Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #197 (António Guerreiro): A política da arte

Sem recorrer a mediações protetoras de uma política do gosto, a Secretaria de Estado da Cultura usou este ano a prerrogativa de escolher o artista – Joana Vasconcelos – que vai representar Portugal na Bienal de Veneza. A decisão é talvez quase inédita na política cultural de um país democrático e apresenta uma preocupante conformidade com a tatuagem do “Governo de Portugal” com que ficam marcadas as obras e acontecimentos culturais subsidiados pelo Estado. É certo que a arte não tem aquela dimensão de “obra de arte total” que tem o futebol. E, por isso, já não se presta a investimentos políticos e ideológicos tão rentáveis como o espetáculo futebolístico, que até permite a reconstituição da organicidade de um povo em união mística no altar da exaltação identitária e da autorrepresentação. Mas a arte – “ah, a arte!”, escrevia Celan –, mesmo na sua condição atual demasiado profana e destituída de ilusões, é uma tentação para o poder político, que não está propriamente interessado em politizar a arte, mas em usá-la como instrumento da figuração – como se diz de alguém que quer fazer boa figura – do político.  

É um problema estético-político que conhecemos, na sua forma extrema, nos regimes totalitários do século XX. Não se trata de totalitarismo (seria ridículo designar com vocabulário tão enfático uma coisa tão pindérica) nem o “Governo de Portugal” procede com uma vontade artística digna das mais sinistras experiências de estetização. Mas não disfarça os impulsos diretivos e a vontade de ganhar lustro através de meios muito pouco liberais. Mais uma vez, há aqui uma dimensão de estupidez (a famigerada bêtise), algo que se mostra imediatamente como sendo estúpido, porque os governantes e secretários que escolhem os artistas são os mesmos que, contraditoriamente, não se cansam de proclamar que a arte deve ser inocente de uma política.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 23.6.2012.

Ao pé da letra #196 (António Guerreiro): A Escola como um romance

Pelo menos três discursos piedosos dominaram a escola, nas últimas décadas, construindo em torno dela três romances muito preocupados com a verosimilhança: o romance pedagógico (em que o adjetivo ‘pedagógico’ quase passou a corresponder ao substantivo ‘ensino’, e em que uma corporação passou a deter a ciência do ensino), o romance tecnológico (que tem como personagens principais a informática, o audiovisual e todas as mutações que vão no sentido de uma civilização da imagem a que a instituição escolar tem de se adaptar) e o romance sociológico (a escola aberta às massas que tem de abandonar a referência aos saberes e às exigências das elites). Agora, está em curso uma nova construção romanesca com um argumento clássico, onde podemos descortinar uma velha oposição entre instrução e educação. A escola que tem como fim instruir é dotada de uma tarefa perfeitamente definível e racional, exigindo apenas um acordo sobre os critérios e os conteúdos.  

A escola que visa a educação tem no fundo uma tarefa infinita e indeterminada porque a educação é uma noção ideal: é o processo pelo qual o sujeito se realiza inteiramente, atingindo a perfeição em todos os domínios importantes. Do ponto de vista do ideal da educação, nenhuma exclusão é legítima e nenhuma insuficiência deve ser tolerada. Um verdadeiro educador deve visar a formação de um homem total e a sua tarefa é mais uma missão. Ora, entre o pragmatismo da instrução e a utopia da educação não se tem conseguido encontrar um lugar habitável e eficaz precisamente por causa das construções romanescas edificantes em torno da escola, a mais poderosa das quais é de cariz nostálgico: “A escola no meu tempo é que era boa”. Tão boa como a comida da mãe, as brincadeiras de infância e tudo o resto que entra num belo romance das origens, de uso e abuso universal.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 16.6.2012.

Ao pé da letra #195 (António Guerreiro): O governo e a coisa artística

Tendo desaparecido o Ministério da Cultura, o logótipo que aparece agora incrustado nas obras e atividades artísticas e culturais apoiadas pelo Estado é uma larga e grossa inscrição do “Governo de Portugal”, ladeada pela bandeira portuguesa. A ‘marca’ grita e ofende: a subtileza é nula, a vontade de aclamação do poder é muita, o modo de tratar a arte e a cultura é de filisteus. Ela está próxima da tatuagem que a lei escreve no corpo dos prisioneiros de uma colónia penal, e é certamente com muita reserva e pudor que muitos artistas encaram essa espécie de ferida que lhes é infligida. Mas há outra questão essencial – e não é de agora – que deve ser colocada. Porque é que a máquina governamental faz tanta questão de se apoderar daquilo que pertence à esfera do simbólico (a arte, a cultura), e negligencia, nos atos litúrgicos do poder, o que pertence à esfera pragmática? Na verdade, os autocarros e os comboios não circulam com placas a dizer “Governo de Portugal”: tal inscrição também não aparece na televisão pública, na ficha técnica de cada programa; e os bancos que receberam a intervenção do Estado não colocam uma bandeira portuguesa nos balcões ao lado das palavras “Governo de Portugal”.  

Para responder a esta pergunta temos primeiro de perceber que a glória que o poder político necessita (Giorgio Agamben fez a arqueologia dos dispositivos gloriosos da governamentalidade) não é jamais proporcionada pelos atos e pela obras da sociedade produtiva, da sociedade homogénea, mas por aquilo que se subtrai à utilidade e pertence, portanto, à esfera do heterogéneo. Um governo pode providenciar, com grande mérito, o bem-estar de uma nação; mas para se glorificar, para obter a aclamação gloriosa, ele não pode prescindir do heterogéneo e do inútil, em suma, do que pertence ao plano do sagrado: a arte, a cultura, a arquitetura.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 9.6.2012.

O fim da sociedade de trabalho (António Guerreiro)


Ao pé da letra #194 (António Guerreiro): Política e estultícia

Ao excesso de análise e comentário político corresponde a falta de uma etologia dos políticos. Só um observador munido com um olha de etólogo, mesmo desprovido de sofisticados instrumentos científicos, consegue identificar comportamentos e temperamentos que o meio político atrai e estimula. Um desses temperamentos que definem uma tipologia muito comum no meio político é uma forma de estupidez específica, não exatamente igual à estupidez que está por todo o lado (e a pretensão de denunciá-la não escapa à regra). Se é fácil perceber que a estupidez está tão bem representada nos ambientes políticos (que a forte exposição pública potencializa e evidencia), devemo-nos no entanto abster de considerar que tais representantes também são estúpidos na sua vida ‘civil’. A estupidez é aqui uma figura, uma Gestalt, a que muitos políticos dão forma.  
Como é que se define o tipo político do estúpido, que nos é tão familiar? Ele identifica-se, antes de mais, com a noção antiga de estultícia, a que os estoicos deram tanta importância. O político estulto tem uma eloquência que só conhece duas características, aliás complementares: a vacuidade e o espírito despótico. Neste sentido, ele é o legítimo herdeiro do rei idiota de Lacan. Este tipo de estupidez define-se também pelo entusiasmo, o que lhe confere o ar feliz de quem vive à superfície das coisas e segue com uma força irreprimível, como se fosse movido por mecanismos repetitivos ou induzido a parecer mais estúpido do que é. Certas formas de estupidez fazem rir, mas na política a estupidez é completamente alheia ao riso e ao espírito comediante. Ela está do lado da obstinação, do ter sempre razão. Barthes dizia que a estupidez é recalcitrante e chamava-lhe a Coisa. E contra a Coisa não há nada a fazer, porque é dura e resistente como o granito, “mesmo os deuses não podem combatê-la”, dizia Schiller.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 2.6.2012.


Arquivo / Archive