Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias



A mais doce, mais misteriosa e bela praticante da rara arte da subtileza - a Cristina - voltou...
... e Augusto M. Seabra inicia uma nova forma de expressão no seu importante percurso de crítico.

Justificação da crítica francesa para a estranha tradução do título de um filme


«À en croire le titre allemand, l'affaire serait plus compliquée et le désir non seulement despotique et animal. La traduction tente d'en rendre la richesse sémantique, en insinuant un double sens quasi godardien, avec le pluriel en parenthèses. "Sehnsucht", que la langue française n'est pas en mesure de reproduire littéralement, exprime un désir mélancolique, un état amoureux rêveuse et langoureux qui va au-delà de l'inclination libidineuse à laquelle, par l'empire naturel, l'on ne saurait échapper.»
Axel Zeppenfelt, Cahiers du cinéma, Outubro 2007

Isto a propósito do belíssimo filme Sehnsucht (2006) de Valeska Grisebach ter saído em sala em França com o título, no cartaz em maiúsculas, de DÉSIR[S]. Em toda a restante documentação, é referido como Désir(s), ou seja, em português, Desejo(s).
Que estranho este hábito francês de alterar os títulos nas traduções, bem para lá das dificuldades de transposição semânticas! E que imaginação especulativa para o tentar justificar! Assim se enchem páginas... E, no entanto, na última dos Cahiers, a das estrelinhas acumuladas, o apelido da realizadora apareceu dois meses seguidos mal escrito. Mais correcção, menos especulação!
Ora, e em primeiro lugar, convinha não confundir assim o emprego de parênteses rectos com o de parênteses curvos. É precisamente essa confusão que permite a piscadela de olho godardiana, já que é com parênteses curvos que se escrevem as Histoire(s) du cinéma.
Exceptuando o caso optimista de se acreditar na utilização a este propósito da concepção deleuziana de desejo, que nada tem a ver com o prazer e não se restringe de todo ao corpo, não se percebe muito bem que invenção francesa é esta do(s) Désir[s], quando o termo alemão "Sehnsucht" quer dizer algo de aproximado à nossa "saudade". E esta, no filme, circunscreve-se à decorrente do encontro amoroso entre pessoas. Por isso era o título inglês tão bem conseguido: Longing.
No seguimento, e na vaga esperança que o filme volte a ser projectado em Portugal, deixo aqui a sugestão de um título português, que talvez peque apenas pela subtileza: Apego. Revejo o filme, outra vez sem legendas, e creio que também podia ser Anseio.

Tabela de química comparada


Filme
Gerry
Elephant
Last days
Paranoid Park
Ano
2002
2003
2005
2007
Realização
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Montagem
Gus Van Sant
Casey Affleck, Matt Damon
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Direcção de fotografia
Harris Savides
Harris Savides
Harris Savides *
Christopher Doyle *
Kathy Li

Sobre a extrema perigosidade no manuseamento de directores de fotografia:
«The film's cinematographer was Christopher Doyle [...] known primarily for the work he's done with Wong Kar-Wai; characterizing the process of working with him, van Sant said it was "a lot of discussion, a lot of analyzing." [...]
Someone asked if he made a conscious effort to make this film different from his previous work. He said there were differences in the story, source material, and style of storytelling, which was more specifically psychological, more old-fashioned in style.
He said, "sometimes it was like Chris Doyle, Wong Kar-Wai," and said at other times it was a hybrid style, more "austere" like Elephant
*
«A maneira como o sr. rodou “Paranoid Park” é muito diferente da de “Gerry”, “Elefante” ou “Last Days”?
Sim. Esses três filmes eram definidos por conceitos muito rígidos. “Paranoid Park” era muito aberto. Fizemos o que queríamos. Não nos prendemos ao estilo.
Esse filme aparece como um meio-termo entre “Elefante” e seus filmes hollywoodianos, como “Gênio Indomável” [Good Will Hunting].
Sem dúvida. Encontramos convenções dramáticas e buscamos enfrentá-las. “Last Days”, “Elefante” e “Gerry” foram austeros pela maneira como foram filmados. Há filmes cuja história é austera, mas que são rodados de forma convencional.»
*




«Everyone seems to know what a mother may and may not do, and any violation of these expectations is met with massive moral sanctions – unlike when fathers fail to fulfill their expected roles. But in reality, society is full of mothers who do not fulfill their roles as they are expected to.
That was my starting-point. My goal was not to describe a prototype, but a specific, singular person; a woman who claims her mother was never a mother to her.» – Maria Speth
«The pace at which information is revealed allows us to speculate as if deciding what this particular glass of wine really tastes like. The characters are not types, explained by previous exposure, but works-in-progress, sketches of people who could exist, full of uncertainties, anxieties, 'dreams deferred,' and fluctuating percentages of love and pain. The film ends without ending because living does not end when the credits come up.» – Brigitta Wagner

Madonnen / Madonas (2006) 125' de Maria Speth
European Film Festival Dom, dia 11, 14h - Cascais Villa 1 | 2ª, dia 12, 19h30 - Cascais Villa 5

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #10: Da indecidibilidade



Escrevia, em antecipação a State legislature, último filme de Frederick Wiseman, que «a complexidade da vida americana se torna sempre mais intelígivel nos seus filmes», muito para lá da política instituicional. Mas, abordando neste caso uma instituição política estadual em concreto, a Idaho Legislature, Wiseman demonstra como essa complexidade é também ela inerente às próprias instituições consideradas eminentemente políticas, dissolvendo, como habitualmente em Wiseman, os juízos simplistas associados. (Dissolver juízos simplistas, as certezas, não estará entre as menores contribuições que se podem pedir a um documentário.) Como diz modestamente a sinopse oficial, «o filme é um exemplo das realizações, valores, constrangimentos e limitações do processo democrático». A este propósito, creio particularmente útil esclarecer que nada é menos certo do que considerar filmes sobre política como sendo eles próprios políticos. Esta confusão, a meu ver extremamente infeliz e improdutiva, mantém absolutamente estanques política e cinema, cada qual no seu canto indiferente ao outro, quando aparentemente seria o contrário que aconteceria nos ditos documentários políticos. A assim chamada política pode manter assim uma autonomia discursiva tantas vezes auto-referencial, e o cinema uma aparente e enganadora neutralidade, que chamaremos por facilidade de expressão, “formal”. (Pondo a questão como não deve ser posta, digamos que é bastante provável que um filme com posições discursivas “de esquerda” seja, cinematograficamente, um filme “de direita”.)


De resto, é também elucidativo que, sendo Frederick Wiseman considerado quase unanimemente o maior documentarista vivo (provavelmente o maior documentarista de toda a história do cinema e um dos maiores realizadores vivos do cinema tout court), ou precisamente por isso, os seus filmes, é certo que de longa duração, passam invariavelmente a horas extremamente bizarras. Como que se as obras-primas se pudessem tornar repetitivas e maçadoras. Este State legislature foi programado pelo DocLisboa para as 10h30 de uma segunda-feira! Talvez isso contribua para que o preenchimento do Grande Auditório da Culturgest não fosse impressionante, com pouco mais de uma centena de pessoas, a maior parte, aliás, presentes por obrigação escolar. Mas o interesse do filme não reside no contexto da sua apresentação, explode com ele. [É esta capacidade explosiva das obras de arte e do pensamento em geral que me parece tão necessária. Como um livro que aberto nos explode na cara.] State legislature, nos seus 217 minutos que passam a correr, parece constituído por uma única cena, e não apenas pela homogeneidade do cenário.
O gesto maior do filme é, ao omitir a pertença partidária dos legisladores e a conclusão em voto da quase totalidade das matérias legislativas discutidas, mostrar a eminente indecidibilidade do próprio processo democrático, ou seja, a natureza resistente da sua abertura, mesmo quando sujeita a vários constrangimentos. Uma longa e genial cena, a


penúltima do filme, apresenta uma discussão tensa sobre um procedimento excepcional, no interior de uma comissão, que visa, em última análise, impor uma emenda à constituição estadual. A dita emenda, cujo conteúdo não é explicitamente declarado na montagem, é sempre nomeada por “HRJ 9”, fazendo crescer a abstração daquela discussão processual. À sinceridade das locuções dos legisladores, à maneira americana, junta-se portanto a extrema opacidade das posições, pois não conhecemos a filiação partidária nem o que estão a debater. Certos legisladores com a posição favorável à emenda constitucional parecem-nos mais simpáticos, pois já os vimos anteriormente, por exemplo, ter posições de frontalidade contra determinados lóbis, enquanto outros, como a própria presidente da comissão, que procura impedir o procedimento que visa a alteração, nos parece ríspida e autocrática. Ainda no início desta interminável discussão é feita uma mera alusão à protecção das minorias, o que circunscreve para o espectador, embora não decisivamente, a natureza da emenda constitucional. À medida que o debate vai avançado e a votação se processa, com as respectivas declarações de voto dos legisladores da comissão, a simpatia e a antipatia vão-se invertendo, dado que se torna finalmente compreensível, para quem acompanhe um pouco a política americana, que o que está efectivamente a ser ali debatido é um procedimento
excepcional que visa inscrever na constituição estadual do Idaho a menção “entre um homem e uma mulher” na parte relativa ao casamento, impedindo assim que algum juíz venha a entender como legal naquele estado o casamento homossexual! É inacreditável o comovente que se torna esta discussão sobre um procedimento obscuro de emenda constitucional num obscuro estado americano! Não pela temática política em si, mas pela reversibilidade dos papéis simpático-antipático dos legisladores em conjunção com o conteúdo concreto. Trata-se de mais um exemplo do que se poderia chamar de ambiguidade afirmativa.
E apesar do silêncio, necessário a seus olhos, com que Wiseman faz rodear as suas obras (sendo, por exemplo, extremamente lacónico nas entrevistas), é evidente que este filme constitui, desde logo por ter sido feito, uma posição claríssima, de cidadania cinematográfica, sobre o actual estado da democracia americana. Mas o sentido dessa posição não pode ser experimentado sem passar pelo incómodo de ver efectivamente o filme (até ao fim). Neste contexto, talvez não fosse inútil interrogarmo-nos porque terá presentemente Wiseman um outro filme interditado. É que ainda existem filmes proibidos, e estes não são necessariamente os que se declaram políticos!

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #9: Despudor do rosto, pudor do corpo

Parece haver o risco dos filmes levarem por vezes demasiado longe, bem para lá do necessário, a ideia que os enforma. Ao manter-se assim tão fiel à sua ideia, ou mesmo ao seu título, Compilation, 12 instants d’amour non partagé de Frank Beauvais, constitui-se, infelizmente, como uma pura compilação. Trata-se de uma série de 12 canções com os correspondentes grandes planos de um mesmo rosto que as ouve. Retenha-se o pormenor elucidativo de haver igualmente no filme aqueles breves segundos que separam nos cedês uma música da outra. O que fica de fora é tudo o resto, desde logo o corpo do ouvinte, mas também, e sobretudo, os momentos de lassidão, de antecipação ou do depois das canções, o que mais importa, ou até mesmo o desconforto. Tanta fidelidade torna-se demasiado cozida, não deixando nada vivo de fora intrometer-se. Aos realizadores, como aos demais artistas e pessoas vivas em geral, pede-se que não sejam demasiado fiéis a si próprios, que se enganem e escapem às leis que para si próprios criam. Diria até, no fim de contas, que esse gesto de libertação contra si próprio é que é o criativo, talvez mais do que as regras que se criam e que constituirão um estilo posterior reconhecível. Boris Lehman, no debate após a projecção do seu Tentatives de se décrire, explicava que tinha decidido incluir aquelas partes iniciais dos planos, em que fazia a claquete com as mãos, e as finais, em que se o ouvia dizer “corta”, para introduzir alguma dureza. Eis umas das muitas coisas que parecem faltar a Compilation.


Mesmo aquele que poderia ser o ponto de partida mais interessante do filme, a constatação de como são interessantes as expressões faciais (e corporais) das pessoas em posição de escuta, por oposição às das pessoas que olham, acaba afinal por ser meramente sugerido. A propósito, estou em crer que o cinema tem exercitado muito mais esta homologia dos olhares (entre o espectador e as personagens) do que a heterologia do olhar e da escuta.
Outra das coisas que lhe faltam é o pudor. A presença constante daquele rosto do jovem amado pelo realizador, em 12 grandes planos que totalizam 40 minutos, é uma experiência extremamente constrangedora. (Foi assim, pelo menos, que eu a senti.) Um duplo embaraço, ao do jovem actor filmado de tão perto segue-se o nosso. Aliás, de um constrangimento particular, que nunca tinha tido enquanto espectador de cinema, pela sobreexposição de um rosto (ou corpo) perante nós, e que é semelhante, devo dizer, ao que sinto, por vezes, quando no teatro, ou quando alguém nos faz uma pergunta, banal ou importante, que nos apanha desprevenidos e a que não sabemos sequer como começar a responder. Quando assim é só nos resta baixar os olhos. (Um pouco como fazem os carrascos do S-21 de Rithy Panh, talvez em expressão da sensação de vergonha.)
Nestas condições precárias, aquilo torna a experiência de ver o filme suportável são as bonitas músicas, muito bem escolhidas, e o acompanhamento, de olhos em recato, que


podemos delas fazer nas legendas que traduzem a letra das canções. Pelo menos eu evitava a todo o custo o rosto do jovenzinho, que, imaginem, foi sujeito a 250 planos semelhantes. Também por isto não pode ser tomado assim como tão evidente aquilo que é proclamado sobre este filme, que seja ele próprio uma consequência do amor do realizador pelo seu actor (para além do cinematográfico, na vida real, quer dizer). Não se tratará antes de um espelhamento que já nada terá a ver com o amor, que será quase o seu contrário, uma cristalização do olhar de quem ama? O realizador ama, é dito. Mas o filme, no entanto, não. E porque havia de o fazer? Apenas pela força da vontade, quando o rosto daquele que é amado aparece assim desfeito pela sobreexposição, apagando os traços do seu segredo, tornando-o vulgar, dificilmente amável? E não é esse precisamente o resultado dos amores maldosos ou desequílibrados, das paixões funestas?
Pergunto-me como aguentaram embaladas este despudor do rosto as pessoas que sairam depois durante a projecção que se seguiu na mesma sessão, a do filme De son appartement de Jean-Claude Rousseau (incluído no mesmo programa ‘Riscos e ensaios’). Sugiro por isso algum cuidado a ter nas avaliações que se fazem destas pretensas documentações do íntimo. Neste aspecto, o íntimo por conhecer em La pudeur et l’impudeur de Hervé Guibert, revisto, não perdeu quase nada da sua força (cinematográfica).


Neste gesto, que agora vemos mais afastado de uma actualidade premente, e que nos surge surpreendentemente tão simples e livre, apesar de focar a enormidade da experiência da doença do realizador, sob a qual se centra, são menos os momentos líricos de composição que resistem, os gestos artísticos explícitos, e antes os em que há uma verdadeira crueza na exposição do corpo. São esses que são justos perante a experiência da doença. Guibert resistiu estoicamente a transformar a doença, a SIDA, num assunto privado, pessoal, no mau íntimo. Seja a cena do realizador a cagar da diarreia provocada pelos medicamentos com a porta da casa-de-banho aberta, seja a sua operação, a tomar duche, a ver-se ao espelho nu, etc., tudo o que tenha a com a exposição franca do corpo surge como documentando algo que não conhecíamos, de que não tínhamos feito a experiência (ainda que indirecta), e que era (e ainda é) importante ver. E tal de forma absolutamente nada sentimental. Por incrível que pareça, são momentos extremamente fortes de pudor do corpo. A aparente sobreexposição (nudez, traços da doença, etc.) traduz-se em recato. [Mais uma vez, no cinema não há regras; há modos de fazer, casuísticos.] O importante é que Guibert resistiu a filmar o pudor (ou o despudor correlativo) de um íntimo que estava pressuposto, mostrando antes o extremo pudor da exposição de um corpo novo, não no sentido de jovem, mas por atacando pelas novas formas da infinita doença.

Outros filmes de Novembro


Pepi, Luci, Bom y otras chicas
del montón

Pedro Almodóvar
1980, 82’
European Film Festival
5ª, dia 8, 14h15
Cascais Villa 2 + outras sessões

¿Qué he hecho yo para merecer
esto!!

Pedro Almodóvar
1984, 101’
European Film Festival
5ª, dia 8, 15h
Casino Estoril + outras sessões

La ley del deseo
Pedro Almodóvar
1987, 102’
European Film Festival
5ª, dia 8, 22h
Casino Estoril + outras sessões

Modern times
Charles Chaplin
1936, 87’
European Film Festival
6ª, dia 9, 14h
Cascais Villa 1

Belarmino
Fernando Lopes
1964, 72’
6ª, dia 9, 21h30
Cinemateca, Lisboa

Eraserhead
David Lynch
1977, 89’
European Film Festival
2ª, dia 12, 14h15
Cascais Villa 2 + outra sessão

L’albero degli zoccoli /
A árvore dos tamancos
Ermanno Olmi
1979, 180’
European Film Festival
2ª, dia 12, 14h15
Cascais Villa 3

The dead zone
David Cronenberg
1983, 83’
European Film Festival
3ª, dia 13, 14h45
Cascais Villa 3

Ansikte mot ansikte / Face a face
Ingmar Bergman
1976, 135’
3ª, dia 27, 15h30
Cinemateca

Aus dem Leben der Marionetten /
Da vida das marionetas
Ingmar Bergman
1980, 104’
5ª, dia 29, 15h30
Cinemateca

Paris, Texas
Wim Wenders
1984, 142’
6ª, dia 30, 19h
Cinemateca

[apenas filmes vistos, sem repetições]

Notas demasiado soltas: Meta-nota

[Ao contrário do que seria desejável, é notório que exerço cada vez menos qualquer espécie de controlo sobre os inevitáveis produtos da minha cabeça. Como já indicava Thomas Bernhard, tal procedimento configura uma terapêutica. Não parece haver outra. Quanto mais parvoíces (das minhas, atenção) escrevo, mais me sinto saudável. Por isso, é provável que hajam bastantes desencontros entre as minhas parvoíces e a vossa leitura. O contrário é que seria de espantar. Vocês têm as vossas (verdadeiras) parvoíces para cuidar, têm lá tempo e cabeça para as (verdadeiras) parvoices dos outros. No espinhoso e dificultoso campo do humor, é sabido que os gostos são por demais divergentes. Mesmo ao nível do seu simples entendimento, na ausência de letreiros, são enormes os equívocos e as sobreleituras. Vejamos nestas «notas soltas, demasiado soltas». Quanto de vós não tomaram como um ataque mais ao menos velado aos direitos adquiridos dos gays aquele exercício de estilo em que me empenhava por intricar ao máximo uma minha muito imaginária retórica sociológica-tecnocrática? Quantos acreditaram que realmente um blogue como este recebe algum correio de leitores, por amor de Deus? Quem pernoitou na fina camada que separa a especulação sobre os meandros da zoofília da acusação estrita, porventura possível, eu sei lá, de que todas as pessoas que têm animais de estimação são zoófilas? Ah, para mais está tudo ao molho, não é? Não há uma personagezinha que indique o caminho do sentido de humor. Pois, mas as personagezinhas a mim põem-me doente, indo contra a terapêutica, o que é pior. Assim, cada texto pode estar armadilhado, não vou dizer onde é que é para rir. Talvez vocês achem piada a outras matérias sobre as quais não sou versado. Façam vocês as vossas personagens que fodam as vossas terapêuticas.]

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #8: A pequena atenção

Apesar de tudo, há esperança. Um filme pode progressivamente ir desmontando os seus próprios pressupostos. (Não se saia da sala logo a correr, há que dar uma hipótese.) Un jour à Marseille de Mauro Santini começa com um dispositivo explícito, pouco agradável, de peeping tom; alguém espreita oculto pelas frestas da janela para a rua. Mas, à medida que as sequências do filme aparecem, tal vai-se atenuando. O gesto demasiado declarado desvanece-se, até se tornar um modo como outro qualquer. Ou quase, como veremos, por dar assim lugar à extrema atenção. Parece-me que esta não pode ser desprezada apenas porque constitui uma observação inobservada (quer dizer, por o dispositivo do filme ser desconhecido para quem está a ser filmado). Há momentos em que certos pressupostos éticos ligados à actividade cinematográfica, e ao documentário em particular, podem preceder a visão em concreto dos filmes, obstruíndo a fruição que lhes é devida.
À distância, isolada, com bastante grão, e com um som extremamente rarefeito que contraria magicamente a evidência do directo, a última e mais longa sequência do filme, focando a varanda de alumínio de uma habitação branca quase ao nível do mar sobre as rochas da costa de Marselha, é um exercício prodigioso sobre a atenção, quase uma sua tese. É importante distinguir aqui a atenção da sua afim, a contemplação. Há aqui uma mobilidade da câmara que oscila e segue, por vezes hesitanto, as estranhas e pacificadas personagens familiares, que descem sobre a rocha ou se chegam lentamente à frente da varanda. A atenção incide sobre uma multiplicidade de eventos, mesmo em tão estreito espaço, desdobrando-se, em particular, sobre uma menina que observa e vem a alcançar, depois de se calçar apropriadamente, algo que se encontra na água (que não chegamos a perceber o que é). Um homem mais velho chega-se, observa e volta-se para o outro lado, fumando pausada e melancolicamente. Tudo isto num cenário maioritariamente branco, frequentemente (propositadamente?) sobreexposto no sentido fotográfico, como que avisando para as dificuldades da atenção serem mais o excesso de signos do que a sua rarefacção.

O espectador ocioso #6: Cabelos assim molhados

O espectador ocioso, como aliás tanta gente, gosta de ver filmes na caminha. Naquelas noites mais frias e solitárias, como aliás tantas noites são, profia a surpresa da programação inesperada de um bom filme. Vá lá, pelo menos de um razoável, assim não especialmente difícil de ver, que o liberte de ter que andar a fazer zapping nervoso pelos quatro, e já são demais, canais de televisão a que tem acesso, saltando entre vários filmes e séries. Quando são maus ou pouco estimulantes, tem que se os intercalar com outros, diz. É perfeitamente possível e muito mais saudável ver vários deste calibre ao mesmo tempo. Mesmo certos filmes menos exigentes com a sua atenção, ainda que bons, confessa envergonhado para si próprio, até os prefere ver na televisão. Do lado da tristeza, a generalidade dos filmes americanos actuais, por exemplo. Ali é que o espectador ocioso acha que eles estão bem. Em pequenino, na televisão. Quem se lembraria de ir ver o The village do Shyamalan ao cinema? Para onde iria aquele brilhozinho todo? Do lado da alegria, ah, quem não sabe o que é ver os clássicos americanos entre o edredão e as almofadas? A singular descontração inocente que estes filmes permitem não diz mais respeito ao aconchego da caminha do que à cadeira quase eléctrica da sala?
Na outra noite, o espectador ocioso vagueava perdido entre tantos excessivos canais na madrugada da televisão de uma amiga, até que um genérico azul, nada arrojado mesmo, lhe prendeu a atenção. Era La niña santa/A rapariga santa de Lucrecia Martel! Não conhecia, por suposto. Tinha deixado o seu cepticismo imperar outrora, mas tinha agora até uma grande curiosidade em o ver. E o filme, verdade seja dita, não desmerece de todo, mas isso, no fundo, não interessa nada agora aqui para o caso. Não é que o espectador, no meio do seu
ócio tão insistente, não ficou foi a pensar onde tinha ele visto antes aquelas raparigas devotas, de cabelos compridos assim molhados e escorridos, e de caras extremamente pálidas? É sabido o complicado que são os cabelos assim molhados, naquele estado em que não se sabe bem se estão molhados da água recente de lavar ou da gordurinha do couro cabeludo e demais impurezas húmidas. Confusões tão queridas. O filme, como seria de esperar, não esclarece cabalmente e de forma definitiva a referida dificuldade. Mas depois de muito matutar, distraindo-se por vezes da catrefada de inabilidades seguidas das personagens doridas que o filme misericordiamente dispunha, encontrou, mais do que a mera origem daquela imagem dos cabelos escorridos assim molhados de adolescentes femininas imberbes e já tão perversas, toda uma estranha, reconhece, filiação cinematográfica. Onde se lembrava ociosamente de tantos cabelos escorridos assim molhados? Pois não era dos Ossos de Pedro Costa?! Desta é que o espectador não estava à espera! Mas é inegável, se bem se lembram vocês, que a Vanda e a Clotilde em Ossos, pelo menos a Vanda de certeza, e No quarto da Vanda também, usavam a mesma cara pálida e os cabelos assim para o molhado. Se Lucrecia Martel, que é tão jovenzita, viu estes filmes ou não, não pode um espectador ignorante assegurar. Não interessa. A personagem da rapariga santa chama-se Amália, se mais provas precisas fossem. Fica por demais provado que as filiações cinematográficas também se medem por coisas tão comezinhas como os cabelos escorridos e as caras pálidas, pelas dificuldades em distinguir o molhado do sujo, e não apenas por muito vagas subtilezas formais. Não há que enganar.


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