Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #118 (António Guerreiro)

Sobre salário proletário e sobressalário burguês que se pode realizar em tempo ou em dinheiro

«Sursalaire é uma palavra francesa a que o filósofo Jean-Claude Milner deu o estatuto de conceito num pequeno livro de 1997 intitulado “Le salaire de l’idéal”. Experimentemos traduzi-la por ‘sobressalário’. Milner parte da seguinte verificação: os títulos de pertença à burguesia já não dependem da propriedade mas do nível de remunerações e do modo de vida que estas permitem. Mas para o burguês remunerado não é válida a análise marxista do salário do proletário. O salário proletário, do ponto de vista marxista, é sempre iníquo; o salário burguês, esse, é arbitrário. Depende de arbítrios políticos e da definição de poderes. Aquele que é considerado poderoso num determinado momento ganha um sobressalário e está sujeito a perdê-lo se perder o poder (quer porque o delapidou, quer porque houve uma alteração da distribuição de poderes na sociedade). Tem um sobressalário aquele que ganha à medida da sua sobrepotência.

A proletarização de algumas classes profissionais (por exemplo, professores e jornalistas) mede-se não apenas pelo facto de terem perdido autonomia intelectual mas também porque o tempo de que dispõem para ganhar dinheiro é cada vez menor e o tempo de trabalho aproxima-se do correspondente ao salário proletário. Ora, a questão do tempo tem de ser equacionada quando falamos em salário e em sobressalário. Como mostra Milner, não há apenas uma burguesia do sobressalário, há também uma burguesia do sobretempo. A burguesia sobrerremunerada, ao contrário da antiga burguesia da propriedade, em geral não dispõe de tempo: é a realidade de muitos quadros das empresas. A burguesia que converte o salário em tempo — a burguesia do sobretempo —, pelo contrário, é désoeuvrée: não faz obra, ou a obra que faz não corresponde a um operare. Em suma: é a ‘parte maldita’ da economia produtiva.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 27.11.2010.

[Problemas espirituais] (Giorgio Agamben)

Faulkner escreveu uma vez que o verdadeiro problema do nosso tempo é já não existirem problemas espirituais.

O significado deste diagnóstico é mais cruel do que parece e diz-nos muito respeito. Que já não existam problemas espirituais, que estes já não sejam sentidos como algo de decisivo e de iniludível, gera, com efeito, uma angústia sem precedentes. Longe de nos libertar do mal-estar, o facto de os problemas da humanidade se terem tornado calculáveis, questões factuais urgentes e eventualmente complicadas, mas que, em última instância, requerem ser governadas e não vividas nem pensadas, é precisamente o que nos remete para uma especial angústia, tanto mais intolerável quanto mais, pelo menos na aparência, resolúvel. No seu diário, Fallot conta ter tido assim a experiência mais profunda da angústia diante da morte quando, depois de no restaurante ter pedido a sua sobremesa habitual, ouviu responder que, naquele dia, não havia. Naquele instante soube com absoluta certeza que daquela angústia jamais se libertaria, que esta o acompanharia para toda a vida.

Se o filme giallo é o paradigma de um mundo no qual tudo depende unicamente da solução de um problema factual, então, num universo já sem problemas espirituais, os homens ficam ansiosos e alheios perante a sua vida como as personagens de uma detective story diante do delito. E enquanto economia, medicina e tecnologias de toda a espécie (que são sempre, em última análise, técnicas de governo) assumem a direção dos destinos humanos, os problemas espirituais (e as técnicas que transmitiam a sua experiência: poesia, filosofia, arte) escorregam impercetivelmente para a esfera da cultura, ou seja, deixam de ser decisivos.
Porque hoje — é preciso lembrá-lo? — continuam a construir-se museus (e até, sem darem conta da contradição, “museus de arte contemporânea”), auditórios e teatros, mas é claro que tudo isso já não concerne às questões que decidem acerca da nossa possibilidade de viver e ser felizes. O assim chamado “espírito”, que não era senão o nome que os homens davam ao ponto de maior intensidade em cada domínio da sua vida, torna-se assim uma esfera autónoma e separada, tudo somado, dispensável e frequentemente aborrecida. Aquilo pelo qual cada coisa vale a pena ser vivida transforma-se numa distração cada vez mais manchada pela dúvida de que talvez “não vale a pena”, que se possa viver apenas procurando na internet uma outra vida e um rosto que parece mais verdadeiro, precisamente por ser constitutivamente marcado pela falsidade e pela máscara.

Significa isto, como alguns bem pensantes aconselham, que se deva voltar às “coisas do espírito” (expressão ainda mais contraditória que “museu de arte contemporânea”) como se poesia, arte e filosofia estivessem à espera, separadas e acessíveis, algures? Ou antes, como sugere Humphrey Bogart no final de Relíquia Macabra, que verdadeiramente espiritual e poética é a consciência de que as coisas e os factos a que estamos irrevogavelmente remetidos são apenas, como a estatueta do falcão, “a matéria de que são feitos os nossos sonhos”? Que, no nosso errar por entre os factos e as coisas, não devemos esquecer a recordação daquele ponto de intensidade (espiritual, ou seja, evanescente e subtil) que decide a cada vez o nosso desejo e a nossa forma de vida?

Giorgio Agamben in piazzaemezza (nottetempo), 23.10.2009 (por via daqui e dali; conferir também isto).

[Lançamento do livro “Classe” de Andrea Cavalletti]

Ao pé da letra #117 (António Guerreiro)

Sobre a constante dita de Enzensberger que um editor português, dado a contas, pode invalidar

«Vasco Teixeira, responsável editorial pela Porto Editora, o maior grupo editorial português, fez as contas e concluiu: “Se me perguntar se daqui a dez anos ainda se edita poesia em Portugal, dir-lhe-ei que não. Quando muito, teremos algumas edições artesanais (...). E haverá mercado para isso. Para o tipo que faz uma edição de 30 ou 50 exemplares que os amantes de poesia comprarão.” Em 1989, um grande poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, também tinha feito as suas contas (a matemática não é uma ciência que lhe seja estranha) e chegara a um número muito mais rigoroso do que o do empresário português: mais ou menos 1354. E como tentava demonstrar que esse número era uma constante universal, para todas as comunidades linguísticas e em todos os tempos, chamou-lhe “a constante de Enzensberger”. O escritor alemão explicava esta constante através desta anomalia: é impossível transformar poemas em dinheiro. Sempre assim foi e sempre assim será.

Menos dado à matemática, Vasco Teixeira formula a sua constante não em termos de valor numérico (há um intervalo demasiado grande entre os dois números que avança no seu prognóstico) mas em termos de lei económica: a lei do mercado não admite anomalias. A constante dita de Vasco Teixeira pode invalidar a constante dita de Enzensberger por uma razão fraudulenta: quem detém um tão grande grupo editorial e também a maior rede de livrarias do país (a Bertrand) tem algum poder para fazer com que a sua profecia se realize, para que ela seja uma self-fulfilling prophecy. Mas sabendo nós que anteriores mortes anunciadas foram uma falsa notícia, talvez a constante dita de Vasco Teixeira admita as suas exceções e as espécies minoritárias sobrevivam em microclimas. Vamos então suspeitar da constante dita de Vasco Teixeira: “30 ou 50” não é afirmação de ciência certa.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 20.11.2010.

Até que todo o passado seja recolhido (Benjamin)

Pequena proposta metodológica para a dialética da história cultural. É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes “domínios”, segundo determinados pontos de vista: de modo a ter, de um lado, a parte “fértil”, “auspiciosa”, “viva” e “positiva”, e de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a esta parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão (mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente especificado. E assim por diante ad infinitum, até que todo o passado seja recolhido no presente em uma apocatástase* histórica. [N 1a, 3]

* Apocatastasis = a “admissão de todas as almas no Paraíso” [...].

Walter Benjamin, Passagens,
Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006.

Ao pé da letra #116 (António Guerreiro)

Sobre a ilusão de que a bancarrota está iminente quando nela já entrámos há muito tempo

«No discurso político em que estamos envolvidos, a velha questão da classe permanece, da Direita à Esquerda e vice-versa, apenas como vestígio na referência generalizada a uma “classe média” que não é mais do que a não-classe em que as velhas classes se dissolveram: a pequena-burguesia universal, que encurtou a distância entre o gosto das massas e o das elites. Dir-se-ia que ela é uma alusão deturpada da consciência de classe que Lukács reelaborou, nos anos 20 do século passado, como categoria fundamental de uma teoria da história. Por isso é que assistimos hoje, em todo o espectro político, à tragicomédia onde se representa a reconciliação de tudo com o seu contrário: a poupança com o consumo, o capital com o trabalho, o ‘crescimento’ com a abstinência, o espetáculo mediático com a democracia, o valor de uso com o valor de troca, a política económica com a economia política. Nesta dança sacrificial pela salvação a todo o preço de velhos potentados político-ideológicos que bloquearam o horizonte, renunciou-se completamente a explorar novas possibilidades e a reconhecer que, tal como fora anunciado por uma mente lúcida, o estado de exceção se tornou a regra e a bancarrota que tanto receamos já se deu.

Reconhecer que se esgotaram os meios para pagar as dívidas — não as materiais, mas as culturais e políticas — que durante décadas fomos contraindo como conquistas e direitos é o passo necessário para recomeçar de novo. Que a bancarrota pode chegar de forma impercetível (como o Messias da mística judaica) é o que nos dizem estas palavras do poeta grego Kavafis dirigidas a Forster: “Vocês, os Ingleses, não podem compreender-nos; nós, os Gregos, entrámos em bancarrota há muito tempo.” Quase um século depois, a Grécia está a tentar salvar-se da bancarrota como se nela nunca tivesse entrado e nem por sombras quer escutar o seu demónio — o poeta de Alexandria.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 13.11.2010.


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