Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #106 (António Guerreiro)

Sobre uma invenção que nunca se afigurou convincente mas que promete salvar a indústria do livro

«Depois de uma primeira tentativa falhada, há cerca de uma década, o e-book regressou como um novo fenómeno plausível da indústria do livro, capaz até de intervir na sociologia da leitura. Ao contrário de muitos outros dispositivos e instrumentos técnicos, o livro parece insuperável e ninguém sente a necessidade de o aperfeiçoar; já o sucesso do e-book depende da sua eficácia em imitar a forma livro, e não resultou da primeira vez exactamente porque a imitação era muito deficiente. Estranha invenção esta que entra no futuro às arrecuas. A exigência a que o e-book responde parece vir integralmente da indústria do livro.

Trata-se de ganhar mais camadas de leitores, segundo aquele princípio — agora potenciado pelas regras exacerbadas do consumo — que já tinha determinado a entrada em cena do livro de bolso, em 1935: há um mercado potencial enorme a explorar, não do lado dos leitores que procuram o que querem ler, mas do lado dos que comprarão qualquer livro desde que a sua tiragem seja bastante elevada e ele tenha sido comprado por uma multidão. A indústria do livro só cumpre a sua missão de maneira completamente racional, nesta condição: dirigindo-se a um leitor que não procura mas acabará, ainda assim, por encontrar; que não sabe o que quer, mas gostaria, no entanto, de escolher.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 31.7.2010.

Methodological doubts (Birth of electronic space #1)

in “Origines, pionniers, généalogies”, Cinéma & Art Contemporain 3, Paris Summer School, Institut national de l'histoire de l'art, Salle Giorgio Vasari, Paris, 30.7.2010.

Although fully recognizing the methodological primacy of object analysis, I will start here with a somewhat long introduction to the research context in which the specific intuition this paper deals — which regards the “birth of electronic space” in Michael Snow’s Back & Forth and La Région centrale — can make some sense. Instead of doing a descriptive zoom on these films, I suggest we first take a more sinuous path, a panoramic through some theoretical “problems” to which the cinematic “cases” the “birth of electronic space” is concerned with might depend upon, give answer to or at least throw some light. (I’m consciously not using the term “examples” here; for this important conceptual clarification, see Agustin Zarzosa’s wonderful and to be published essay «The Case of the Illustrious Example».)
The fact is that description as a method became more complicated, since its textual form is now usually accompanied by the presentation of still images and even clips of the videos themselves, which could be argued, substitute themselves to the analysis or, in some more unfortunate cases, render it irrelevant. One cannot but wonder what effects this might have on writing – critical and theoretical writing first of all concerned with giving an answer to what captivated the spectator of the film. Description is indeed full of traps and becomes problematic specially if it doesn’t provide along with it a corresponding theoretical gesture that would at least try to account for the significance of its artistic object, its singularity; a theoretical gesture that would then, surprisingly, unburden from the weight of analysis, by relating the works to the outside world and so providing connections for its intelligibility.

[to be continued]

Ao pé da letra #105 (António Guerreiro)

Sobre as falácias da ‘identidade sexual’, a propósito de um poeta que fez filhos por desfastio e ocultação

«O livro de São José Almeida sobre Os Homossexuais no Estado Novo repesca uma velha história sobre a sexualidade de Jorge de Sena e a sua expulsão da Marinha, por via de dois depoimentos, de Eduardo Pitta e de Fernando Dacosta. Deste último, podemos ler esta sentença, extraída da mais elevada doutrina analítica: “Casou. Fazia praticamente um filho por ano, o que é uma atitude muito normal nos homossexuais.” Traduzindo em termos técnicos: cada filho de Jorge de Sena é o resultado de um acto de denegação (uma Verleugnung freudiana). Neste método um pouco selvagem (no sentido em que se fala de “psicanálise selvagem” de tratar da ociosa questão da sexualidade de outrem, ainda que escritor, o pressuposto é o de que o teor de verdade está todo no que na vida de um indivíduo foi exceção (se essa exceção foi um comportamento homossexual, algo de que, no caso de Jorge de Sena, foi sempre apresentado como insegura matéria de especulação) e não no que ele exibiu publicamente como regra.

Nesta perspectiva, que psicologiza sem hesitações e apresenta uma comédia muito apreciada — a comédia da identidade —, a homossexualidade reconduz-se sempre à questão do “quem é ele, verdadeiramente?”, a qual deve ser fixada numa identidade que não tem nada de versátil: uma vez homossexual, homossexual a vida inteira, ainda que por denegação. Estes pressupostos identitários são exactamente simétricos aos da norma heterossexual. Eis a armadilha a que estão presos os classificadores, fiscalizadores da verdade e reivindicadores naturalistas de identidades. A psiquiatria do século XIX falava dos homossexuais como “doentes do instinto sexual”, baseada em métodos de diagnóstico semelhantes aos do discurso que nos assegura que fazer um filho por ano “é uma atitude muito normal nos homossexuais”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 24.7.2010.

A ecologia política (António Guerreiro)

«Numa passagem da sua trilogia Esferas, o filósofo alemão Peter Sloterdijk observa que foi só depois das crises ecológicas que se soube verdadeiramente que o mundo era redondo, porque as consequências das nossas ações acabam sempre por regressar a nós. E dá este exemplo: as aves selvagens do Ártico e da Antártida assimilam as resistências aos antibióticos dos animais domésticos. Em suma: estão completamente globalizadas. Por mais que a ecologia política oficial tente despolitizarr a questão da ecologia, o facto de as crises ecológicas transformarem o mundo, na sua totalidade, em espaço público tem levado a reclamar uma repolitização da ecologia, o que implica inventar a representação política dos humanos com os seus associados não humanos. O sociólogo francês André Gorz (que se suicidou em 2007) foi uma das figuras fundamentais que, desde os anos 70 do século passado, tentaram pensar uma ecologia política. A sua posição, muito embora crítica em relação ao capitalismo e tentando encontrar novas orientações no interior do socialismo, opõe-se à dos ‘naturalistas’, às aspirações nostálgicas a uma sociedade comunitária que caracterizaram os grupos de extrema-esquerda. A convicção de Gorz era a de que havia uma proximidade entre esses grupos que marcaram o nascimento da ecologia política com os integrismos religiosos e os nacionalismos de extrema-direita. Uns e outros faziam da modernidade e dos seus projectos de emancipação um inimigo a abater. A utopia dos ‘verdes’ mais radicais consistia na desindustrialização, reatualizando de forma regressiva o projecto da sociedade comunista. E como, para a realização desta utopia, não havia um sujeito social ou histórico, acreditava-se que o capitalismo nem precisava de ser combatido por uma classe revolucionária, ele cumpriria pelos seus próprios meios um destino de ruína e catástrofe da civilização industrial. Uma ordem natural seria assim restabelecida.

André Gorz cita um fundamentalista ‘verde’, Jürgen Dahl, que já em 1990 escrevia no jornal Die Ziet: “O mundo é vítima da opulência na qual viveu às suas custas, mas desse modo ele também se renova e acabará por encontrar um equilíbrio com um pouco menos de habitantes, de beleza e de riqueza. Uma grande pobreza será a consequência necessária da opulência. Só a pobreza nos poderá salvar.” A natureza da ecologia política de Gorz, pelo contrário, não é a dos naturalistas, consiste na defesa do mundo vivido, de uma cultura do quotidiano. Segundo ele, a reestruturação ecológica da sociedade exige que a racionalidade económica seja subordinada a uma racionalidade ecossocial. O que é incompatível com o paradigma capitalista da maximização do lucro. É isso que o leva a defender a necessidade de uma saída da ‘sociedade do trabalho’ para uma sociedade onde as atividades sem objectivo económico, públicas e privadas, serão preponderantes. A sua ideia era a de que, verificando-se uma diminuição contínua do volume de trabalho disponível (o que leva a um crescimento imparável do número de desempregados), a única maneira de evitar a exclusão seria a redistribuição do trabalho, tornando o salário independente não do trabalho mas da duração do trabalho. Não se tratava, na sua teoria, de instituir um ‘rendimento universal’ que se adquire pelo simples facto da cidadania, mas de garantir a toda a gente um salário inteiro, ainda que trabalhando um número de horas reduzido. A ecologia política de Gorz passava precisamente pelas questões do trabalho e fundava-se num otimismo antropológico que está em contraste com a afirmação de Lévi-Strauss, no fim de Tristes Trópicos: “O mundo começou sem o homem e acabará sem ele.”»

António Guerreiro, «A ecologia política», Expresso-Actual, 17.7.2010.

Ao pé da letra #104 (António Guerreiro)

Sobre uma espécie comum que não conhece outra lei senão a do darwinismo da indústria cultural: o filisteu

«A palavra ‘filisteus’ foi esta semana recuperada por Pedro Mexia para designar “os indivíduos de uma direita dogmaticamente ‘liberal’, aliados a uma esquerda analfabeta”, que não perdem uma oportunidade para atacarem os subsídios às artes e manifestarem a sua ignorância sobre o que é a independência de um artista. Para uma definição do filisteu, devemos ler um texto de Hannah Arendt incluído em Between Past and Future. Ficamos aí a saber que a palavra foi utilizada pela primeira vez como conceito pelo escritor alemão Clemens Brentano para designar uma atitude que, julgando tudo pelo critério pragmático da utilidade, olha com sobranceria a inutilidade da arte. E Hannah Arendt forja a partir daqui a categoria do ‘filisteu cultivado’ — aquele que se apropria da arte e da cultura como um mero capital com o qual adquire uma posição superior na sociedade.

Entre nós, um recente relatório que demonstrava o razoável interesse económico das “indústrias culturais” veio servir de argumento para o investimento e a protecção dessa área. Mesmo utilizado com manha a estratégia, o argumento segue sem hesitações a lógica do filisteu, daquele que faz da cultura e da arte uma moeda de troca. Trata-se de um argumento perigoso, porque não opõe qualquer resistência ao mecanismo bem oleado das “indústrias culturais” (a que está longe de se reduzir toda a cultura e toda a arte), as quais, na verdade, não precisam de subsídios, mas engendram e promovem, muito mais do que estes, a dependência dos artistas. A situação grotesca é que esta forma de dependência é tida como um ‘habitat natural’, e já se tornou comum pensar que, para além dela, só existe uma reserva exótica que os arautos do darwinismo cultural acham artificial e custosamente protegida e só sobrevive como uma aberração a que as leis da ‘natureza’ já teriam posto fim.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 17.7.2010.

Ao pé da letra #103 (António Guerreiro)

Sobre Cristiano Ronaldo como fenómeno sociológico total e pai poderoso que não partilha os seus poderes

«Se o conceito de mitologia, formulado por Barthes, fosse ainda válido para analisar os fenómenos da sociedade mediática e de consumo, o dinheiro de Cristiano Ronaldo poderia ser visto como um objeto mítico do mesmo tipo que o cérebro de Einstein. Mas o conceito já perdeu grande parte do seu poder e surge hoje com o charme de um objeto do passado. A mitologia do dinheiro do atleta e a do seu corpo reificado dizem muito pouco se não percebermos que Cristiano Ronaldo se tornou um fenómeno sociológico total. E a história da sua paternidade fornece matéria importante a esta totalidade. Enquanto pai, Cristiano Ronaldo cumpre uma etapa de redenção do grande fornicador improdutivo. Acabou o potlach, como diriam os antropólogos, foi restabelecida a ordem da economia produtiva. Qualquer regime familiar ou contrato conjugal só poderia ser uma ameaça potencial ao poder que incorporou (no sentido literal) e que não pode ser partilhado: infidelidades, divórcios, divisões de bens e de tutelas seriam fatais.

Por isso, teve de ser pai em regime autárquico, eclipsando a instância da família e reduzindo a maternidade a trabalho anónimo e operário. Assim, salvaguarda a sua segurança (empreendimento que não admite quebras de vigilância), ao mesmo tempo que não cede poderes a quem, por via da maternidade, poria o seu território em perigo. Mas, enquanto fenómeno sociológico total, ele é também uma figuração do ideal contemporâneo da procriação por encomenda, do filho engendrado na mais completa racionalidade. Por outro lado, a sua condição de pai autárquico não deixa que o seu poder se dilua e se relativize na procriação. E o filho chamar-se-á, obviamente, Cristiano Ronaldo. A história — todos pressentimos — está suspensa de uma intervenção do destino. Cristiano Ronaldo tem os ingredientes do herói da tragédia grega.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 10.7.2010.

Filmes ‘menores’ em Julho


Shirin
Abbas Kiarostami

2008, 99
14h, 16h30, 19h, (00h)
UCI Cinemas 6
El Corte Inglés, Lisboa


Va savoir
Jacques Rivette

2001, 90’
In memoriam William Lubtchansky
2ª, dia 5, 22h
Cinemateca*, Lisboa


Tempos difíceis
João Botelho
1988, 95’
Eram os Anos 80
(prog. Antonio Rodrigues)

3ª, dia 6, 19h30 – Cinemateca


Notorious
Alfred Hitchcock
1946, 99’
6ª, dia 9, 15h30 – Cinemateca


Número deux
Jean-Luc Godard
1975, 90’
In memoriam William Lubtchansky
2ª, dia 12, 22h – Cinemateca


Von heute auf morgen
Jean-Marie Straub e
Danièle Huillet
1996, 122’
In memoriam William Lubtchansky
4ª, dia 21, 22h – Cinemateca


The quiet man
John Ford
1952, 129’
2ª, dia 26, 19h – Cinemateca


[apenas filmes vistos, sem repetições, em suportes originais]

Ao pé da letra #102 (António Guerreiro)

Sobre um cronista tão obcecado com a estupidez alheia que decidiu colocar-se sempre do lado contrário

«Marx não estava certamente a pensar nas crónicas de Vasco Pulido Valente quando disse que “a estupidez é o direito consuetudinário de uma opinião”, mas as crónicas do historiador pensam com bastante frequência que devem estar à altura da definição marxiana. O caso é estranho, dado que Vasco Pulido Valente atravessou o nosso tempo como uma elevada encarnação da inteligência. Quem leu uma célebre conferência de Musil sabe, no entanto, que “cada inteligência tem a sua estupidez”. O que explica o mistério Pulido Valente, que nas suas crónicas é uma versão exasperada do Mr. Teste, a personagem de Valéry que dizia: “La bêtise n'est pas mon fort.” No caso do nosso cronista, podemos mesmo dizer que a bêtise é a sua fobia, o que lhe ditou um método seguro: fugir sempre em sentido contrário. Contrário em relação a quem? Em relação ao inimigo eleito. Mas primeiro elege-se o inimigo circunstancial e depois foge-se. De outro modo, o cronista não saberia em que sentido fugir.

Por exemplo: se num contexto preciso começa a impor-se publicamente a estúpida ideia de que o “factor Nobel” serve para medir a grandeza de um escritor, Vasco Pulido Valente, habitado pelo demónio da simetria, dirá: “O Prémio Nobel não garante a importância literária de ninguém. Basta ver a longa lista de mediocridades que o receberam.” Demasiado generoso seria limitar-lhe o parentesco ao Mr. Teste, se ignorássemos outro ramo da família ainda mais ilustre: o genial par constituído por Bouvard e Pécuchet. As crónicas de Vasco Pulido Valente são a manifestação extrema daquilo a que chamamos ‘estilo’; quando este se confunde com uma forma vazia, limitam-se a erguer a efígie do nome próprio e obstinam-se em não dizer senão isto: “Eu sou o Vasco Pulido Valente.” E assim criou uma multidão de descendentes.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 3.7.2010.

Ao pé da letra #101 (António Guerreiro)

«Qual é a medida justa e adequada para o funeral de um escritor que obteve a máxima consagração pública e cujos livros entraram na categoria de património literário reconhecido pelos poderes públicos e pelas instâncias que determinam o cânone. Um funeral à Victor Hugo ou um funeral à Baudelaire? A questão colocou-se agora, entre nós, tendo como motivo o funeral de José Saramago. O que é que nos leva a esta interrogação, por mais que não esteja em causa o alto valor atribuído ao escritor? Antes de mais, o modo como representamos um escritor, o seu papel e o seu estatuto torna-o inimigo de um figura com a qual ele pode ser naquele momento de luto confundido: com a figura do “chargé d'affaires” do espírito da nação. Ou seja, tememos que ele seja anexado e transformado numa instituição.

Em segundo lugar, as mais altas honrarias prestadas a um escritor, mesmo que determinadas pelo momento de luto, amplificam o mito do autor, que é quase sempre inimigo da obra: quanto maior é a dimensão do autor, da pessoa, mais riscos existem de a leitura da sua obra ser perturbada por condições exteriores a ela e que nada têm a ver com fatores de ordem literária. Em terceiro lugar, porque a literatura, mesmo que não seja contestação de mais nada, tem de ser contestação de si mesma enquanto poder – o seu maior pecado é a autocomplacência (e é essa autocomplacência que receamos ver instalada nas grandes honrarias). Em quarto lugar, porque atribuímos à literatura um irredutível núcleo antissocial que surge de repente suspenso.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 26.6.2010.


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