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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #105 (António Guerreiro)

Sobre as falácias da ‘identidade sexual’, a propósito de um poeta que fez filhos por desfastio e ocultação

«O livro de São José Almeida sobre Os Homossexuais no Estado Novo repesca uma velha história sobre a sexualidade de Jorge de Sena e a sua expulsão da Marinha, por via de dois depoimentos, de Eduardo Pitta e de Fernando Dacosta. Deste último, podemos ler esta sentença, extraída da mais elevada doutrina analítica: “Casou. Fazia praticamente um filho por ano, o que é uma atitude muito normal nos homossexuais.” Traduzindo em termos técnicos: cada filho de Jorge de Sena é o resultado de um acto de denegação (uma Verleugnung freudiana). Neste método um pouco selvagem (no sentido em que se fala de “psicanálise selvagem” de tratar da ociosa questão da sexualidade de outrem, ainda que escritor, o pressuposto é o de que o teor de verdade está todo no que na vida de um indivíduo foi exceção (se essa exceção foi um comportamento homossexual, algo de que, no caso de Jorge de Sena, foi sempre apresentado como insegura matéria de especulação) e não no que ele exibiu publicamente como regra.

Nesta perspectiva, que psicologiza sem hesitações e apresenta uma comédia muito apreciada — a comédia da identidade —, a homossexualidade reconduz-se sempre à questão do “quem é ele, verdadeiramente?”, a qual deve ser fixada numa identidade que não tem nada de versátil: uma vez homossexual, homossexual a vida inteira, ainda que por denegação. Estes pressupostos identitários são exactamente simétricos aos da norma heterossexual. Eis a armadilha a que estão presos os classificadores, fiscalizadores da verdade e reivindicadores naturalistas de identidades. A psiquiatria do século XIX falava dos homossexuais como “doentes do instinto sexual”, baseada em métodos de diagnóstico semelhantes aos do discurso que nos assegura que fazer um filho por ano “é uma atitude muito normal nos homossexuais”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 24.7.2010.

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