Ao pé da letra #188 (António Guerreiro): Indústria da consciência
Quando entramos numa livraria de uma grande cadeia para comprar o livro X do autor Y, o mais certo é termos de o procurar seguindo códigos de exposição concebidos pela própria livraria e que obedecem a uma racionalidade que consiste em condicionar a consciência do cliente. A livraria pensa por nós e exibe com garbo os seus bons ofícios, retirando-nos a soberania da qual julgamos ser possuidores. Servimo-nos habitualmente do conceito de indústria cultural para explicar este modo de funcionamento de quem venda esta singular mercadoria, mas talvez o conceito forjado por Adorno e Horkheimer se revele inadequado. Já nos anos 60 do século passado um grande poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, sentiu a necessidade de introduzir um conceito que era um corretivo ao da Escola de Frankfurt: o conceito de Bewußtseins-Industrie, de indústria da consciência, que se revela ainda hoje com um maior poder analítico. | O que Enzensberger viu com uma enorme acuidade é que a noção de “indústria cultural” resulta de uma enorme “ilusão ótica” dos críticos da cultura. Porque não se trata de uma indústria que produz cultura, nem sequer de uma indústria que produz qualquer coisa; produzir não é o que lhe interessa, mas sim a mediação derivada, secundária ou terciária, do produto, fazendo-o passar por aquilo que ele não é. Se a palavra “indústria” encontra ainda o seu lugar, é para sugerir que é a consciência que é induzida, instilada, mediada e reproduzida – mas não produzida – industrialmente. Segundo esta conceção, chamar-lhe “indústria cultural” só serve para esconder e fazer parecer inócuas as consequências verdadeiramente “culturais” do funcionamento da indústria da consciência. E é isto que, como um laboratório, sem comparação com um supermercado – onde se explora um impulso e não uma consciência induzida –, nos mostram hoje as livrarias. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 21.4.2012. |