Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #9: Tomates

«Talvez a cinefilia dos programadores, apesar das aparências, passe por ser uma actividade secreta e envergonhada de colocação de armadilhas, de filmes inesperados, no meio do engano» — dizia eu aqui, no início do festival. Era o que tinha de mais simpático para dizer na altura. Estava pessimista, confesso.
Mas e agora, como me posso retractar? Depois do choque e esplendor da visão de ROZ (Pink) de Alexander [ou Alexandros?] Voulgaris e CHARLY de Isild Le Besco, mesmo no meio da Competição Internacional, que tipo de flagelação devo sofrer?
Não devia ser a Competição Internacional, a vermelho no programa, note-se, a mais considerável catedral do respeito? Que fazem lá estas duas imensas bizarrias que parecem cuspir no chão da nobre arte cinematográfica, embora na verdade o beijem de luxúria? Nem uma pinta de pop nem de cool.
Vejam bem, a primeira projecção de ROZ, a lindíssima bizarria grega, tinha a Sala 1 do Londres quase cheia. Ena, tanta gente ao engano! Não sabiam o que os esperava! Que felicidade acidental! Pensavam que a senhora Competição Internacional era respeitável! Pois não é! E eu também não sabia.
Portanto, algo está claramente errado aqui... A menos que seja eu. Tenho que admitir que foram precisos tomates para colocar estes filmes na Competição Internacional (mesmo andando a bisbilhotar lá por fora). E os senhores programadores, sim senhor, tiveram-nos.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #8: O Anticrítico

Façamos o seguinte experimento de pensamento. Imaginemos que não é mais possível confiarmo-nos, como outrora ainda era, a um crítico cultural, por exemplo de cinema. Que aquela alegre e saudável entrega das nossas escolhas à mente iluminada de alguém que conhecia tantas coisas mais que nós, que viajava por esse mundo fora de festival em festival, que lia muitos livros grossos sobre coisas difíceis, entrevistas de realizadores, etc., que sabia muitas coisas raras, que, em suma, essa grande cabeça de cultura cinematográfica, esse maître à penser da sala escura, não existe lamentavelmente mais. Que estamos sós, e mal acompanhados, no mundo áspero da escolha cultural.
Obviamente, isto não quer dizer que não hajam já praticantes louváveis dessa nobre arte de mandar, que tenham desaparecido todos os aprendizes de “passadores”, que ninguém seja mais capaz de escrever umas frases aceitáveis e compreensíveis sobre um filme ou dois. Porque é mentira, ainda os há. E em actividade. Mas que diferença de tamanho para os nossos antigos guias! Estes de agora prometem-nos um filme tal e tal coisa, e pode ser que seja mesmo assim. Mas não nos vamos entregar às suas mãos, pois não? Não, porque fizemos da suspeita uma virtude e, para mais, já não fica assim tão bem fazer de filho. Como dizia Michaux, agora somos «filhos de filhos».
Neste contexto, neste ambiente geral de desconfiança que reina por toda a parte, julgo finalmente reunidas as condições adequadas, neste experimento de pensamento, para o surgimento de uma nova figura no planetário cinematográfico, para a irrupção do Anticrítico!
E que trará de novo o Anticrítico? Servirá igualmente de guia, mas ao contrário. À precariedade dos críticos positivos, que acertam de quando em vez nas nossas expectativas impossíveis de contentar, responde o surgimento do Anticrítico com o descontento absoluto dessas expectivas. Assim, se o Anticrítico vier e achar, deixa cá ver, que, por exemplo, o filme MADONAS de Maria Speth “é uma grande seca”, embora certamente por outras palavras mais sofisticadas e admissíveis na imprensa corrente, pelo seu fabuloso poder de inversão, esse filme revestirá aos nossos olhos encantos inauditos e do mais por demais subtil. É esse o singular poder do Anticrítico! A exactidão negativa absoluta, o enganar-se afinal sempre. Que boa nova! É toda uma outra confiança que ganhamos, com um desvio certamente, mas ainda uma certeza verdadeira.
Outro exemplo imaginário do seu poder: o filme ROZ (Pink) de Alexander Voulgaris (um grego bizarro) “é não sei o quê mas não vale a pena” [simplifico], zás!, esse filme transformar-se-á numa composição original de brilho comovente. Não duvidem do poder! Este, por enquanto ainda no reino fecundo da imaginação, não se limitará no vindouro ao valor geral do filme. Descerá ao detalhe, e elucidará, pelas virtudes da negação, as vantagens mais escondidas das obras. Eis como será em breve possível, assim o esperamos, que, no belíssimo (estado pós-negação) CHARLY de Isild Le Besco, a actriz surja como a única coisa que se safa de um filme apenas simpático (estado pré-negação). Quando a incrível potência do Anticrítico se nos antecipar, ao virar o mundo às avessas, a actriz, pela sua presença por vezes demasiado dura, fará, pelo contrário (ora aí está!), perigar o equilíbrio da obra. Todos entenderão assim a sua força! Bendito seja pois o escolhido que vier encarnar tal figura fulminante (e muito útil)!

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #7: O elogio de Marker

Aos realizadores nem sempre se deve levar à letra (o que dizem). Têm coisas bem mais importantes em que pensar do que corresponder às nossas expectativas e incompreensões. E são, dos seus próprios filmes já concluídos, meros espectadores, tal como nós. Mesmo assim, há que receber as suas palavras com toda a humildade e, sobretudo, não as deixar esmagar o filme propriamente dito.
Mais difícil ainda é encontrar elogios à obra alheia, em particular se esta for contemporânea. Nisso são particularmente sucintos. Talvez os antigos mestres façam um tipo de sombra mais aprazível, apesar de toda a sua grandeza. Por isto queria mencionar novamente, depois de ter visto o filme, este elogio particular de Chris Marker a CHARLY de Isild Le Besco:

[... U]m filme, o de Isild, pelo menos tão misterioso quanto ela. Um filme de esfoladelas e de verdade, que recusa as maquilhagens da sedução para atingir esse ponto incandescente onde a dificuldade de estar com o outro já não é representação de papéis mas um salto no vazio, que rompe com todos os códigos cinematográficos bem-pensantes e que não se deixa esquecer.

À primeira leitura poderá parecer aquela conversa habitual dos críticos, e profusos émulos destes, que abusam da adjectivação entusiástica. E o entusiasmo dessas fórmulas tende a substituir, a mascarar a própria obra a que se referem. [Como quando (quase todos) os actores lêem poesia. Temos a impressão que, na sua dicção tão aperfeiçoada, estão a ouvir, a ler-se a eles próprios, não ao poema, que mal nos chega.]
Mas não. A verdade é que a frase de Marker é literalmente exacta por relação ao filme. Explicar porquê temo que esteja para além das minhas capacidades. Se o tentasse, limitar-me-ia a parafraseá-la, a mostrar como cada uma das suas frases, palavras mesmo, corresponde a algo que existe e vive no filme.
O melhor é simplesmente que o vejam. Se eu acabei por chegar até ele (como já tinha dito nas «antecipações cegas»), foi afinal apenas porque levei a sério o que disse este realizador sobre outro filme actual. Doutra forma, sem este seu gesto generoso, não chegaria lá. Que outros sinais apontavam para a subtileza e originalidade desta obra? Há que falar pouco e, quando se abrir a boca, dizer algo que valha a pena.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #6: Depreciação dos filmes medianos

Tenho ouvido dizer que há muitos espectadores de cinema que se recusam a sair da sala antes do filme acabar, por mais mau que o filme seja. Ou talvez por quererem confirmar, perversos, quão mau se pode ele tornar. Mas não será isto uma outra forma de retenção anal, que, como se sabe, é muito prazeirosa?
No contexto de um festival vivido intensamente, esses pequenos prazeres têm que deixar um pouco de lado, pois há tanta fruição por onde escolher. É por isso que os filmes bem intencionados, quantas vezes esforçados, mas apenas sumamente medianos, são, sem dúvida alguma, os piores de aturar.
Não nos permitem sair, não nos expulsam da sala, mas também não nos fazem render o tempo lá dentro. Saímos como entrámos, levando uma ou outra curiosidade no bolso, mas subtraídos do tempo (um bem escasso) lá passado.
À atenção dos programadores (e críticos). Não permitir que os festivais se acumulem na zona mediana, mantendo uma quantidade não negligenciável de, por assim dizer, merda líquida, que obrigará a uma evacuação bem mais rápida.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #5: tmn

Uma das mais fantásticas invenções deste festival, no nosso contexto, é o sponsoring de salas. Temos assim a Sala tmn no cinema São Jorge. Como sabem o azul é a cor da dita marca. Pois, feliz coincidência, encontraram logo uma sala com risquinhos luminosos azuis no chão que indicam os locais de passagem. Mas logo à entrada já uns grandes painéis nos anunciavam que estávamos a aceder a uma sala especial, “esponsorizada” ou lá como é que se diz.
Mas aquilo em que realmente nos apercebemos da presença da marca, lamentavelmente para nós mais do que queríamos, mas sendo isso precisamente o que interessa nestas coisas, para as marcas, é que em cada cadeira há um daqueles papelinhos que se colocam no topo dos assentos dos aviões, por exemplo, para o bedum do cabelo não sujar as cadeiras e outras coisas. Caindo para o lado do ocupante da cadeira e para trás, bem visíveis, estes papelinhos, têm, claro, o azulinho bem evidente. O problema é que comportam também umas generosas margens a branco, bem como as próprias letras do logotipo também a branco, aumentando em vários factores a luminosidade geral da sala.
Ora, na sala escura, sublinhado escura, não convém nada a branco no nosso campo de visão. Excepto, claro está, o próprio ecrã, onde a dita marca, por acaso, também nos massacrou antes do filme começar.
Não estando ninguém sentado à minha frente, afastei delicadamente com os meus pés descalços aqueles anúncios da minha frente. Achei que era um pouco demais...
Além disso, o filme romeno que estava a ver, de sugestivo título português CENAS E GUITO, envolvia o uso intensivo de telemóveis arcaicos, pois a acção passa-se no final da longínqua década passada, tanto quanto pude perceber. Sujeitos às intempéries dos humores dos aprendizes de mafiosos, os telemóveis, cujo uso era manifestamente diferenciado do de hoje, pois o tamanho sugeria uma gestualidade diferente, digamos, mais larga e denunciada, eram regular e generosamente maltratados. Ao pé daquele emprego, o meu afastar dos anúncios, no final da sessão cuidadosamente repostos por diligentes funcionários, já não tinha aquele tom revolucionário e anarquista que lhe tentei emprestar de pé descalço.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #4: O melhor dos festivais

O melhor dos festivais, já nem me lembrava, são as interrupções. No meio do exagero de tantos filmes, sair finalmente do escuro e apanhar a brisa, mesmo o ar quente da tarde. Que alívio sentir a vida lá fora! Confirmar que esta coisa mental que é o cinema não nos encerrou para sempre, abrigados nos seus consoladores fantasmas. E que se pode num jardim perto caminhar descalço sobre a relva e deitar ao sol ou à sombra, de preguiça e alegria.
O cinema seria absolutamente insuportável sem este sair para a rua, mesmo o da noite escura. O exterior, o que está lá fora, eis a essência do cinema. Mesmo lá dentro, e sobretudo para os que amam aquilo que só se pode passar lá dentro, é isso o mais importante, a única coisa importante. Ai de quem não o perceba! No fundo, o cinema não interessa nada.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #3: Citações

«Porque é que a compaixão não é mais funda?» — pergunta uma personagem de DOCH (But still), por não se conseguir conter e pontapear alguém que está no chão.

*

«Quando ele lhe disser “Você tem fome?”, você se volta, olha a câmara e diz: “Tenho!”» — grita Glauber Rocha em ANABAZYS.

*
«Maman, regarde! Les pauvres... Ils sont morts... Maman, les pauvres, ils sont fait de sable?» — assim começa PIC - NIC, com o off de uma criança francesa em fundo negro.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #2: O cansaço olha para a câmara

Quando já sentimos o fim aproximar-se, no documentário PIC - NIC de Eloy Enciso rodado na praia de Benidorm, e estamos bem avançados na observação dos velhos madrugadores em férias, a câmara fixa-se com uma insistência algo despudorada num velho distraído, que parece perdido nas suas ideias, contemplando derreado a rua. Um excessivo voyeurismo parece insinuar-se de repente, como que à beira de destruir a relativa reserva que até então nos tinha abrigado. A demora na face do velho não nos está a ajudar, e sentimos que perdemos o filme, todo aquele que passou, a nebulosa que ele começava a criar na nossa cabeça, porque não soube hesitar no momento necessário.
Mas eis que o velho, apesar de bastante apagado, por fim distrai o seu olhar para dentro e, continuando a deriva, acaba por fitar ele próprio a câmara, com a mesma paciência cansada.
Passado um pouco também a câmara se torna desmerecedora da sua atenção, e dela se despede para fitar de novo a rua com a placidez inicial.
Aquele olhar para a câmara, tão simplesmente denunciado, protege, não apenas este plano específico, com o velho capturado, mas todo o filme, de uma qualquer tendência para um voyeurismo caricatural que se pudesse estar a acumular. Está lá para nos tornar de repente conscientes que o olhar foi devolvido, que há um espelhamento reflexivo [indispensável ao documentário?]. E que ao cansaço que permeia todos aqueles corpos não escapa obviamente o do cinema, apenas um entre os demais.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #1: Antecipações cegas

Sobre a natureza dúbia deste jogo de adivinhação, quer dizer, deste olhar para as vísceras dos filmes por vir (as sinopses, as imagens, os trailers, as críticas, etc.) e nelas ler o futuro da experiência na sala escura, já me expliquei demasiado, por ocasião das anteriores edições do IndieLisboa e DocLisboa. Os resultados, para o adivinho, apresentam-se bastante aceitáveis. Mas serão partilháveis? O falhanço de uma intuição não será muito mais pesado para quem a seguiu sem auscultar as suas próprias vísceras? Bom, de qualquer maneira, aqui ficam as suspeitas, para os aventurosos.
Nestas contas não entram os documentários STAUB (Dust) de Hartmut Bitomsky e RESPITE (in MEMORIES) de Harun Farocki, que já foram vistos e, consequentemente, recomendados na rubrica (e agora também calendário) dos «Meros filmes».

Em primeiro lugar, porque sigo a ordem de projecção, antecipo cegamente o documentário WUYONG (Useless) de Jia Zhang-Ke, realizador interessante de que só me dei conta através de uma retrospectiva no Indie, precisamente, apesar de um filme seu ter estado em sala; também, embora com alguma hesitação para os mais delicados, o impossível ANABAZYS de Paloma Rocha e Joel Pizzini, uma corajosa (ou, mais provavelmente, inconsciente) continuação de um dos mais difíceis e excessivos filmes de sempre, A IDADE DA TERRA de Glauber Rocha; mais um exercício de curta duração de Pedro Costa, A CAÇA AO COELHO COM PAU, incluído no filme colectivo MEMORIES e provável antecipação do seu trabalho contínuo;
ROZ (Pink) de Alexander Voulgaris, porque gostei francamente dos bocados que vi; CHARLY de Isild Le Besco, por este elogio de Chris Marker: «[... U]m filme, o de Isild, pelo menos tão misterioso quanto ela. Um filme de esfoladelas e de verdade, que recusa as maquilhagens da sedução para atingir esse ponto incandescente onde a dificuldade de estar com o outro já não é representação de papéis mas um salto no vazio, que rompe com todos os códigos cinematográficos bem-pensantes e que não se deixa esquecer»; igualmente, PROFIT MOTIVE AND THE WHISPERING WIND de John Gianvito, porque é um autor conhecido do melhor programador português (não, não é Pedro Mexia; é um daqueles que podia e devia estar no lugar de Pedro Mexia); KILLER OF SHEEP de Charles Burnett, cineasta negro dos já longínquos anos 70, entrevisto em LOS ANGELES PLAYS ITSELF de Thom Andersen; MARFA SI BANII (Stuff and dough) de Cristi Puiu, incluído na sessão do Novo Cinema Romeno 4, pois é a primeira longa metragem do realizador do excelente A MORTE DO SR. LAZARESCU.

À medida das descobertas, a sua partilha será actualizada no calendário público «Meros filmes». A tempo, espera-se, da segunda passagem dos filmes.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #0: Estavam à espera de quê? De melhor?

Começa daqui a pouco a quinta edição do IndieLisboa, um daqueles momentos condensados de exercício de cinefilia ou simples prazer cinematográfico. Depois de uma grande desconfiança pessoal, que me fez perder alguns filmes importantes, aderi nos últimos anos ao festival, ainda que com prudência. É que, bem escondidas, sujeitas a um imenso trabalho de escavação, sempre se descobriam lá no meio uma ou outra pérola cinematográfica, que é o género que ando à procura. No entanto, este ano, a minha expectativa é manifestamente baixa. Algumas razões para isso.
Os directores do festival, talvez assolados com exigências de produção, mantêm a característica irritante obsessão com o crescimento do número de espectadores (que aliás partilham com o DocLisboa), como se os números fossem um fim em si. Para sublimar essa obsessão, contrataram uma campanha publicitária assoladora e inesperadamente cretina, que revelou a sua verdadeira face, a meu ver, num anúncio paralelo de uma marca de cosméticos que, usando o mesmo slogan, dizia descaradamente assim: «Estavam à espera de quê? Gente feia?» Benditos criativos! É que as gentes feias, no meu entender, também têm lugar no cinema. Diria mesmo, um lugar privilegiado. Um cinema que ainda mereça esse nome será aquele que hoje, entre outras coisas, não distinga entre gentes feias e bonitas, acabando por revelar outras coisas mais importantes, outras distinções mais relevantes.
Claro que isto não deveria surpreender, tal é a infeliz tendência do festival para o pop e o cool, sabores do momento a que não podem ou sabem fugir. Por isso faz igualmente sentido a aliança com o jornal Público, órgão oficial, que nos alimenta das mesmas obrigatoriedades nos seus suplementos culturais. É, portanto, um péssimo sinal, a todos os níveis, do cinematográfico ao político, esta interpelação desajeitada, que se toma por provocatória, do «estavam à espera de quê?».
Quanto ao que interessa mesmo, a programação, ela deixa, numa primeira análise, bastante a desejar, pelo menos em comparação com o ano anterior. Como se, para a consolidação do festival, optassem ao invés por uma programação mais conservadora. Até a secção «Herói independente», que guardava muito do melhor do festival, parece relativamente tépida, pouco arriscada. As retrospectivas de Johnnie To (que não conheço), de José Luis Guerín, e do Novo Cinema Romeno (que não estou ainda certo, apesar de Cristi Piui, que verdadeiramente exista) são escolhas cautelosas, conscienciosas.
Dito isto, e porque não faço contas à grande, mas à pequenez de um filme inesperadamente descoberto, de um autor revelado (como, por exemplo, a alemã Angela Schanelec, através de uma sua muito bem escondida média metragem no heterodoxo programa «Um cinema alemão» do ano passado), admito e espero surpreender-me com os filmes que resolveram oferecer-nos. Talvez a cinefilia dos programadores, apesar das aparências, passe por ser uma actividade secreta e envergonhada de colocação de armadilhas, de filmes inesperados, no meio do engano.
Não são esses, no entanto, os sinais. Gritantemente sintomática dessa tendência é a não selecção da importante curta metragem ESTAÇÃO de Luís Miguel Correia, sobre a qual já escrevi aqui*. Lamentavelmente, pois circunscreve em muito o número de gente que a poderá ver. E, entre outras infelicidades mais graves, perder-se-á assim a oportunidade de pôr João Nicolau, realizador de RAPACE, a reagir, enquanto júri das curtas metragens, a esta curta que pode, e talvez deva, ser vista em paralelo com a sua.
De resto, são muitos, quase demasiados, os filmes sobre os quais exercer a suspeita e a benevolência de quem ainda está à espera de alguma coisa do cinema.

* Declaração de interesses: o realizador é um amigo e o filme foi produzido por uma produtora de que sou sócio. Isto muda alguma coisa?

Quando se acende a luz...

«Era como quando, no cinema, diante dos olhos arregalados da multidão, desfilam ao ritmo triunfal e nostálgico da orquestra as grandes cidades e todas as suas riquezas, as paisagens longínquas, as aventuras, as mulheres mais belas e os homens mais afortunados. Ao ritmo apressado do seu coração iludido, o cinema das suas ambições corria cada vez mais rápido... no ecrã da sua fantasia as imagens perseguiam-se, encontravam-se, misturavam-se, ultrapassavam-se... era a corrida das esperanças, que tira a respiração, faz tremer a alma, ilude, e finalmente dissolve-se, deixando a medíocre realidade; exactamente como no cinema quando se acende a luz e os espectadores se entreolham com caras desencantadas e amargas.»
Alberto Moravia, Os indiferentes, trad. Álvaro de Almeida, Colecção Público Mil Folhas, Porto, p. 198


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