Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Raros filmes de Fevereiro


Détruire, dit-elle
Marguerite Duras

1969, 90’
Marguerite Duras - A cor da palavra
2ª, dia 1, 19h
5ª, dia 4, 22h
Cinemateca*, Lisboa


Saikaku ichidai onna /
A vida de O'Haru
Kenji Mizoguchi

1952, 140’
Inéditos: Louis Skorecki, os filmes e
uma carta branca
3ª, dia 2, 22h – Cinemateca


Once upon a time in America
Sergio Leone
1984, 220’
Grandes secundários
4ª, dia 10, 15h – Cinemateca


Baxter, Vera Baxter
Marguerite Duras
1976, 90’
Marguerite Duras - A cor da palavra
4ª, dia 10, 19h
6ª, dia 12, 19h30 – Cinemateca



Son nom de Venise dans
Calcutta déserte

Marguerite Duras
1977, 118’
Marguerite Duras - A cor da palavra
4ª, dia 17, 19h– Cinemateca
5ª, dia 18, 22h (com India Song)



Goodfellas
Martin Scorsese
1990, 146’
Grandes secundários
4ª, dia 24, 15h30 – Cinemateca

Sobibor, 14 octobre 1943,
16 heures
Claude Lanzmann
2001, 95’
Inéditos
4ª, dia 24, 22h – Cinemateca
cf. «Os gansos de Sobibor*»


[apenas filmes vistos, sem repetições, em suportes originais]

Ao pé da letra #80 (António Guerreiro)
«Sobre um “povo” como espécie em vias de extinção
Comentando os últimos dados da taxa de fertilidade, João César da Neves proclamava, esta semana, no DN: “Somos um povo em vias de extinção.” A que entidade se refere o cronista? Que “povo” é este que falta às regras da procriação e se extingue sem glória? Não é o povo como sujeito político e soberano. Não sendo este corpo político unitário (que, de resto, não se reproduz nem se extingue, pode é ser aniquilado no seu direito), também não é um outra realidade que a palavra “povo” designa: a arraia-miúda, o menu peuple, a classe social (que é, dizem os sociólogos, cada vez mais numerosa).

E também não é a entidade com a qual identificamos uma forma de enraizamento cultural. O “povo” de J.C.N. é um tipo singular (“em vias de extinção”, como dizemos das espécies). E tal coisa existe? Se entendermos que sim, temos de considerar que alguém que se naturalize português continua a não fazer parte da espécie; daí a exortação de J.C.N. à procriação. A espécie só existe como construção, figuração mítica poderosa que, na melhor das hipóteses, é Kitsch e, na pior, serve fins sinistros. Quem não ouviu falar do Volk alemão?»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 30.1.2010.

Contra a cinefilia cinéfila!

Ao pé da letra #79 (António Guerreiro) 
«Sobre a alta velocidade e a pequena burguesia 
Quando um ministro diz que, graças ao TGV, Lisboa pode tornar-se a praia de Madrid, as suas palavras têm o poder de nos fazer lembrar três figuras que um filósofo italiano, comentando a teoria do carisma de Max Weber, eleva a categorias: o demagogo, o imbecil instintivo e o palhaço carismático. Mas mais importante do que projectar tais palavras em quaisquer categorias é percebermos que a política pertence hoje inteiramente àqueles que se convencem daquilo que dizem. É aí que reside todo o segredo do discurso político. 

Mas as palavras deste ministro ilustram também outra coisa: que, no horizonte dos governantes, o único modelo de classe que existe (ou em que todos se devem transformar) é precisamente uma classe que não chega a sê-lo: a pequena burguesia universal, cujas bases materiais de existência assentam num modelo de vida que se manifesta em duas dimensões: o consumo e o tempo livre. Lisboa como praia de Madrid, Caparica como praia de Lisboa: trata-se sempre do mesmo tropismo – marítimo e litoral – que define o movimento de alta velocidade de uma massa que nunca gozará do luxo da lentidão.» 
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 23.1.2010.

Ao pé da letra #78 (António Guerreiro)
«Sobre as citações que têm destaque nos jornais
O Dictionnaire des idées reçues, de Flaubert, tem hoje um equivalente nas frases do dia e da semana que quase todos os jornais seleccionam. Tais secções são um verdadeiro arquivo da bêtise, da estupidez, que Flaubert definiu como algo sempre monumental. Logo, merecedor de ser citado. O que encontramos invariavelmente nessas secções são frases que têm o esplendor dos lugares-comuns e o brilho especial de tudo o que é ostensivamente banal. Não é que não possam ser oportunas (para já não falar do parentesco entre a estupidez e a inteligência, que Musil analisou), mas trazem sempre consigo a dureza assertiva e a convicção resistente a que Flaubert se referiu quando disse que a estupidez consiste no desejo de concluir.

Nada onde se vislumbre a complexidade de um pensamento ou o trabalho de um conceito cabe nessas rubricas de citações, isto é, de frases (do dia ou da semana). É que a unidade linguística própria da estupidez é a frase e a sua modalidade essencial é a da repetição vazia que se aloja na linguagem. Marx percebeu isso muito bem quando disse que a estupidez “é o direito consuetudinário de uma opinião. Na língua, a estupidez reside na frase”.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 16.1.2010.

O grande salto em frente? (Nuno Sena)

«Em qualquer balanço da primeira década do século XXI na área de cinema o primeiro elemento que importa destacar é a da sua profunda reconversão tecnológica, iniciada ainda durante os anos 90 mas que só agora começa a definir de forma mais clara novos modos de produzir, de distribuir e de ver cinema. Embora mais lenta do que inicialmente se previra, a passagem para um paradigma inteiramente digital está hoje praticamente consumada nos vários sectores geradores de imagens em movimento destinadas ao consumo público e/ou privado (ainda que no cinema ela enfrente ainda algumas bolsas de resistência).
Deixemos de lado por agora as consequências dessa passagem na própria produção e na natureza dos filmes para nos concentrarmos na maneira como esta enorme mudança tecnológica e industrial – que se encontra paralelo na passagem do cinema mudo ao sonoro no final dos anos 20 do século passado – está a transformar os nossos hábitos enquanto espectadores. Nas salas de cinema esta mudança é tão avassaladora quanto discreta, já que o seu impacto não é, literalmente, visível, ou seja, não é percebido pelo comum dos espectadores enquanto um dado importante para a fruição do espectáculo cinematográfico. A irreversibilidade do sucesso do digital mede-se pelo facto de em si próprio já não ser assunto. Se a projecção em película se manteve inalterada, naquilo que lhe é essencial, durante mais de cem anos de história do cinema foi porque definiu um elevado standard de qualidade técnica que só recentemente foi possível igualar através de outras tecnologia, o digital. Este trouxe como vantagens adicionais potenciar economias de escalas e ser inteiramente adaptável às várias plataformas em que se joga, cada vez mais, o consumo do cinema.
 
A multiplicação da presença do cinema entre nós através de mais ou menos novos ecrãs (televisor, computador, telemóvel) – se não em detrimento pelo menos em concorrência crescente com o cinema visto em sala – está a tornar o cinema cada vez mais numa questão privada, em contradição com a sua mais forte tradição. Retomando uma velha ideia de Godard, é como se o cinematógrafo dos Lumière, que ao ganhar a batalha contra o cinemascópio de Edison definiu o próprio sentido da evolução do cinema como arte e espectáculo popular assente na ideia de uma comunidade de espectadores, tivesse afinal acabado por perder a guerra. As implicações desta perda de importância da dimensão pública e colectiva do cinema enquanto ritual partilhado e partilhável face à sua versão doméstica e individualizada no imaginário de realizadores e espectadores não são ainda inteligíveis e inequívocas, mas é certo que não deixarão de prolongar algumas das linhas de força que marcaram a produção cinematográfica na entrada do presente século. [...]»

Nuno Sena, «E, contudo, ele move-se», Jornal de Letras, 30.12.2009, p. 16.

Ao pé da letra #77 (António Guerreiro)
«Sobre a ordem e o poder da palavra “casamento”
O que está em causa no debate em curso sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo não são os comportamentos nem os factos mas algo mais complexo: o poder das palavras e o edifício simbólico que elas constroem. E isso está bem patente no projecto de lei do PSD, que opta por chamar “união civil registada” e “parceiros” ao que outros chamam “casamento” e “cônjuges”. E isto porquê? Porque uma parte da população (sobretudo, a mais católica) se sente ferida com a linguagem. Se as regras da mobilização militar nos Estados Unidos proibiam, até há pouco tempo, a declaração reflexiva “Eu sou homossexual” era porque isso podia ser interpretado como uma tentativa de sedução ou como uma agressão.

Aceder assim a tão poderoso e antigo edifício simbólico (o casamento) pode parecer uma revolução, mas é uma revolução conservadora. Todos nos devemos regozijar com a resolução de problemas práticos e legais. Mas é preciso não esquecer que integrar a ordem do discurso a que pertencem as representações sociais do casamento significa uma submissão à linguagem que sempre procedeu pela violência e pelo poder discursivo de impor uma definição de homossexual.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 9.1.2010.

Raros filmes de Janeiro


The wrong man
Alfred Hitchcock

1957, 100’
5ª, dia 7, 19h30
Cinemateca*, Lisboa

Sullivan's travels
Preston Sturges

1941, 91’
6ª, dia 8, 19h30 – Cinemateca

The Wizard of Oz
Victor Fleming

1939, 95’
Sáb, dia 9, 15h – Cinemateca Júnior
Salão Foz, Lisboa


Solaris
Andrei Tarkovski
1972, 164’
História permanente do cinema
(prog. Antonio Rodrigues)

Sáb, dia 9, 21h30 – Cinemateca


The unknown
Tod Browning
1927, 110’
História permanente do cinema
Sáb, dia 16, 19h30 –
Cinemateca


Ma Femme chamada Bicho
José Álvaro Morais
1976, 79’
2ª, dia 18, 22h – Cinemateca

The getaway
Sam Peckinpah
1972, 122’
4ª, dia 20, 22h – Cinemateca

Cheyenne autumn
John Ford
1964, 140’
Grandes secundários
6ª, dia 22, 15h30 – Cinemateca

Chelovek s kino-apparatom /
O homem da câmara de filmar
Dziga Vertov
1929, 80’
História permanente do cinema
Sáb, dia 23, 19h30 –
Cinemateca


Rio Bravo
Howard Hawks
1959, 141’
Inéditos: Louis Skorecki, os filmes
e uma carta branca
(prog. Luís Miguel Oliveira)
4ª, dia 27, 19h – Cinemateca


The gold rush
Charles Chaplin
1925, 95’
Sáb, dia 30, 15h
Cinemateca Júnior


Falsche Bewegung /
Movimento em falso
Wim Wenders
1974, 103’
História permanente do cinema
Sáb, dia 30, 21h30 – Cinemateca


[apenas filmes vistos, sem repetições, em suportes originais]

Ao pé da letra #76 (António Guerreiro)
«Sobre os editores como produtores literários
As saídas dos editores de uma empresa para outra são hoje acompanhadas com a mesma atenção que a transferência dos jogadores ou as deslocações das celebridades televisivas. A grande transferência da temporada foi a de Maria do Rosário Pedreira da Quidnovi para a Leya. Segundo disseram os jornais, esta editora detém um capital importante na bolsa de valores da edição: a capacidade de “descobrir”, “inventar”, “produzir” novos autores portugueses (e os nomes dados como exemplos eram estes: José Luís Peixoto, valter hugo mãe e João Tordo).

Ficámos assim a saber, se por acaso não tínhamos ainda percebido a evidência, que a literatura – sobretudo, a ficção – é hoje uma produção editorial que faz dos autores meras criaturas de desígnios e génios alheios. Em tempos, um grande editor, com uma intervenção autoral, era aquele capaz de fazer um catálogo que, em si mesmo, constituía um programa literário. Hoje, um grande editor é um produtor e alguém que arranja escritores e livros à la carte. O triunfo desta lógica implacável ditou o fim da autonomia do campo literário, tal como o conhecemos desde a segunda metade do século XIX.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 24.12.2009.


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