Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #154 (António Guerreiro): Um crime impune

O “protocolo de colaboração” celebrado no final da semana passada entre a Assírio & Alvim e a Porto Editora pode ser uma benéfica operação, mas revela publicamente uma verdade terrível: que uma editora não consegue hoje sobreviver pelos seus próprios meios se o núcleo central do seu catálogo é a literatura portuguesa - mesmo que seja uma parte razoável do cânone do século XX. Pensar que o famigerado mercado ameaça de extinção os livros de Fernando Pessoa, é pura e simplesmente obsceno. E chegou-se a este estado de catástrofe sem grandes resistências nem gritos de alarme, como se o que aconteceu e continua em curso não fosse um desastre obscuro. Pelo contrário, aqueles que foram traçando, desde há muito tempo, um quadro negro do estado da situação fizeram figura de criaturas agoirentas. E, no entanto, basta hoje entrar nas livrarias – e, com maioria de razão, se entrarmos com o objetivo de procurar um livro que escapa ao mainstream editorial e das “novidades” – para perceber que elas repousam hoje sobre um crime. 

Ou melhor: sobre uma cadeia de crimes perpetrados com a colaboração (nem sempre consciente dos seus efeitos nefastos) de muita gente e muitas instâncias. A partir de certa altura, o caminho único e coercivo revelou-se sem alternativas – há apenas um pequeníssimo espaço para alguns devaneios de gente freak e diletante, como aliás reconhecia, numa entrevista, há menos de um ano, Vasco Teixeira, responsável editorial da Porto Editora: “Se me perguntarem se daqui a dez anos ainda se edita poesia em Portugal, dir-lhe-ei que não. Quando muito teremos algumas edições artesanais (...). E haverá mercado para isso. Para o tipo que faz uma edição de 30 ou 50 exemplares que os amantes de poesia comprarão.” Esperemos que o poderoso assinante do “protocolo de colaboração” não se aplique agora, que tem ainda mais poder para isso, na realização da sua própria profecia. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 27.8.2011.

Ao pé da letra #153 (António Guerreiro): A multidão sonâmbula

“Ele foi para a rua, viu o que os outros estavam a fazer e juntou-se a eles. Cometeu um sério erro e reconhece-o”: assim disse a mãe de um miúdo de treze anos apanhado pela polícia a saquear lojas nas ruas de Londres. Sobre o que aí se passou dividiram-se as interpretações entre os que nem querem ouvir falar de explicações sociológicas (nem de “sociologia”, tout court, porque seguem à letra a boutade de Thatcher de que a sociedade não existe) e os que viram logo a revolta social e a luta de classes a desaguar nos templos londrinos do consumo. Ora, o que se passou foi um facto social, mas para compreendê-lo temos de recorrer à “psicologia social” de um Gabriel Tarde. Contemporâneo do nascimento da grande metrópole moderna e do fenómeno das multidões, Tarde definiu em 1884 a sociedade como “uma coleção de seres que se imitam uns aos outros”. À questão de saber o que é que está na base deste fenómeno de imitação de um indivíduo por outro e depois por uma multidão, responde Tarde: esse fenómeno releva da sugestão, que é um forma de hipnotismo: o social é um estado hipnótico.  

Não ter senão ideias sugeridas e julgar que elas são espontâneas – eis a ilusão do sonâmbulo assim como do homem social. Segundo Tarde, é a imitação que leva à propagação dos comportamentos sociais. E a cidade é o domínio próprio e ilimitado do social: numa grande metrópole nada nem ninguém é insociável, dirá mais tarde Durkheim. Tarde explicou assim como se formavam as multidões e como estas apresentam algo de animal, sofrem de alucinações e de ausência absoluta de moderação e de tolerância. As multidões, disse este sociólogo francês, não são apenas crédulas, são loucas. Lendo os testemunhos de muitos jovens saqueadores, sabendo que filhos de boas famílias seguiram a multidão delinquente, percebemos que é preciso reler a definição de sociedade de Gabriel Tarde. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 20.8.2011.

Ao pé da letra #152 (António Guerreiro): Governar com estilo

A partir do momento em que o pacto que liga os partidos aos cidadãos deixou de se basear nos antigos critérios de representação, a questão do estilo ganhou enorme importância. Cada governo que entra em funções conquista a sua autoridade através de um estilo, marcando assim a diferença em relação ao estilo do governo anterior. Um corte bem saliente torna-se necessário e nem sequer um grande treino, porque basta seguir intuitivamente pelo espaço de respiração que se abre, fugindo ao sufoco a que fôramos submetidos. Assim é porque cada governo caminha para a exaustão do seu estilo, até chegar o momento em que este passa a ser uma espécie de mímica com o seu código elementar. Atinge-se então o triunfo do vazio: os traços do estilo convertem-se em tiques, e os cidadãos, incomodados, começam a dizer: “Já não posso ouvi-los.” Tem sido assim com os governos anteriores e assim será certamente com este.  

A noção de estilo é vaga e maleável, por mais que façamos apelo aos tratados clássicos. Mas só usando de muito rigor é que chamamos estilo àquilo que, no discurso e no comportamento dos políticos, é definido por uma intenção e não por uma necessidade. Ao contrário do estilo na literatura e na arte, o estilo dos governantes é uma mera questão de técnica, de escolha tática, e não de compromisso autêntico. Por isso – porque não é a transformação formal de uma verdade – é que se esgota tão depressa e entra na lógica da caricatura e do exacerbamento. É um mecanismo cego, exibicionista e sem consciência de si. Curioso é verificar que são cada vez mais breves os ciclos de afirmação e esgotamento do estilo. Nem é necessária muita atenção crítica para verificar que o estilo do atual governo já começa a ficar saturado dessa infralinguagem a que chamamos tiques. E ainda nem tivemos tempo de esquecer os automatismos exasperados do estilo do governo anterior. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 13.8.2011.

Uma criança sobe o monte #10 (A child climbs a mountain)


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Ao pé da letra #151 (António Guerreiro): Os professores de bancada

Uma breve passagem — durante três anos — pelo ensino básico e secundário, como professor, não me dá autoridade para falar em nome da experiência, mas permite-me, ainda assim, perceber quão irritante é ouvir as pessoas sem qualquer ligação à escola e ao ensino fazerem profundos diagnósticos do seu estado e terem certezas sobre o tratamento a administrar. Neste exercício de demonstração de ignorância e ingenuidade, há uma série de lugares-comuns que se cristalizaram num vocabulário destituído de toda a capacidade de descrição e que já não significa nada. Por exemplo, “facilitismo” e “eduquês”. Algo relacionado com o que estas duas palavras começaram existiu certamente e ainda deve existir, mas nenhum problema elas estão hoje em condições de identificar. Mais não seja porque foram submetidas a uma profunda erosão e passaram a fazer parte de um idioma vazio. São como palavras de ordem pronunciadas para simplificar. 

Vejamos um exemplo: quando hoje se deplora — muito legitimamente — a retirada de Camilo Castelo Branco dos programas do secundário, não percebemos o fundo do problema se não verificarmos o seguinte: Camilo não está apenas ausente das escolas, está ausente da edição (alguns títulos avulsos, publicados ao sabor das circunstâncias, não alteram o panorama) e, por conseguinte, ausente das livrarias. Da vastíssima obra de Camilo não existe uma edição crítica. É certo que a escola deve ser impermeável a estas circunstâncias e, provavelmente, a retirada de Camilo significa mesmo uma perniciosa vontade de pôr a literatura à distância. Mas isso não invalida que tal expulsão só seja compreensível quando integrada num contexto mais geral. Como fazer da escola um território onde não entra o mundo profano, se o mundo profano cresce, cresce, como o deserto de Nietzsche?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 6.8.2011.


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