Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Antecipações cegas (DocLisboa 2008 #0)

A pequena rubrica «Outros filmes de...», que aliás manteve este blogue mais ou menos vivo durante um recente e alargado período de dispersão pessoal, baseia-se exclusivamente na saliência de filmes já vistos e de grande predilecção. Mas, para além de textos fortuitos aqui e ali, há momentos em que, creio, não faz mal dar lugar às nossas suspeitas aventurosas, às antecipações cegas da felicidade cinematográfica. Como passei a acompanhar com bastante atenção os anteriormente inexistentes grandes festivais de cinema de Lisboa, creio que fazê-lo não será uma cedência particularmente gravosa ao didactismo [há sempre pessoas que se prestam a ser a má-consciência dos outros, com se não bastasse a de cada um].
Aquando do indieLisboa, em Abril, procurei especular sobre esta coisa de antecipar publicamente os filmes que se desejam ver, em particular no contexto do imenso trabalho que dá a escolha por entre a programação de um festival. Revendo as grandes expectativas que então dez filmes me provocavam, reparo agora que apenas dois deles foram uma desilusão parcial, embora nem sequer fossem maus filmes, enquanto outros sete confirmaram serem muito bons, sendo que um destes não terá sido visto por quase mais ninguém (Wolfsbergen de Nanouk Leopold). É o que se pode chamar uma boa taxa de aproveitamento (no seu próprio gosto). Menos filmes, mas melhores. Num festival esta economia é ainda mais preciosa, pois é particularmente difícil, ver impossível e indesejável, assistir a outro filme quando ainda estamos a lidar com o impacto de outro que muito nos tenha tocado. >
Quanto ao DocLisboa 2007 que se avizinha, para além dos cinco filmes assim incluídos nos «Outros filmes de Outubro» (a saber, Le papier ne peut pas envelopper la braise de Rithy Panh, He Fengming de Wang Bing, Le filmeur de Alain Cavalier, La pudeur et l'impudeur de Hervé Guibert, JLG/JLG: autoportrait de décembre de Jean-Luc Godard e News from home de Chantal Akerman), há outros que suscitam uma justificada expectativa, a meu ver e segundo a minha particular afinidade*, que, aliás, tem uma correspondência exacta com o que pretendo ver pessoalmente. Não é por nenhum preconceito, mas a verdade é que os filmes não me saem de todas as sessões do festival por igual número. Estão muito concentrados na secção ‘Diários filmados e autoretratos’, na ‘Riscos e ensaios’ e em sessões dispersas. Ei-los, pela ordem do programa, não das apresentações: David Holzman’s diary de Jim McBride, pela aparente irrisão da própria forma-documentário, e também por o programador o colocar como a filiação americana em tempo real da Nouvelle Vague francesa; Intimate stranger e Nobody’s business de Alan Berliner, simplesmente por o realizador ser um daqueles nomes que ouço repetidamente referido há algum tempo, sem que tenha ainda tido oportunidade de o experimentar; Lost, lost, lost de Jonas Mekas, pela repetição da palavra no título, efeito que deve igualmente contribuir para a duração do filme; Tentatives de se décrire de Boris Lehman, pelos belíssimos Babel e Histoire de ma vie racontée par mes photographies, além de que o realizador costuma


viajar com os seus filmes e é uma pessoa que vale bem a pena conhecer; Trying to kiss the moon de Stephen Dwoskin, por, tendo uma vez visto um dos seus filmes, não me lembro agora qual, me ter ficado para sempre marcado na memória um plano de uma janela numa cozinha, a partir do interior; De son appartement de Jean-Claude Rousseau, por ser inconfundivelmente “menor” o seu modo de filmar; Nocturno de João Nisa, por ser, sintomaticamente, o único filme português numa secção chamada ‘Riscos e ensaios’ e ter a única sinopse do programa cujo conteúdo é uma cuidada descrição formal; State legislature de Frederick Wiseman, porque a complexidade da vida americana se torna sempre mais inteligível nos seus filmes e, em particular, pela percepção de que existe um nível da política, lá muito activo, que não passa pelas instituições constituídas (e que por cá têm pouca expressão, a chamada “sociedade civil”), sendo que desta vez é uma das formas da própria instituição política estatal que é filmada; Diary de David Perlov, porque acredito na maior probabilidade dos filmes muito longos serem afinal melhores e, enfim, por passar ao mesmo tempo que os filmes premiados, afastando tentações menos puras.
Na verdade, não arrisco muito. São, em geral, realizadores relativamente conhecidos. Alguns filmes têm durações talvez um pouco cansativas. No pain, no gain. Tenho algumas outras suspeitas de ordem meramente privada. Era preciso escavar muito fundo para encontrar indícios seguros que as fizessem servir outras pessoas.

[Mais uma vez, não se aceitam reclamações. Como no amor, cada um por sua conta e risco, principalmente risco.]

* Porque não temos de gostar de todos os tipos de filmes. E estupidez seria continuar a ver aquilo de que não gostámos. Pode chamar-se a isso uma ‘visão construtiva ou selectiva’ do cinema, que vai triando por entre a grande quantidade da produção de filmes actuais e programação dos restantes à medida que vai conhecendo os autores, os géneros, os países de produção, etc. (mesmo a forma como as sinopses são escritas). Pois não somos críticos de cinema pagos, obrigados a regerem-se por uma curta actualidade e sujeitos a ver quase tudo o que passa nas salas. Aliás, quase que não imaginamos pior suplício (em termos cinematográficos).
A propósito disto, creio que há dois modos principais de usar a cinefilia como arma de arremesso. A primeira, que não lhe pertence especificamente, concerne o uso da história como opressora, endeusando os acontecimentos (neste caso, “autores” de cinema) ditos clássicos, contra qualquer abrir de boca. Como se não se pudesse ver filmes senão do princípio para o fim, o que corresponderia ao sentido da sua suposta “evolução” histórica. Ao contrário, e parafraseando Deleuze, podíamos dizer que o cinema cresce pelo meio. Ou seja, pode começar-se a vê-lo por onde se entenda ou, melhor ainda, por onde calhe.
O segundo modo, menos óbvio, mas bastante pernicioso, consiste em passar um atestado de elitismo a quem prefira alguns filmes por relação a outros considerados mais populares. É certo que a história do cinema como arte popular é uma herança particularmente nobre e que importa continuar a pensar. Mas, mesmo reconhecendo-a, devemos nós arrastar-nos para a sala exclusivamente motivados por essa cansada esperança que um dia voltem os melhores filmes a ser os mais vistos? (E terá sido assim alguma vez?) Claro que isto não implica de todo excluir qualquer filme pelo grau da sua popularidade. Mas também não o contrário, ou seja, fazer tábua rasa da experiência selectiva e cumulativa que se vai fazendo enquanto espectador, afinando preferências. Curiosamente, quem professa esta perspectiva são muitas vezes, por incrível que pareça, os próprios realizadores de filmes de prestígio, cuja exibição não têm praticamente qualquer repercussão em termos de público nas salas, limitando-se a festivais e televisões mais ou menos cuidadosas. Os mesmos culpam depois os críticos por essa disjunção entre o grande cinema e o público, que é pelo menos velha de 50 anos.
Enfim, desse luto o cinema não se recompôs, nem é provável que se venha a recompor. Mas há hoje muitos públicos e não será caso para demasiados lamentos enquanto se fizerem filmes que importam, que permitam sentir e forcem a pensar. E, também, enquanto houverem olhos que os saibam ver, o que, ainda menos que a primeira condição, não é de todo garantido.


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