Ao pé da letra #102 (António Guerreiro)
Sobre um cronista tão obcecado com a estupidez alheia que decidiu colocar-se sempre do lado contrário | |
«Marx não estava certamente a pensar nas crónicas de Vasco Pulido Valente quando disse que “a estupidez é o direito consuetudinário de uma opinião”, mas as crónicas do historiador pensam com bastante frequência que devem estar à altura da definição marxiana. O caso é estranho, dado que Vasco Pulido Valente atravessou o nosso tempo como uma elevada encarnação da inteligência. Quem leu uma célebre conferência de Musil sabe, no entanto, que “cada inteligência tem a sua estupidez”. O que explica o mistério Pulido Valente, que nas suas crónicas é uma versão exasperada do Mr. Teste, a personagem de Valéry que dizia: “La bêtise n'est pas mon fort.” No caso do nosso cronista, podemos mesmo dizer que a bêtise é a sua fobia, o que lhe ditou um método seguro: fugir sempre em sentido contrário. Contrário em relação a quem? Em relação ao inimigo eleito. Mas primeiro elege-se o inimigo circunstancial e depois foge-se. De outro modo, o cronista não saberia em que sentido fugir. | Por exemplo: se num contexto preciso começa a impor-se publicamente a estúpida ideia de que o “factor Nobel” serve para medir a grandeza de um escritor, Vasco Pulido Valente, habitado pelo demónio da simetria, dirá: “O Prémio Nobel não garante a importância literária de ninguém. Basta ver a longa lista de mediocridades que o receberam.” Demasiado generoso seria limitar-lhe o parentesco ao Mr. Teste, se ignorássemos outro ramo da família ainda mais ilustre: o genial par constituído por Bouvard e Pécuchet. As crónicas de Vasco Pulido Valente são a manifestação extrema daquilo a que chamamos ‘estilo’; quando este se confunde com uma forma vazia, limitam-se a erguer a efígie do nome próprio e obstinam-se em não dizer senão isto: “Eu sou o Vasco Pulido Valente.” E assim criou uma multidão de descendentes.» António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 3.7.2010. |
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