Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #188 (António Guerreiro): Indústria da consciência

Quando entramos numa livraria de uma grande cadeia para comprar o livro X do autor Y, o mais certo é termos de o procurar seguindo códigos de exposição concebidos pela própria livraria e que obedecem a uma racionalidade que consiste em condicionar a consciência do cliente. A livraria pensa por nós e exibe com garbo os seus bons ofícios, retirando-nos a soberania da qual julgamos ser possuidores. Servimo-nos habitualmente do conceito de indústria cultural para explicar este modo de funcionamento de quem venda esta singular mercadoria, mas talvez o conceito forjado por Adorno e Horkheimer se revele inadequado. Já nos anos 60 do século passado um grande poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, sentiu a necessidade de introduzir um conceito que era um corretivo ao da Escola de Frankfurt: o conceito de Bewußtseins-Industrie, de indústria da consciência, que se revela ainda hoje com um maior poder analítico.  

O que Enzensberger viu com uma enorme acuidade é que a noção de “indústria cultural” resulta de uma enorme “ilusão ótica” dos críticos da cultura. Porque não se trata de uma indústria que produz cultura, nem sequer de uma indústria que produz qualquer coisa; produzir não é o que lhe interessa, mas sim a mediação derivada, secundária ou terciária, do produto, fazendo-o passar por aquilo que ele não é. Se a palavra “indústria” encontra ainda o seu lugar, é para sugerir que é a consciência que é induzida, instilada, mediada e reproduzida – mas não produzida – industrialmente. Segundo esta conceção, chamar-lhe “indústria cultural” só serve para esconder e fazer parecer inócuas as consequências verdadeiramente “culturais” do funcionamento da indústria da consciência. E é isto que, como um laboratório, sem comparação com um supermercado – onde se explora um impulso e não uma consciência induzida –, nos mostram hoje as livrarias.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 21.4.2012.

[Programa de cinema: ‘En nuestros jardines se preparan bosques’]

Ao pé da letra #187 (António Guerreiro): Modos de dizer

Günter Grass escreveu um poema, que foi publicado no “Süddeutsche Zeitung” – “O que deve ser dito” –, contra o que ele entende ser a ameaça bélica de Israel, que não é verdadeiramente um poema. Se fosse, pelo teor de conflito e polémica que já provocou, merecia ser dado como exemplo da problemática relação entre poesia e política. De poema, tal texto só tem as cesuras que lhe dão a forma versificada, e a questão que se coloca é por que razão o escritor quis que o seu teto com carácter de manifesto tivesse a forma de um poema e não de um texto em prosa. É verdade que, dessa maneira, ele pode vagamente reclamar-se dos mais antigos poemas políticos em língua alemã, os poemas gnómicos, sentenciosos, chamados Sprüche, mas é mais plausível que tivesse antes querido introduzir um fator de obliquidade, por pudor ou má consciência em isolar completamente o conteúdo político do texto. Através dessa dissimulação poética, paradoxal porque óbvia (tanto mais que há uma alusão a Hölderlin no título), o escritor Günter Grass assinala implicitamente que entrou em conflito com a sua tomada de posição política.  

Tendo escolhido a forma do verso, introduziu interrupções, hiatos, quis significar que “o que deve ser dito” é algo de que não se pode falar. A forma da poesia não lhe serviu senão para prolongar um subentendido. E isso é o que o seu texto tem de mais polémico, porque se trata da mais funda questão alemã desde a II Guerra Mundial, com violentas emergências cíclicas (antes de Grass, tinha sido outro escritor, Martin Walser, a provocar uma polémica semelhante, em 1998, no discurso de agradecimento do Prémio da Paz dos Livreiros Alemães). O efeito que Grass quis produzir com o seu poema faz lembrar uma frase de um outro escritor alemão, Tucholsky, que morreu em 1935: “Por causa do mau tempo, a revolução alemã produziu-se no domínio da música.”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 14.4.2012.

[‘Atelier’ de Susana Duarte]

Ao pé da letra #186 (António Guerreiro): Políticos e cronistas

Surgiu e prosperou em Portugal uma categoria que não existe em nenhum país: a do político que tem colunas de opinião nos jornais e assento como comentador na televisão. Este prodígio de ubiquidade, naturalizado pelo hábito, está ao serviço da hipertrofia da opinião – essa “magia negra”, como dizia Kraus – e da política dos ‘protagonistas’ (palavra fatal) que prescindiu das ideias. O político cronista e comentador segue um protocolo de denegação da sua incompatibilidade: faz pequenas inflexões que não o subtraem ao território pragmático de fé e conveniência, mas que lhe permitem exibir um je-ne-sais-quoi e um presque-rien de autonomia, adquirindo aura de autor no mundo mimético dos atores. Estas pequenas deslocações, propiciadas por um stock de operações retóricas, servem dois critérios: garantem o mínimo de crédito à opinião (já que ela não se deve confundir com propaganda) e simulam o alargamento da esfera pública.  
Os políticos investidos de cronistas fazem uma incursão redentora no mundo profano, como quem se desembaraça provisoriamente das suas vestes. O problema, porém, como está bem patente no que escrevem e dizem, é que se trata de um jogo de representações que tem como resultado não o alargamento da esfera pública e civil mas uma extensão do palco para o mero jogo político. O teor de pensamento crítico que produzem é nulo. A incompatibilidade entre o lugar de político em funções e cronista político, reconhecida em todo o lado, não sofre nenhum desmentido pelos hábitos nacionais, a não ser num plano meramente formal. Muito haveria a ganhar, no debate político, se esta forma de colonização fosse, como em todo o lado, considerada inadmissível, e fossem convidados, com a mesma frequência e generosidade, os “autores” do mundo civil a entrar no território que ocupam os políticos-atores.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 6.4.2012.


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