discussão política e arrastou tudo no seu movimento. Uma vez instaurado o regime da propaganda, a linguagem dominante passou a ser a do insulto e a regra é a da guerra civil permanente. A esperança iluminista soçobrou no obscurantismo. E, como de uma guerra civil se trata, os conflitos têm uma dimensão familiar e regional; e, como de propaganda se trata, tudo se reduz a táticas discursivas e planos de ocupação do terreno. 

Este jogo de guerra pressupõe uma intriga novelesca e códigos de elaboração que só os protagonistas e quem os acompanha exaustivamente (sem perder o fio à meada) podem perceber. Tudo se reduz a uma longa conversa entre eles. Tão codificada como as conversas de família. Em rigor, o que temos é uma conversa interminável, pois os blogues políticos tornaram-se ‘chats’, isto é, veículos da tagarelice e da parolice. E, no entanto, estão longe de ser inócuos e de ser insignificantes no que revelam. Organizados como uma estrutura mafiosa, eles fornecem hoje o modelo e os instrumentos, como é fácil perceber, da própria organização mafiosa do poder político que se foi edificando nas últimas duas décadas. Por ‘organização mafiosa’ não se entenda organização criminosa. É outra coisa: é uma organização que sobrevive através das construção de uma teia de relações ‘familiares’ e que faz da propaganda a arma principal do seu desígnio: a autoproteção que garante a sobrevivência. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 3.9.2011.

Ao pé da letra #154 (António Guerreiro): Um crime impune

O “protocolo de colaboração” celebrado no final da semana passada entre a Assírio & Alvim e a Porto Editora pode ser uma benéfica operação, mas revela publicamente uma verdade terrível: que uma editora não consegue hoje sobreviver pelos seus próprios meios se o núcleo central do seu catálogo é a literatura portuguesa - mesmo que seja uma parte razoável do cânone do século XX. Pensar que o famigerado mercado ameaça de extinção os livros de Fernando Pessoa, é pura e simplesmente obsceno. E chegou-se a este estado de catástrofe sem grandes resistências nem gritos de alarme, como se o que aconteceu e continua em curso não fosse um desastre obscuro. Pelo contrário, aqueles que foram traçando, desde há muito tempo, um quadro negro do estado da situação fizeram figura de criaturas agoirentas. E, no entanto, basta hoje entrar nas livrarias – e, com maioria de razão, se entrarmos com o objetivo de procurar um livro que escapa ao mainstream editorial e das “novidades” – para perceber que elas repousam hoje sobre um crime. 

Ou melhor: sobre uma cadeia de crimes perpetrados com a colaboração (nem sempre consciente dos seus efeitos nefastos) de muita gente e muitas instâncias. A partir de certa altura, o caminho único e coercivo revelou-se sem alternativas – há apenas um pequeníssimo espaço para alguns devaneios de gente freak e diletante, como aliás reconhecia, numa entrevista, há menos de um ano, Vasco Teixeira, responsável editorial da Porto Editora: “Se me perguntarem se daqui a dez anos ainda se edita poesia em Portugal, dir-lhe-ei que não. Quando muito teremos algumas edições artesanais (...). E haverá mercado para isso. Para o tipo que faz uma edição de 30 ou 50 exemplares que os amantes de poesia comprarão.” Esperemos que o poderoso assinante do “protocolo de colaboração” não se aplique agora, que tem ainda mais poder para isso, na realização da sua própria profecia. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 27.8.2011.

Ao pé da letra #153 (António Guerreiro): A multidão sonâmbula

“Ele foi para a rua, viu o que os outros estavam a fazer e juntou-se a eles. Cometeu um sério erro e reconhece-o”: assim disse a mãe de um miúdo de treze anos apanhado pela polícia a saquear lojas nas ruas de Londres. Sobre o que aí se passou dividiram-se as interpretações entre os que nem querem ouvir falar de explicações sociológicas (nem de “sociologia”, tout court, porque seguem à letra a boutade de Thatcher de que a sociedade não existe) e os que viram logo a revolta social e a luta de classes a desaguar nos templos londrinos do consumo. Ora, o que se passou foi um facto social, mas para compreendê-lo temos de recorrer à “psicologia social” de um Gabriel Tarde. Contemporâneo do nascimento da grande metrópole moderna e do fenómeno das multidões, Tarde definiu em 1884 a sociedade como “uma coleção de seres que se imitam uns aos outros”. À questão de saber o que é que está na base deste fenómeno de imitação de um indivíduo por outro e depois por uma multidão, responde Tarde: esse fenómeno releva da sugestão, que é um forma de hipnotismo: o social é um estado hipnótico.  

Não ter senão ideias sugeridas e julgar que elas são espontâneas – eis a ilusão do sonâmbulo assim como do homem social. Segundo Tarde, é a imitação que leva à propagação dos comportamentos sociais. E a cidade é o domínio próprio e ilimitado do social: numa grande metrópole nada nem ninguém é insociável, dirá mais tarde Durkheim. Tarde explicou assim como se formavam as multidões e como estas apresentam algo de animal, sofrem de alucinações e de ausência absoluta de moderação e de tolerância. As multidões, disse este sociólogo francês, não são apenas crédulas, são loucas. Lendo os testemunhos de muitos jovens saqueadores, sabendo que filhos de boas famílias seguiram a multidão delinquente, percebemos que é preciso reler a definição de sociedade de Gabriel Tarde. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 20.8.2011.

Ao pé da letra #152 (António Guerreiro): Governar com estilo

A partir do momento em que o pacto que liga os partidos aos cidadãos deixou de se basear nos antigos critérios de representação, a questão do estilo ganhou enorme importância. Cada governo que entra em funções conquista a sua autoridade através de um estilo, marcando assim a diferença em relação ao estilo do governo anterior. Um corte bem saliente torna-se necessário e nem sequer um grande treino, porque basta seguir intuitivamente pelo espaço de respiração que se abre, fugindo ao sufoco a que fôramos submetidos. Assim é porque cada governo caminha para a exaustão do seu estilo, até chegar o momento em que este passa a ser uma espécie de mímica com o seu código elementar. Atinge-se então o triunfo do vazio: os traços do estilo convertem-se em tiques, e os cidadãos, incomodados, começam a dizer: “Já não posso ouvi-los.” Tem sido assim com os governos anteriores e assim será certamente com este.  

A noção de estilo é vaga e maleável, por mais que façamos apelo aos tratados clássicos. Mas só usando de muito rigor é que chamamos estilo àquilo que, no discurso e no comportamento dos políticos, é definido por uma intenção e não por uma necessidade. Ao contrário do estilo na literatura e na arte, o estilo dos governantes é uma mera questão de técnica, de escolha tática, e não de compromisso autêntico. Por isso – porque não é a transformação formal de uma verdade – é que se esgota tão depressa e entra na lógica da caricatura e do exacerbamento. É um mecanismo cego, exibicionista e sem consciência de si. Curioso é verificar que são cada vez mais breves os ciclos de afirmação e esgotamento do estilo. Nem é necessária muita atenção crítica para verificar que o estilo do atual governo já começa a ficar saturado dessa infralinguagem a que chamamos tiques. E ainda nem tivemos tempo de esquecer os automatismos exasperados do estilo do governo anterior. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 13.8.2011.

Uma criança sobe o monte #10 (A child climbs a mountain)


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