Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Quatro curtas-metragens de Marguerite Duras


Césarée__
Césarée 11'
Les mains négatives 18'
Aurélia Steiner (Melbourne) 35'
Aurélia Steiner (Vancouver) 48'
1979, de Marguerite Duras
projecção com apresentação de Susana Duarte
5ª, dia 27 de Abril, 21h - Monte

«Estou numa relação de morte com o cinema. Comecei a fazê-lo para chegar à conquista criadora da destruição do texto. Agora, é a imagem que quero atingir, reduzir. Estou à beira de conceber uma imagem passe-partout, indefinidamente sobreponível a uma série de textos, imagem que não teria em si nenhum sentido, que não seria nem bela nem feia, que receberia o seu sentido apenas do texto que passa sobre ela.» (Marguerite Duras, Les yeux verts)

{Destruição}
conversas, sons, projecções, deambulações em Abril no Monte
Rua do Monte Olivete, 30 A (ao Príncipe Real) - Lisboa

Conjugação do verbo «peticionar» no presente do indicativo

Eu peticiono
Tu peticionas

Ele peticiona

Nós peticionamos

Vós peticionais

Eles peticionam




(cf. «O caso Bénard da Costa e os sapatos de Michel Piccoli» nos Dias Felizes)

Coming apart


Coming apart de Milton Moses Ginsberg (1969) 110'

Coming apart. Que título estranho, aos meus ouvidos pouco ingleses. Por relação ao filme, tenho alguma dificuldade em compreender o que quererá dizer, apesar de parecer tão óbvio. (Num sítio dedicado à “divorce recovery”, encontro a descrição detalhada e sequencial de várias fases do processo de “coming apart”.) Talvez seja algo assim simples: separar-se (de si, dos outros).
A verdade é que não sabia bem o que escrever sobre este filme. Como se permanecesse naquela admirável distância afectiva, não recuperada, em que o filme ainda não se perdeu de nós, continua a agir por dentro, tornando-nos mudos, numa interiorização daquela estranheza que se segue à saída da sala para a rua, onde o mundo e o nosso corpo por alguns momentos se mantém em prolongamento do filme, até se desvanecer esse efeito (que é a verdadeira pedra de toque dos bons filmes). Portanto, o efeito interioriza-se. E ficamos estranhos.
Queria mesmo assim chamar a atenção para ele, avisar os distraídos da sua proximidade. Outros (Doc Log, As Aranhas, se calhar em mais, não procurei) menos hesitantes, o fizeram, e ainda bem. N’As Aranhas utilizava-se a mesma imagem e tudo. Troco de imagem, pois há diversas faces para este polígono. Pensava pegar nas suas palavras e retomá-las, criativamente. Era uma escapatória. Nem isso consigo, e ainda bem. Afinal, que bom que não consigamos fazer nosso o que não nos pertence.
Em primeiro lugar, não consigo pensar ou evocar o filme pela descrição do seu “dispositivo”. Face à experiência do filme, as saliências do dispositivo parecem-me redutoras ou quase completamente ao lado (como o Luís Miguel Oliveira apesar de tudo avisou). Não consigo deixar de me perguntar se este dispositivo será assim tão diferente de um realizador que entrasse em campo (por exemplo, Kiarostami por actores interpostos). E a crueza de algumas personagens, ou da sua interacção, vale mil vezes o dispositivo, afinal também tão pouco erótico, ou de um erotismo meramente imagético, apesar de certamente complexo.


Numa dimensão mais próxima, a da desafecção, recordou-me muitas vezes um outro filme curioso do Morrissey e do Warhol – I, a man (1967) – em que um homem, manifestamente impotente, quero eu dizer sexualmente, apercebíamo-nos disso por tanta e interminável conversa, abordava inúmeras mulheres, sem que nada chegasse a acontecer. Esta espécie de suspensão, meio desesperada, esta desafecção sexual é-me simpática, por contraponto ao obrigatório pulsional da sexualidade pornográfica, embora afinal apenas dela decorra e radicalmente a ela se assemelhe. Mas creio que é a desafecção, quer dizer, os corpos desregulados, esvaziados, despidos das pulsões obrigatórias naturais, que está aqui em jogo. Isso é o perturbante. Tanto quanto a excentricidade e fadiga dos corpos ocupados a cumprir essas pulsões. Que a imagem e os seus dispositivos tenham nisto, nesta construção da desafecção, um papel essencial, certamente, pois concorrem ambos para o seu sentido, são uma das suas dimensões. Mas que seja ela, a imagem, o que urge pensar, de todo. Assim, por exemplo, a sequência final é não apenas a da destruição do reflexo do dispositivo, mas também, na “dança” daquela personagem feminina, a da destruição de todas as “imagens” do corpo, as que o prendem, e que são todas, colocando desafecção e pulsões sexuais múltiplas no mesmo espaço. Destruição das pulsões, em prol de um corpo extenso, desencontrado, não-analítico, de um corpo que se permita ser afectado por tantas outras coisas, que escape a si próprio.

Le filmeur


Le filmeur de Alain Cavalier (2005) 100'

« Os primeiros planos do filme foram filmados em 1994, no momento em que passei a ter um diário íntimo com uma câmara em vez de com uma caneta. As últimas imagens datam de 2005. Mais de dez anos de vida em cem minutos de projecção.
Em grande parte das cassetes gravadas havia muito desperdício, entre o não mostrável e o incompreensível. A verdadeira dificuldade na escolha e organização dos planos era o reconhecimento dos não-ditos e da sua importância. Quando se filma ao vivo [sur le vif], não se fazem comentários, não se tenta ser compreensível, vive-se. »

« Pode dizer-se de Le filmeur que é um diário íntimo?
Sim, porque tomo como material a minha vida pessoal. Mas a palavra “íntimo” permanece em debate ou por definir. Para organizar muito ou pouco a desordem absoluta que em mim reina, preciso de sair de mim para olhar e escutar o mundo. O exterior e o interior não estão nunca separados um do outro. Todo o filme dito autobiográfico é na verdade um olhar para o exterior. Le filmeur é um filme introspectivo, mas através do olhar sobre os outros. »

« Não se interroga muito sobre o espectador...
... sim... penso nisso...
... o espectador de cinema chegou a uma idade em que espera isso, talvez?
Penso que o espectador, no seu inconsciente ou na sua vida, já acumulou toda uma série de experiências cinematográficas. Há sequências das quais viu muitas combinações. Não diria que fez progressos, mas que sabe coisas. Logo, é preciso tentar apresentar-lhe as mesmas coisas, ou seja, as expectativas, os desejos, as decepções, enfim, aquilo que compõe a trama das nossas vidas. Mas é preciso fazer sempre um esforço para não repetir o que os outros fizeram porque, desse modo, as pessoas não redescobrem a vida, a sua própria vida, e não ficam gratas. Descobrir, como diz Pascal, uma riqueza que existe nelas, que elas ignoram e, a partir do momento em que se a revela, elas ficam gratas ao filme. E dá-las de graça, é um dom, um presente... Desde logo, filmar apenas coisas que nós próprios tenhamos reconhecido, percursos que se conhecem bem.
Coisas que se viveu.
Sim, ou que outros viveram ou filmaram. É entre duas vivências que a coisa fervilha. » (Alain Cavalier)

« Por outro lado, é flagrante que o vídeo digital lhe tenha permitido aprofundar a relação entre quem toma a decisão de filmar e o mundo que filma; de obter, no próprio facto de carregar a câmara e de entrar, desse modo, em contacto físico com o que o rodeia, algo da ordem de um tremor íntimo imediatamente registado, de uma emoção táctil, de uma troca audaz e misteriosa entre si e o que o rodeia. (...)
Todo o encantamento e chatices do quotidiano, a inconcebível leveza do destino humano que se mantém, do nascimento à morte, em equilíbrio precário por cima do abismo. Um sopro, um murmúrio, parecidos aos da sua voz que procura, como em confidência, o possível equilíbrio com esse mundo que a sua mão enquadra às apalpadelas.
Na linha de mira: o espectador como indivíduo e igual, a quem faz crer que o filme não está afinal à altura da ligação que suscita. Suprema elegância, mas piedosa mentira, sendo a arte maior evidentemente necessária ao reconhecimento que lhe devemos.»
(Jacques Mandelbaum, «Lettre à un cinéaste qui libère son spectateur», Le Monde)

«Sendo que a matéria do seu cinema é o que há de mais rico, a vida, o quotidiano, quer isso dizer que nunca se cansará de fazer cinema?
Sim, porque posso igualmente conceber o limite extremo que consiste em tentar fazer um filme sobre os meus derradeiros momentos. Porque não? De tempos a tempos, dou por mim a pensar nisso. Isto levanta problemas também porque não se pode estar muito diminuído, é necessário ter ainda algumas forças. E fazer algo que nos ajude a desaparecer, trabalhando sobre isso. E depois, tentar dar, aos outros, uma versão que não seja aterradora.
Tem alguns projectos?» (Alain Cavalier)

Não guardo rancor, embora...


«Ich Grolle Nicht» (op. 48, n.º 7) de Robert Schumann, segundo poema de Heinrich Heine, cantada em dinamarquês por Gurli Plesner, que faz nesta cena a voz de Gertrud (interpretada por Nina Pens Rode) em Gertrud (1964) de Carl Th. Dreyer.

Não guardo rancor, embora o meu coração se parta,
Amor perdido para sempre! Não guardo rancor.

Mesmo quando brilhas radiante entre diamantes,
Nenhum raio de luz chega à noite do teu coração.
Sei-o há tanto tempo.

Não guardo rancor, embora o meu coração se parta...

Vi-te num sonho,
E vi a noite que reina no teu coração,
E vi a serpente que te aperta o coração,
E vi, meu amor, como és miserável.
Não guardo rancor.

Falsa memória


Un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut (1956) de Robert Bresson

«
O outro realizador para quem o campo vazio, e portanto o espaço-fora-de-campo que ele implica, têm uma importàneia capital, é Robert Bresson. Isto é sobretudo sensível em Fugiu um Condenado à Morte e em Pickpocket. O plano do Condenado à Morte em que Fontaine vai matar a sentinela é particularmente flagrante a este respeito. É um plano muito aproximado que nos mostra primeiro Fontaine, a três quartos de costas, encostado a urna parede muito perto do ângulo onde sabemos estar a sentinela. Ganhando coragem, Fontaine avança, sai do campo à direita para aí voltar logo a seguir num movimento contornante, reatravessá-lo e voltar a sair à direita atrás do ângulo da parede. O campo fica então vazio (e extremamente neutro) durante um tempo bastante longo que é o do presumível assassínio (não ouvimos nada), e depois Fontaine regressa de novo (4). (...)

(4) Esta descrição é completamente falsa: de facto Fontaine apenas sai do campo uma única vez. Apercebemo-nos disto quando revimos o filme pouco tempo antes de entregarmos o nosso manuscrito. No entanto decidimos deixar esta passagem assim como exemplo voluntário (restam ainda certamente no texto exemplos involuntários) do fenómeno a que podemos chamar “a falsa lembrança dos filmes”. É um fenómeno que tem profundas relações com a própria natureza da percepção cinematográfica e merecia estudos aprofundados. Queremos simplesmente evocar aqui por um lado o embaraço que pode criar ao analista, mas também a função extremamente positiva que pode ter para o criador. Pois de facto, o plano tal como o descrevemos existe realmente numa curta metragem que realizámos recentemente e em que, pensando “prestar homenagem” a Bresson, “retomámos” este plano tal como dele nos lembrávamos. »

Noel Burch, Praxis du cinéma, Estampa, Lisboa, 1973, pp. 36-7, n. 43-4

Homenagem a Orwell


[ Imagem roubada algures no espaço virtual]

S-21, la machine de mort Khmère rouge



S-21, la machine de mort Khmère rouge (2003) de Rithy Panh
projecção com apresentação de Nuno Lisboa
5ª, dia 13 de Abril, 21h - Monte

«No meu próprio trabalho, eu desconfio da imagem. Pode ser perigosa, não é forte senão quando escuta. Pergunto muitas vezes ao meu operador de câmara o que está a ser dito - se ele não sabe, é porque há um problema. O ritmo, a distância, o enquadramento, dependem da minha escuta. (...) Há certas coisas que não posso filmar. Quando, por exemplo, um guarda entrou numa sala para mostrar como batia nos prisioneiros, ficámos à porta. Tinha a impressão que os ausentes estavam lá e que, se o seguisse com a câmara, caminharia sobre os prisioneiros. Isto não é teórico, não é uma ideia cinematográfica pré-concebida, é qualquer coisa que sinto.» - Rithy Panh

{Destruição}
conversas, sons, projecções, deambulações em Abril no Monte
Rua do Monte Olivete, 30 A (ao Príncipe Real) - Lisboa

Léxico, I: Regra dos 180º

REGRA DOS 180º
Convenção central do sistema de continuidade que estabelece que a câmara tem de permanecer num dos lados do eixo da acção (também chamado de linha dos 180º) – uma linha imaginária atravessando o espaço da cena (frequentemente entre dois actores importantes). Quando a câmara permanece apenas num dos lados desta linha, o plano manterá relações espaciais e direcções de ecrã consistentes. Ou seja, personagens e objectos no lado direito do ecrã permanecem à direita de plano para plano, e as do esquerdo ficarão sempre à esquerda (pelo menos até que se movam e um novo eixo de acção seja estabelecido). Vemos constantemente o mesmo lado dos actores. As linhas de olhar obedecem ao princípio do eixo da acção. Um actor olhando do lado esquerdo do ecrã para o direito não parecerá subitamente, no plano seguinte, estar a olhar da direita para a esquerda. Para além de manter relações espaciais e direcções de movimento e olhar consistentes, a regra dos 180º assegura igualmente que o espaço em cada plano seja imediatamente legível, dado que haverá um fundo mais ou menos consistente e reconhecível de um plano para outro.
trad. de «Film Lexicon» por Peter Donaldson

Figuras da autópsia


Primate (Wiseman) 1974
Figuras da autópsia
conferência com projecção contínua
por André Dias e Nuno Lisboa

5ª, dia 6 de Abril, 18h - Monte

Autópsias: Autópsia geral in vivo do mundo - O grande sacríficio animal - A morte em directo Testemunhos: O lugar vazio - Vítimas e carrascos - Reconstituição e rememoração - Omnipresença da "humanidade" - Extensão política comum Desaparição: As novas imagens e a ausência - Um animal para o espaço

{Destruição}
conversas, sons, projecções, deambulações em Abril no Monte
Rua do Monte Olivete, 30 A (ao Príncipe Real) - Lisboa

Alguns filmes de Abril

Zemlya/A terra
Aleksandr Dovjenko

1930, 87'
Sáb, dia 8, 19h30 - Cinemateca







Ordet/A palavra
Carl Th. Dreyer
1955, 120'
Sáb, dia 8, 21h30 - Cinemateca








Teorema
Pier Paolo Pasolini
1968, 98'
3ª, dia 11, 21h30 / 2ª, dia 24, 19h30 - Cinemateca







Deux
Werner Schroeter

2002, 121'
4ª, dia 19, 19h - Cinemateca







Benilde ou a Virgem-Mãe
Manoel de Oliveira
1974, 110'
5ª, dia 20, 19h30 - Cinemateca







Charulata
Satyajit Ray
1964, 120'

Sáb, dia 29, 19h30 - Cinemateca


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