Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Filmes-doença de 2008

Ainda profundamente eivado do contagiante espírito natalício, presto-me também eu ao exercício, convenhamos, um pouco ridículo, de apresentar uma lista de filmes do ano. Compreendam que não se trata de um menor apreço meu por listas. Pelo contrário, todo o tipo de listas me encanta. Como as listas de animais que se dividem entre os “que acabam de quebrar a bilha” e os que “de longe parecem moscas”, etc. Ou de doenças. Enfim, tanta coisa linda. Mas as listas cinéfilas têm algo de abominável. Como se se tratasse de uma urgência doentia num cânone instantâneo para uma arte em constante crise de afirmação. Desagrada-me esta curiosidade insistente por uma contabilização falsamente significativa. Tanto mais que parece ter como função, precisamente, proceder ao esquecimento periódico. No entanto, também eu caio constantemente nesta ordem, que é apenas um traço da má emancipação do cinema, da sua insuficiente impregnação na vida. Cânones, contra-cânones e anti-cânones. Quantos filmes destes vi ou não vi?, etc. Mas não é, pelo menos, verdade que todos os cinéfilos gostem de listas...

A primeira palette da cinefilia cosmopolita corrente é o crème de la crème do que foi mais promovido nos festivais ou saiu das nobres mãos de um mestre recente ou antigo. Neste sentido, as listas são as mais das vezes muito pouco heterogéneas. Faltam lá os objectos cinematográficos não identificados, as anomalias. Parece que são supostas limitarem-se ao que terá sido exibido nas salas comerciais num determinado período, o ano mediático. Os críticos comerciais têm uma boa desculpa para se cingirem aos filmes mais populares. No entanto, as pessoas que escrevem online, para que se prestam a isso? >




Por isso, muitos cinéfilos apresentam habitualmente duas listas diferentes: a da matéria corrente e a da matéria desenterrada. Quer dizer, a dos filmes estreados em sala na sua terra e a dos mais antigos que tiveram finalmente oportunidade de ver. Comparar os desenterrados com os correntes é muito elucidativo e deprimente. Esses desenterrados são, quase sempre, muito melhores do que os correntes. No entanto, e aqui é que a burra torce o rabo, essas preciosidades desenterradas não foram elas próprias, as mais das vezes, as melhores do seu ano de origem. Logicamente, cabe aqui a suspeita de que anda para aí muita especulação quanto à “melhoria” contemporânea. Trata-se de uma bolha especulativa como outra qualquer. Esperemos pacientemente pelos seus efeitos recessivos. Um século não é nada para uma expressão artística. Precisamos passar a mão no dorso da história do cinema ao contrário, de forma a que, ao levantar os pêlos, se deixe descobrir a bicharada cinematográfica que por lá vive, em vez do lustro morredouro que por aqui mora.

Explicação do método. Pelo menos desde Março passado que mantenho um registo passivo dos filmes que vi, e apenas devido ao Google Calendar. Anteriormente, a minha cinefilia era extremamente negligente com os registos. Nem as folhas da Cinemateca levo para casa, que papelada pelo chão é o que não falta por cá. Excepção feita aos filmes de que saí a meio ou que odiei profundamente, e cuja referência procuro apagar para nunca mais deles me lembrar, está lá registado o que vi numa sala de cinema. Não me dou ao trabalho de assinalar as (raras) coisas vistas na televisão ou as (menos raras) em dvd, ou ainda as cada vez mais vistas em ficheiros descarregados...




Em vez de uma lista de melhores, com a justa contraposição de outra lista de piores, que são as quase insondáveis pontas do espectro, proponho uma lista dos piores “melhores” filmes do ano. Aqueles que aparecem, normalmente, nas listas de melhores do ano, mas que, na verdade, são apenas os que oscilam no limiar ambíguo entre os menos bons dos bons e os menos maus dos maus. Filmes “com pretensões” e de que se muito alimenta a crítica cinéfila. A ordem era suposta ser a da visão, mas é antes (mais ou menos) a do enfado, do maior para o menor. Alguns filmes são ainda do ano passado, mas a doença ficou a incubar e só a apanhei em todo o seu esplendor este ano. Porque é de doenças que se trata. Das doenças cinematográficas que me fizeram sofrer. Para separação das águas e manifesto de suposta ortodoxia não encontro melhor. Claro que há para aí doenças que não apanhei. Tentamos sempre evitá-las, não é? Dessas outras devem dar testemunho os respectivos pacientes. Obviamente, as opiniões expressas (são só isso, o que é bem pouco) nesta lista não reflectem qualquer juízo negativo sobre pessoas que possam ter gostado, adorado, estrelado ou mesmo chorado com estes filmes. Afinal, cada um de nós tem um sistema imunitário-cinematográfico diferente. E, como diz o povo, na sua sabedoria milenar, gostos não se discutem...


HUNGER Steve McQueen
Esta calamidade não é apenas uma doença! Trata-se de um síndroma, doravante dito Síndroma de McQueen, que associa malvadamente um grupo de doenças mais ou menos identificáveis. Da taquicardia artística ao escorbuto fetichista, passando pelo apodrecimento da glande abjeccionista, é quase uma epidemia, pelo seu potencial avassalador. São, no fundo, estes sofrimentos terríveis que nos inspiram à delação. O corpo do espectador, para além do colapso nervoso por altura do contacto patológico, comporta-se em seguida como acabado de ser submetido a uma tareia. No entanto, conhecem-se casos, ditos extremos, de auto-inoculação com o síndroma em pacientes com fixação em figuras crísticas em decomposição, vórtices de merda e esteticização geral das pústulas... Ao pé deste síndroma, a doença de THE PASSION OF CHRIST de Mel Gibson só pode ser inofensiva (como disse, não me presto a contaminações inúteis) e, sobretudo, mais facilmente combatida, pois pelo menos essa não vem disfarçada de arte.
[Ok, o meu orçamento de sarcasmo esgotou-se aqui, e não vou começar a gastar o que entra já nas contas do novo ano... Deixo apenas os filmes-doenças restantes:]


CZTERY NOCE Z ANNA / QUATRO NOITES COM ANNA Jerzy Skolimowski

AFTERSCHOOL Antonio Campos

REDACTED Brian de Palma

PARANOID PARK
Gus Van Sant

NE TOUCHEZ PAS LA HACHE Jacques Rivette

LES AMOURS D'ASTRÉE ET DE CÉLADON Eric Rohmer 

LA FRONTIÉRE DE L'AUBE Phillipe Garrel 

WONDERFUL TOWN Aditya Assarat

LE SILENCE DE LORNA Jean-Pierre e Luc Dardenne

Z32 Avi Mograbi 

VALS IM BASHIR/ A VALSA COM BASHIR Ari Folman 





Ut pictura poesis

I. «E se é inegável que, seja qual for a nossa opção, o filme resiste como documento (a vida nas Fontaínhas, em finais do século XX) aberto a leituras sociológicas e políticas, aquilo que transforma “No Quarto da Vanda” num objecto único e incomparável é estar sustentado numa narrativa trágica, assente em processos expressivos (a componente pictórica de alguns planos, num cruzamento entre a pintura italiana renascentista, a pintura flamenga e o hiper-realismo) que “roubam” ao real tanto quanto lhe oferecem – a relação de “No Quarto da Vanda” com o real é biunívoca, o filme está tão disponível para ele como ele para o filme.» Luís Miguel Oliveira

«Isto nunca mais me esqueço, [em] “No Quarto da Vanda” há um plano banal de uma rapariga a fazer trabalhos de casa, repetindo as vogais, no meio de um barulho monstruoso. E ela lá estava, tentando concentrar-se. Eu passei uma tarde inteira com ela, repetindo, e quando eles viram o filme, disseram que aquilo era muito bonito pois mostrava as dificuldades que eles tinham com as crianças que tentavam estudar ou aprender, como uma criança aqui no bairro leva sete vezes mais a aprender uma palavra do que em casa dos ricos. Este tipo de coisa não tem preço. Não há nenhum crítico de cinema que vá dizer isto. Esse mesmo plano, numa revista de cinema francesa, foi descrita como um “velho retábulo crístico à maneira dos pintores da Renascença”.»
Pedro Costa

«[... C]ontrariamente à moral aceite que nos interdita de “esteticizar” a miséria, Pedro Costa parece aproveitar cada ocasião para valorizar os recursos de arte apresentados por esse cenário de vida mínima. Uma garrafa de água de plástico, uma faca, um copo, alguns objectos pousados numa mesa de madeira branca de um apartamento invadido, e ei-la, com a luz que vem rasar o seu palco, a ocasião para uma bela natureza morta. Que a noite chegue nessa habitação sem electricidade, e duas pequenas velas sobre a mesma mesa darão a uma conversa miserável ou a uma sessão de chuto um ar de chiaroscuro holandês do Século de Ouro. [...] Mas esta “esteticização” significa precisamente que o território, intelectual e visivelmente banalizado, da miséria e da margem é levado à sua potencialidade de riqueza sensível partilhável.»

Jacques Rancière, «Les paradoxes de l’art politique»,

Le spectateur émancipé
, La Fabrique, Paris, 2008, pp. 87-88

Para quem não conhece, o fantástico programa de rádio Dois ao quadrado de Pedro Coelho e companhia, de certas madrugadas quinzenais da Antena 2 e que tem uma duração de seis horas!, atingiu na sua última edição um ponto particularmente alto: uma divertidíssima (e assustadora) montagem entre os poemas de Ruy Belo lidos por Luís Miguel Cintra e um audiolivro de auto-ajuda de Gestão!
Existe também o podcast Somdescape do mesmo Pedro Coelho... e um blogue paralelo, Sevragem, infelizmente agora “aberto apenas a leitores convidados” (nos quais não me incluo).

Política e polícia (Jacques Rancière)

«A política, com efeito, não é à partida o exercício do poder ou a luta pelo poder. O seu quadro não está desde logo definido pelas leis e instituições. A primeira questão política é saber que objectos e que sujeitos concernem a essas instituições e a essas leis, que forma de relações definem apropriadamente uma comunidade política, que objectos concernem essas relações, que sujeitos estão aptos a designar esses objectos e a discuti-los. A política é a actividade que reconfigura os quadros sensíveis no seio dos quais se definem os objectos comuns. Ela rompe com a evidência sensível da ordem “natural” que destina os indivíduos e os grupos ao comando e à obediência, à vida pública ou à vida privada, ao assigná-los desde logo a um certo tipo de espaço ou de tempo, a certa maneira de ser, de ver, e de dizer.
Esta lógica dos corpos no seu lugar dentro da distribuição do comum e do privado, que é também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é aquilo a que propus nomear com o termo de polícia. A política é a prática que rompe com essa ordem da polícia que antecipa as relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. Ela fá-lo através da invenção de uma instância de enunciação colectiva que redesenha o espaço das coisas comuns.»

Jacques Rancière, «Les paradoxes de l’art politique»,
Le spectateur émancipé, La Fabrique, Paris, 2008, p. 66

Ao pé da letra #29 (António Guerreiro)

«Renovar a esquerda é a linguagem de uma mitologia

Roland Barthes, que tem andado por estes anos injustamente esquecido, era um homem de esquerda. E, nessa condição, a sua preocupação maior foi sempre a de desmontar as “mitologias” (fossem elas de esquerda ou de direita), isto é, a cultura de massas, as construções ideológicas, os discursos que se apresentam como evidências e devem o seu poder de circulação ao estatuto “natural” que adquirem e os subtrai à crítica. Os mitos da direita procuram a sua raiz no espaço originário e a-histórico das ideias sem palavras; os mitos da esquerda são antes a manifestação tagarela das palavras sem ideias.



Roland Barthes não formulou a questão desta maneira, mas no seu horror fóbico pelo estereótipo sentiu sempre a necessidade de se desviar criticamente de todas as linguagens, sempre que começavam a “pegar”. Quando hoje ouvimos falar em “renovar a esquerda” e vemos alguma gente mobilizada em torno dessa tarefa, é preciso analisar essa expressão como uma linguagem parasitária, uma enorme e velha mitologia que impede precisamente que se pense algo de novo. Nada pode ser renovado com esta linguagem porque ela não é senão a perpetuação de ritos e mitos mecanizados.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 19.12.2008.

Tutoria como alimentação forçada

Na longa obra de Frederick Wiseman há um momento particularmente problemático, sobretudo exemplar, convenientemente situado logo no seu primeiro filme – TITICUT FOLLIES (1967), em que o documentarista americano reconhece hoje um claro “erro” de montagem. Quase se poderia dizer que está lá como exemplo pedagógico, negativo de todo o seu método. Trata-se de uma sequência em que um dos prisioneiros de Bridgewater é sujeito a alimentação forçada. No momento em que se vê, em grande plano, a face do prisioneiro com o longo tubo acabado de ser enfiado através da sua narina, Wiseman corta, numa demonstração extremamente rara e pouco subtil de direcção do sentido de “leitura”, para um outro plano, que pertence a um outro tempo inevitavelmente posterior, com a face desse mesmo prisioneiro, novamente em grande plano, mas com as feições desamparadas de um morto (conferir imagens em baixo), voltando depois à cena inicial.
Alguém devia ter alimentado à força este filme, por assim dizer, a Raquel Mendes, aluna do Curso de Vídeoarte do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística, que na sua obra de arte-vídeo CONCÓRDIA juntou dois planos aparentados na mesma imagem. No plano exposto à direita da imagem única de CONCÓRDIA, um homem alimenta uma mulher velha, de saúde visivelmente frágil e de consciência que pouco ou nada se manifesta, sentada a uma mesa, enquanto uma outra mulher mais nova observa um pouco atrás. Na plano exposto à esquerda, o mesmo homem e a mesma mulher que observa cuidam e decoram um monte de terra num cemitério, presumivelmente acabado de enterrar. Para falar mais concretamente, vemos simultaneamente uma velha de saúde extremamente frágil e aquilo que não podemos evitar presumir ser o local ocupado do seu repouso eterno.





A leitura não podia ser mais direccionada. É mesmo sufocante por não nos deixar alternativa alguma. Nem ponta de suspeita generosa. O que a imagem nos diz é que aquela velha que estamos, neste presente cinematográfico, a ver à direita ainda viva, mesmo que regurgitante, está, neste mesmo presente cinematográfico, morta.

Alguns espectadores saíram da sala. Seja por sensibilidade extrema ao sofrimento alheio visto através do filtro do cinema, patente no primeiro plano, seja, compreensivelmente, por repugnância perante o procedimento da artista. Provavelmente já a contar com isso, a obra estava alinhada em último lugar na primeira parte do programa. Repugnados ou não, todos acabaríamos por sair para o intervalo.
No entanto, se é verdade que perante certas imagens há um sentimento algo básico, visceral, de profundo desconforto, de rejeição, convém não alimentar demasiado a confiança nesse carácter visceral. Pode ser uma defesa de alma sensível, enganosa, a quem o que choca é afinal o próprio reconhecimento da evidência do sofrimento alheio. Não são obviamente esses os casos que me interessam.

Parece-me que é preciso antes tentar compreender como acontece a repugnância pelo gesto artístico. Pessoalmente, se fiquei na sala foi por duas razões. Em primeiro lugar, pela combinação de não ser uma alma sensível e da duração prevista da obra ser muito curta. Em segundo, porque sendo o gesto tão pouco sofisticado e tão descarado, a repugnância perante aquela junção não foi suficiente para testar se aquele exercício não teria afinal algo a mostrar por fim. Tal como estava era apenas uma péssima junção. O horrível era que a única maneira daquele procedimento eventualmente poder resultar era se, no caso extremo dos extremos, a mulher velha efectivamente morresse em directo no primeiro plano! Teríamos assim, passando o limiar, dois planos compossíveis lado a lado na imagem, contemporâneos.

As intenções, como quase sempre nos desastres, eram as melhores. Afirma a artista, e vale a pena citá-la por inteiro, que o seu «projecto confronta-nos com uma situação que a sociedade actual decide esconder aos nossos olhos: a materialização da relação com o tempo, a morte. Através do registo directo de sinais de decomposição, as imagens expõem a vulnerabilidade de quem está perto do fim e a gestão de afectos de quem assiste a esse fim».



A sua preocupação, afinal louvável, diz respeito à efectiva “invisibilidade” de um certo tipo de sofrimento, que é de facto algo de insuportável para as nossas sociedades. Mas, e ao contrário da sua intenção, ao colmatar desta maneira essa invisibilidade, aliena-nos completamente dessa vulnerabilidade e sobrepõe-lhe o seu gesto mais opaco. Em vez da articulação da “gestão” dos gestos das pessoas no filme, nos dois planos, portanto, pré e pós-morte, o cuidado posto na alimentação e a decoração do túmulo, mostra apenas a morte em si. Curto-circuita o tempo. Como se tivesse tocado num interdito cinematográfico. Acredito nisto, que se trata de um interdito propriamente cinematográfico. Ou uma limitação intrínseca, se quiserem. Embora me pergunte se o cinema de ficção não sustentaria, com muita habilidade ou ligeireza, este procedimento que em modo documental se torna repugnante.
Diz ainda a artista que o tinha «pensado para uma dupla projecção suspensa, contudo, devido à natureza desta apresentação, optou-se pela incrustação dos dois vídeos num único canal». Aquilo que tinha a natureza de uma instalação, ao ser obrigada a passar para uma única imagem em movimento, para “caber” naquela projecção normal numa sala, exigiu colocar lado a lado dois planos, portanto, não em sucessão temporal como na montagem paralela de Wiseman, mas numa consonância temporal. Evidentemente, nada é menos certo do que a espacialização da coisa vá dissolver o problema. Mas aqui interessa-me a especificidade cinematográfica deste interdito, o seu ponto extremo.

Não é que o cinema seja virgem de sobreposições temporais paradoxais. Pelo contrário, constituem mesmo um dos seus traços modernos. Dentro de um plano podem concorrer camadas temporais que acabam por constituir um paradoxo de sentido, ou pelo menos uma ambiguidade profunda, uma leitura em muitos estratos. Uma paisagem straubiana, para dar um exemplo conhecido, pode fazer igualmente apelo aos enterrados no solo, às vitimas de lutas passadas que não se vêem, tanto quanto ao vento nas árvores. Isto não só o cinema permite como deseja, como de pão para a boca. Mas não é nada simples consegui-lo...

Sem dúvida o mais triste é que esta repugnância, e todos os comentários posteriores que venha a ser feitos, podem já ser um efeito desejado, e um resultado suficiente para o jogo do gesto da artista. Talvez. Mas o que diz isso da vídeoarte? O que acrescenta aqui a “arte” ao cinema (vídeo incluído) senão esse profundo e obsceno descaramento?


Nota: Não conheço Raquel Mendes pessoalmente, nem qualquer obra sua anterior. Não faço igualmente qualquer juízo de valor antecipado sobre a sua obra futura. O tom duro deste texto é uma profunda limitação minha e diz obviamente
apenas respeito à experiência que tive, e a que procuro responder, e em caso algum à pessoa em particular da artista.


Por vezes a cinefilia pouco mais parece do que uma inocente troca de cromos de caderneta. “Tens este? Aquele é muita lindo!” Mais uma adenda à sua caracterização como doença infantil.

A cegueira interior


Entro na sala pequena da Cinemateca para ver a última sessão de PORTO DA MINHA INFÂNCIA de Manoel de Oliveira. Sentado entre o público estava um rapaz de óculos escuros. Talvez pelo modo como (não) movimenta a cabeça, apercebo-me de que é cego. Ou se calhar já o conheço de outro sítio. Mas esta ocorrência, de que uma pessoa cega venha efectivamente ver um filme, que me parece feliz e confirmando a possibilidade que gosto de alimentar sobre a riqueza sonora no cinema, deixa-me algo perturbado. Durante a sessão, os dois homens a meu lado, de quem já conheço os hábitos de espectadores barulhentos, passaram a irritar-me ainda mais. Que me chateiem a mim, com o seu remexer constante das folhas da Cinemateca ou do saco de plástico ao colo, ainda vá. Agora perturbarem o ceguinho na sua fruição, isso é que não! A minha visão do filme ficou também baralhada. Já não sabia bem se era eu que estava a ver o filme ou se era o meu duplo experimental, que tentava fechar os olhos a torto e a direito, para experienciar a visão cega do filme. Claro que não é nada a mesma coisa. A possibilidade de os abrir diferencia a experiência determinantemente. “Maior cego é aquele que não quer ver.” Mas invejei-lhe um pouco, naquele momento, as virtudes da subtracção. Aqueles que querem acrescentar outros sentidos ao audiovisual não percebem nada. E o filme prestava-se, com a própria locução de Oliveira. Nos momentos mais silenciosos, o pai ou amigo a seu lado segredava-lhe pequenas indicações, certamente úteis. Tal como aquele adágio do “é apenas um filme, para mim este pequeno acontecimento derivado tornou sobretudo claro que nunca estamos apenas a ver um filme.


E ao sair da sessão lembrei-me deste texto:

«Escutei Nouvelle Vague, sim, o filme Nouvelle Vague. Ouvi-o. Eu não vejo.
Apesar da minha cegueira, vou muitas vezes ao cinema e tenho nisso bastante prazer e interesse. Claro que escolho sobretudo os filmes que não são principalmente visuais mas comportam bastantes diálogos. Com a ajuda de alguém que me descreve algumas acções ou elementos do cenário, eu imagino.
Vi até aos vinte e três anos, também conservei bastantes recordações visuais, e, pela força da imaginação, as cores e as imagens alimentam o presente do meu “cinema interior”. Os filmes vêm povoar esse espaço fazendo aí brotar bolhas de visões ou emoções coloridas. Se a escuta de um filme é um prazer, é também um esforço, uma concentração... Fazer apelo a recordações precisas para tornar o mundo interior o mais rico possível, supor e inventar para preencher os silêncios. Há sequências de filmes que acredito ter visto “com os meus olhos” de tal forma as cenas, as cores permanecem fortes e claras para mim.
Assim, como na vida, em que a vigilância é a norma de todos os meus gestos e deslocações, o cinema exige-me uma atenção aguda, senão perco o fio à meada.

[... É] preciso aceitar perder. Ele não nos entrega as coisas na sua totalidade, mas em brasa e esfumadas.
O erro estava em querer ouvir tudo para tudo compreender. Quando é mais: ouvir o “todo”, o caminho que nos propõe. Agora todas essas vozes pulverizadas compõem para mim uma outra, uma só voz humana, em migalhas mas viva, efabuladora, contendo os átomos gravitantes de uma mesma célula, os planetas de um mesmo cosmos.

O que são todas estas imagens...
Este enorme pensamento...




Cinema, olho e ouvido, observador do mundo exterior, ceifeiro de pequenos pedaços de realidade... desconstrução, sinfonia e alambique... para uma nova realidade de imagens em liberdade, as suas, as minhas, recriando-se infinitamente... O pensamento, potente e migrante, nascido de um exterior longínquo, pensamento ainda por nascer, explorador do impensável.
As vozes são passadoras, as de fora: voz de espuma, fogo de palha, címbalos e espelhos vidrados, as de dentro: imersas, graves, envolvidas num casulo de carne, fogo subterrâneo... E a minha escuta é movimento para seguir o do homem-árvore que se afunda na terra e se lança para o céu.
Mas a personagem querida do cineasta é talvez essa vaga nova, água que abole a forma e a regenera. A porta está aberta mas ninguém tem a chave, nem as personagens, nem o autor. Depôs num canto do meu ouvido um espaço de mistério que me alegra.
Filme escutado, filme sonhado, filme reinventado... Deixa-me um travo subversivo a invisível e a eterno.»

Claire Bartoli, «Le regard intérieur», Trafic, n.º 19, P.O.L., Paris

O texto de Claire Bartoli leva o apropriado nome de o olhar interior. Mas, perante ele, perante a experiência de alguém cego conseguir ver um filme e tantos outros não verem, não ouvirem nada, perturba-me antes a irreprimível capacidade que levamos todos de cegueira interior.

Tinha outrora publicado aqui um dos meus excertos preferidos de FRANCISCA de Manoel de Oliveira. Como o Youtube apagou o trabalho de anos de piratagem, fiquei sem ele para acompanhar um texto sobre a etologia do silêncio na sala de cinema. Recuperei entretanto, espero que de vez, o ficheiro de som. Ao ouvi-lo, como na altura, tornou-se-me de novo evidente a genialidade intuitiva de Oliveira, também no trabalho do som. Aliás, de que tanto gosto eu neste excerto senão do trabalho no som? Essa sua genialidade intuitiva, quer dizer, que teoria justificaria tamanhas decisões?, está, como quase sempre, nos pequenos pormenores, embora a eles não se reduza. Aqui, no modo delicioso como falam as personagens (e a propósito, continuando o delírio sobre o cliché de Oliveira, não seria muita da porrada que levou dirigida aos diálogos carregados de Agustina Bessa-Luís?) e, principalmente, como a conversa se enreda na música, de forma extremamente cómica e paradoxal...

Rulotes


Ao deus dará em todos os lugares,
em tendas velhas, em rulotes,
sabe-se lá onde vão cagar.
(Joaquim Manuel Magalhães)

Domingo de manhã. Saio para um pouco de sol e pequeno almoço na rua. A caminho do Príncipe Real, uma rulote de comes e bebes estacionada junto ao passeio, a funcionar. Algo de pouco habitual. A não ser que à rulote se sigam enormes camiões com geradores e equipamento de iluminação, etc. Percebe-se então que alguma equipa de cinema anda por ali a rodar. Haverá melhor imagem de um certo cinema do que esta rulote no meio de uma rua qualquer? Já Pedro Costa se queixava, há alguns anos, de como nas rodagens a primeira coisa que lhe perguntavam, logo pela manhã, era se queria carne ou peixe para o almoço...

Não sei ao certo porquê, mas isto relembrou-me duas coisas do discurso de apresentação de António Pinto Ribeiro, um dos comissários dos 6 novos filmes do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística, que me tinham ficado engasgadas. Dizia Pinto Ribeiro que estes novos filmes não correspondiam de todo ao cliché do cinema português. E dizia-o como se isso fosse uma coisa boa em si. Portanto, que estes novos filmes seriam diferentes e mais audazes, presume-se. Mas, como tentei começar a vislumbrar no texto sobre a relação entre Herman José e Manoel de Oliveira e a correspondente imagem do cinema português, talvez haja alguma verdade na composição desse cliché. Talvez a expressão mais singular deste cinema passe mesmo por uma correspondência à aparente lentidão e a um falso “não se passa nada”. Está mais que na altura de o assumir com frontalidade, para não sermos constantemente obrigados a uma postura defensiva forçada a aceitar as caracterizações dos seus detractores. Afinal, não são os maiores valores deste cinema, como Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, António Reis, João César Monteiro e agora Pedro Costa, expoentes dessa aparente “lentidão”? E não cabem as suas melhores obras, de certa forma, ainda na parte verdadeira desse cliché?



António Pinto Ribeiro, ao desprezar o cliché da forma que o fez, está obrigatoriamente também, a desprezar o cinema que lhe corresponde. Não apenas adopta o cliché como verdadeiro, confirmando-o, como também está disposto, e é o mais grave, a preferir uma expressão cinematográfica quase inócua mas que consiga quebrar a correspondência ao cliché, numa fuga para a frente. Porque o problema está no facto de ser ainda preciso que os que fogem ao cliché alcancem a mesma força de expressão cinematográfica. E isso ainda está por vir, pelo menos, e ao contrário do que deu a entender, não é ainda nestes novos filmes que se a encontrará.
No entanto, a importância particular do filme AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO de Miguel Gomes talvez esteja, para além dos seus outros atributos, em ser essa primeira excepção (que, no entanto, ainda confirmará a regra?). Ou seja, existe, paralelamente à obra de Pedro Costa, que é a encarnação de que hoje se poderia alimentar o cliché, um primeiro filme português de particular relevância cinematográfica que não pode cair de maneira alguma na definição do cliché do cinema português.

Em paralelo, uma segunda afirmação de Pinto Ribeiro fez referência a uma outra escala de produção possível. No seu entender, os filmes que apresentou provam possível uma escala de produção menor, ou seja, com bastante menos dinheiro. Quer isto dizer que os filmes da Gulbenkian certamente não alugam rulotes de comes e bebes, o que não deixa de se saudar. Mas há também aqui algo de enganador. Não se trata apenas das obras apresentadas, em geral, denunciarem os seus baixos valores de produção, o que as limitará esteticamente e, posteriormente, no retorno comercial da sua distribuição. Em Portugal, e talvez ainda bem, a maior parte dos realizadores fará um filme com o dinheiro que lhe derem. A escala de produção pode sempre descer.



O que é enganoso é que se queira fazer passar a ideia de que se pode fazer descer essa escala de produção sem se pôr igualmente em causa a qualidade dos filmes. Não por acaso o programa Gulbenkian destina-se a jovens artistas, mais dispostos a aceitar essa precariedade. Não por acaso ainda não existem dados claros que permitam assegurar que desse programa resultaram (ou resultarão) cinematograficamente obras que fiquem. E sobre os filmes pobres há alguns enganos mais. Só por engano também se pode pensar que Pedro Costa faz filmes pobres em si. O que faz, e muito bem, é usar o muito dinheiro da produção dos seus filmes em extensão, em vez de intensamente no espaço de tempo de uma rodagem curta. Claro que não é apenas essa a diferença da economia de produção do seu cinema, sobre a qual aliás se debruça constantemente nas entrevistas. Mas trata-se, mais ou menos, do mesmo dinheiro que outros filmes financiados pelo Estado têm em Portugal, apenas sujeito a uma utilização muito diferente, eventualmente mais justa, e que corresponde sobretudo, ou é solidário, com o tipo de filmes que Pedro Costa deseja fazer. Essa ética da pobreza aplicada a filmes que não têm praticamente dinheiro nenhum não terá obviamente os mesmos resultados, ou apenas excepcionalmente por um qualquer gesto inaudito e extremamente precário. É aliás muito enganoso fazer corresponder qualidade dos filmes e dinheiro, pois para aquela contribuem muitos outros factores. Por isso, convém deixar claro que a escala de produção que defende Pinto Ribeiro não têm ainda expressão cinematográfica que a justifique.

Adenda: Já que estamos a debruçar-nos sobre o Programa Gulbenkian Criação e Criatividade Artística, cujo Curso de Vídeoarte termina esta Quinta-feira com a apresentação pública dos trabalhos, convém referir que, de entre os inúmeros monitores de relevo deste curso, como Jean-Pierre Gorin, Chantal Akerman, Colin MacCabe, Avi Mograbi, Madeleine Bernstorff, Françoise Parfait, apenas Harun Farocki apresentou uma masterclass aberta ao público. Infelizmente, desaproveitou-se assim a rara presença em Portugal destas pessoas, limitando severamente o impacto que o programa poderia ter para além da formação dos felizes alunos contemplados.

Ao pé da letra #28 (António Guerreiro)

«A metáfora do sangue presta-se a usos sinistros

Na semana passada ficámos a saber, através de um estudo relatado pelo Público, que os portugueses têm, em elevada percentagem, genes dos mouros e dos sefarditas. A ciência que pretende determinar as características genéticas de um povo, grupo ou comunidade é mais do que duvidosa e acaba geralmente na sinistra biologização da Cultura e da História e na procura do originário e incorrupto. Com base neste estudo, José Manuel Fernandes escreveu um editorial intitulado “O ADN deste país em que vivemos...”, que começava de forma eloquente:

“Deixem-se de peneiras, portugueses do Sul: 35 por cento do sangue que corre nas vossas veias é judeu.” J.M.F. até se regozija com esse facto, mas a sua apologia da mestiçagem recorre à mesma retórica do mito da raça. A metáfora do sangue é daquelas que não podemos ler sem sobressaltos, sobretudo quando serve para a figuração de um povo (veja-se a obsessão nazi da “Rassengestalt”) e para determinar a sua História com destino. Quando J.M.F. passa do sangue do “nosso destino como nação” estamos no campo da biopolítica total e da ideologia totalitária, que permite explicar o movimento da História como um processo único e coerente.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 13.12.2008.

Filmes sobre filmes




Os filmes precisam de um exterior para que remetam: a vida... Os filmes, aliás, todas as obras de arte, e mesmo as pessoas, sem esse exterior tornam-se sufocantes. Como se explica então que filmes sobre filmes nos cativem? Não seria o deles um exterior quase por delegação: um filme remete para outro que remete para um exterior? Ou é já esse exterior que os atravessa de par em par? Em todo o caso, é preciso muita fé no próprio cinema enquanto matéria viva do mundo, e não apenas reflexo deste, para fazer um filme sobre um filme. Quem tenha visto os filmes sobre filmes de Jean-Luc Godard, em particular as suas HISTOIRE(S) DU CINÉMA, terá reparado no curioso efeito que provocam. Reinvestem de esplendor cada pedaço de filme outro, tornando, na nossa memória alegremente confusa, inseparáveis os filmes originais das suas evocações. Assim DUEL IN THE SUN de King Vidor, com a Jennifer Jones e o Gregory Peck, aos tiros e beijos até à morte num monte poeirento. E outros que tais...

Se a programação é a arte de arranjar desculpas para programar bons filmes, os filmes sobre filmes, quando conseguidos, são os extremos da emancipação do cinema. No ciclo “Histórias do cinema por si próprio”, programado por Ricardo Matos Cabo, tivemos a oportunidade de conhecer um outro grande expoente dessa magia: o documentarista alemão Hartmut Bitomsky. Neste seu DAS KINO UND DER TOD / O CINEMA E A MORTE (1988), em que por oposição aos seus filmes sobre filmes seguintes, o dispositivo ainda é aparentemente rudimentar, baseado na passagem à mão de fotografias dos filmes, é incrível o exterior que passa. Como nos generosos livros de Deleuze, em que fica imediatamente a apetecer ler cada obra de literatura citada, cada filme em que Bitomsky toca, mesmo sob o tema pesaroso da “morte”, ganha um fascínio súbito, vital, e até, porventura, enganador. Poderemos comprová-lo hoje quando virmos o filme sobre o qual se exercita este excerto.

The killers (1964) Don Siegel
6ª, dia 12, 22h – Cinemateca, Lisboa

O cliché de Herman José. Homenagem falhada a Manoel de Oliveira


Das unanimidades, tanto positivas como negativas, é sempre de suspeitar. Manoel de Oliveira, agora que lhe comemoram o centenário, nunca esteve tão perto de ser unânime. É muito difícil, neste contexto, ter algo a dizer sobre a sua obra, porque se calam mesmo aqueles que nunca a puderam ver nem pintada. Não querem estragar a festa. Pois, mas sem inimigos a entronização ameaça, pese embora Oliveira, que conheceu desfeitas antigas, como bem lembra em alguns filmes, não pareça com vontade de se deixar levar. Mas fica algo por dizer, por compreender, então. Que foi feito de todo esse ódio disfarçado de paródia que lhe tinham? Mistério!

Por isso, a única homenagem que sou capaz de fazer, neste momento, a um realizador que muito admiro, é lançar a suspeita sobre essa unanimidade, procurando a contrapêlo perceber o que aconteceu entretanto para que a sua obra se tornasse tão mais dócil para o status quo. Parece-me que a melhor maneira de o fazer passa por indagar aquele que foi o modo como a maior parte das pessoas terá conhecido o cinema de Manoel de Oliveira. Ou seja, através dos sketches nos programas de Herman José. E digo “conhecido” com plena consciência, pois, como aqui escrevi há algum tempo, esse cliché humorístico da lentidão, que se estendeu depois dos filmes do Oliveira para uma caracterização geral do cinema português, captava então algo de verdadeiro. A languidão dos corpos, a fala arrastada e pausada, “cheia de silêncios”, sendo de facto um cliché de alguns filmes de Oliveira, era e é ainda, ao mesmo tempo, para quem veja os filmes, parte inextirpável da potência expressiva desses mesmos filmes, das sensações que ele permite.


A poderosa emoção de alguns dos seus melhores filmes, como AMOR DE PERDIÇÃO, FRANCISCA ou VALE ABRAÃO, decorre em grande parte do estado de quase transe em que essas cenas deixam o espectador. Por isso, se fosse programador da Cinemateca, e se me deixassem, claro está, teria incluído esses sketches de Herman José na retrospectiva integral da obra de Oliveira que agora decorre. Não são ofensas à obra, pelo menos os melhores não o são; pelo contrário, são quase parte integrante dela. Creio até que este assunto da eficácia do cliché humorístico na “imagem” do cinema português reveste-se de uma tal seriedade que era dos que mais justificava uma investigação académica. Tema para uma tese de mestrado bem fundamentada e tal, porque não?

E por uma daquelas coincidências espantosas, recebo finalmente, no próprio dia do aniversário de Manoel de Oliveira, a resposta que tanto esperava relativa a esta questão. Tinha feito uma pergunta por escrito sobre o assunto na página pessoal de Herman José. Respondeu-me o próprio [penúltima pergunta e resposta] (ou alguém a passar-se por ele, não interessa; como a resposta demorou dois meses e meio, vou partir do pressuposto que foi mesmo ele):

P: Caros, Gostaria de saber ao certo, para uma investigação que estou a fazer, quando começou o Herman José a fazer
sketches com os filmes do Manoel de Oliveira em particular, e sobre a lentidão do cinema português em geral, e em que séries é que os posso encontrar? Muito obrigado, André Dias

R: Caro André, do primeiro não me lembro. O melhor foi no Herman Enciclopédia !




Infelizmente, à alegria de ter obtido uma resposta à minha pergunta, de resto talvez demasiado factual e laudatória de menos, não correspondeu uma iluminação esclarecedora. Como puderam ler, a resposta de Herman é assim para o negligente. Custa-me a crer que não tenha melhor memória da sua obra, também ela com laivos de genialidade a seu tempo, e que afinal lhe deve ter custado bastante a criar, principalmente nos momentos iniciais. Duvido, portanto, que seja no Herman Enciclopédia, série bastante mais tardia (de 1997) e já decadente do seu humor, que tenham sido realizadosos os melhores sketches sobre Manoel de Oliveira e o cinema português.
A minha memória é ainda mais frágil que a de Herman, mas, e relembrando que o ponto extremo da comicidade FRANCISCA é de 1981, julgo bem mais provável que seja na série Hermanias (1984) ou Humor de perdição (1987) que se encontrará um fantástico sketch que, para mim, resume esta coincidência entre o cliché humorístico e a sensação estética. Gostava imenso de o rever. Quanto mais não fosse para verificar se, como quero acreditar, esse humor de Herman ainda hoje se sustenta por si, ou se era apenas o desdém que já então o aguentava. Talvez Herman (e os seus seguidores, incluíndo os Gato Fedorento) nunca se tenha conscientemente apercebido dessa coincidência, o que não é importante; mas, acompanhando a sua decadência como humorista, o cliché sobre o cinema português foi-se tornando cada vez mais amargo. Na ausência da visão desse sketch antigo, talvez fundador, este texto baseia-se numa pressuposição inverificável. Não pode por isso deixar de ser uma homenagem falhada a Oliveira (mas também a Herman, já agora).

É verdade que na Herman Enciclopédia um dos episódios se chama precisamente “Cinema”, e incluí dois sketches a que Herman se pode estar a referir. Mas não só estes não são muito inspiradores, como são isentos da generosidade necessária ao humor (embora o d“a tradutora” tenha alguma piada, por causa do linguajar; conferir o outro: sobre “salas de cinema portuguesas”). Já no Herman Sic se pode comprovar, sem dúvida alguma, como o desdém tomou conta do humor, quebrando a coincidência que outrora ele tinha sido tão capaz de apreender, quando sabia menos do que captava. Isso é prova da sua enorme falência, por comparação com Oliveira, certamente. Neste aspecto, a passagem do tempo foi bem cruel para Herman.
Convém dizer, no entanto, que a evolução da obra de Oliveira contribuiu igualmente para a dissolução da coincidência entre o cliché humorístico e a sensação estética, pois perdeu entretanto muita da sua radicalidade. Diluiu-se, por assim dizer. Ao que não será alheio o facto de a produção ter aumentado exponencialmente. Os seus inúmeros filmes recentes continuam imensamente livres, pois Oliveira é antes de tudo um intuitivo, ao contrário do que pensam os seus detractores, pseudo-intelectualizando-o. Mas nem todos os filmes se sustentam já por inteiro. As partes falhadas ferem o todo, o que não acontecia anteriormente. Talvez por isso já não sejam tão agressivos, disruptivos, inovadores, e, precisamente por isso, passíveis de humor. Podem enfim servir à comemoração.

P.S.: Luís Miguel Oliveira encontra uma outra genealogia, mais profunda, “uma espécie de mito fundador da repulsa”.


O Ípsilon, suplemento cultural do jornal Público, passou a estar online! Será isto motivo de regozijo? Ou será que passou a ter apenas 48 páginas em papel, que são menos 12 que na edição anterior de 5 de Dezembro? Espera-se que este emagrecimento seja meramente circunstancial.

O que é o contemporâneo? (Giorgio Agamben)


«[...] O poeta –
o contemporâneo – deve ter o olhar fixo no seu tempo. Mas que coisa vê quem vê o seu tempo, o sorriso demente do seu século? [... C]ontemporâneo é aquele que tem o olhar fixo no seu tempo, para nele se aperceber não das luzes mas da escuridão. Todos os tempos são, para quem neles experimenta a contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é aquele que, precisamente, sabe ver esta obscuridade, que está à altura de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Mas que significa “ver as trevas”, “aperceber-se da escuridão”?
Uma primeira resposta é-nos sugerida pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando nos encontramos num ambiente privado de luz, ou quando fechamos os olhos? O que é a escuridão que então vemos? Os neurofisiologistas dizem-nos que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, ditas, precisamente, off-cells, que entram em actividade e produzem aquela espécie particular de visão a que chamamos escuridão. A escuridão não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência da luz, algo como uma não-visão, antes o resultado da actividade das off-cells, um produto da nossa retina. Isto significa, se voltarmos agora à nossa tese sobre a escuridão da contemporaneidade, que aperceber-se desta escuridão não é uma forma de inércia ou de passividade, antes implica uma actividade e uma habilidade particular, que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêem da época para descobrir as suas trevas, a sua escuridão especial, que, no entanto, não é separável daquelas luzes.


Pode dizer-se contemporâneo somente quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue nelas distinguir a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. Com isto, todavia, não respondemos ainda à nossa pergunta. Porque nos deveria interessar chegar a aperceber-nos das trevas que provêem da época? Não é talvez a escuridão uma experiência anónima e por definição impenetrável, algo que não nos é dirigido e que não pode assim dizer-nos respeito? Pelo contrário, o contemporâneo é aquele que se apercebe da escuridão do seu tempo como algo que lhe diz respeito e que não cessa de o interpelar, algo que, mais do que todas as luzes, se dirige directa e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o feixe de trevas que provêem do seu tempo.

No firmamento que olhamos de noite, as estrelas brilham circundadas por uma espessa treva. Dado que no universo há um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, a escuridão que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita de explicação. É precisamente acerca da explicação que a astrofísica contemporânea dá sobre esta escuridão que vos queria agora falar. No universo em expansão, as galáxias mais remotas distanciam-se de nós a uma velocidade tão grande que a sua luz não chega a alcançar-nos. Aquilo de que nos apercebemos como escuridão do céu é esta luz que viaja velocíssima em direcção a nós e que, no entanto, não nos pode alcançar, porque as galáxias de onde provêm distanciam-se a uma velocidade superior à da luz.



Aperceber-se, na escuridão do presente, desta luz que procura alcançar-nos e que não o pode fazer, eis o que significa ser contemporâneo. Por isso é que os contemporâneo são raros. E por isso é que ser contemporâneo é, antes de mais, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de ter o olhar fixo na escuridão da época, mas também aperceber-se, nessa escuridão, de uma luz que, dirigida na nossa direcção, se distancia infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual ao encontro a que se pode somente faltar.
Por isso o presente de que a contemporaneidade se apercebe tem a espinha partida. O nosso tempo, o presente não é, na verdade, apenas o mais longínquo: não pode em caso algum alcançar-nos. As suas costas estão despedaçadas e nós situamo-nos exactamente no ponto da fractura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporâneos. Compreendam bem que o encontro que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro dele e que o transforma. E esta urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos permite aferir o nosso tempo na forma de um
demasiado cedo que é, também, um demasiado tarde, de um que é, também, um “ainda não”. E, conjuntamente, reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder alcançar-nos, está perenemente em viagem na nossa direcção. [...]»

Giorgio Agamben, Che cos'è il contemporaneo? (2006),
nottetempo, Roma
, 2008, pp. 13-17.

Ao pé da letra #27 (António Guerreiro)

«Engenheiros, filósofos e a barragem como destino

Mira Amaral, ministro da Indústria dos governos de Cavaco Silva, garante que um dia será construída a barragem de Foz Côa, inevitavelmente, e por exigência das próprias populações, pondo-se assim fim à “fantochada de um grupo de paleolíticos”. Tal certeza, dir-se-á, tem um fundamento empírico. Eu prefiro pensar que Mira Amaral não se baseia na experiência e no saber de engenheiro, mas nas suas leituras de Heidegger, onde aprendeu que a “questão da técnica” é a de um destino ao qual não se pode deixar de obedecer.

Mira Amaral não é um engenheiro visionário; é um leitor de Heidegger que sabe muito bem que a técnica moderna tem um papel impositivo e provocante. Mas, ao contrário do filósofo, não está nada preocupado com o nihilismo dessa redução da natureza ao calculável e ao manipulável. Se em vez de Côa fosse o Reno, o engenheiro acharia que o hino de Hölderlin (“Der Rhein”) era uma manifestação paleolítica, uma nostalgia reactiva pelo mundo da “poiesis” grega. E pensaria que é preciso considerar como ampla visão o que Oswald Spengler entendia como redução: “Não podemos olhar uma cascata sem a transformarmos mentalmente em energia eléctrica.”»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 6.12.2008.


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