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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #157 (António Guerreiro): O 11 de setembro e o ‘Kitsch’ total

O 11 de setembro – pudemo-lo verificar agora até à náusea – tornou-se, sobretudo pela exploração das imagens literalmente espetaculares que o documentam e, ao mesmo tempo, o monumentalizam, grandiosa presa de um ideal estético. E esse ideal estético é o kitsch. Dito de uma maneira direta: o 11 de setembro tornou-se um espetáculo kitsch planetário – o maior da história da Humanidade – que faz com que aquilo em relação ao qual se reivindica um dever de memória seja afinal objeto de um esquecimento grosseiro. O extermínio dos judeus deu origem a uma atitude mística e iconófoba porque dele não havia imagens: o ataque às torres gémeas deu origem àquela comoção universal que se tem perante o sublime porque havia demasiadas imagens grandiosas. E, assim, o 11 de setembro resultou numa iconofilia (e é como reação a esta iconofilia, e não como alusão a um irrepresentável, que temos de interpretar a capa totalmente negra da Revista Única, concebida por Pedro Cabrita Reis). 

Essa comoção não esconde um enorme fascínio, que precisa de ser disfarçado com pudicas exclamações de horror. E esse fascínio – que é o fascínio pelo sublime – tem por base o kitsch espetacular do qual ficámos reféns. Não são as fotografias e os registos em vídeo que são kitsch, em si, mas o modo como são difundidos, editados, sublinhados, musicados, legendados, repetidos, de modo a exercer uma ditadura emocional. O músico alemão Karlheinz Stockhausen, logo a seguir ao colapso do World Trade Center, disse que se tratava da maior obra de arte total. Foram declarações muito inconvenientes, que lhe valeram o cancelamento de muitos concertos. Mas estas palavras de Stockhausen eram afinal o prenúncio de uma estetização irresponsável que viria a seguir, ao nível das revistas de moda. O resultado é o que se vê. Se Flaubert voltasse para reescrever o seu “Dictionnaire des idées reçues”, diria na entrada sobre o 11 de setembro: “Deste dia, dizer sempre ‘o dia em que...’”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 17.9.2011.

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