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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #195 (António Guerreiro): O governo e a coisa artística

Tendo desaparecido o Ministério da Cultura, o logótipo que aparece agora incrustado nas obras e atividades artísticas e culturais apoiadas pelo Estado é uma larga e grossa inscrição do “Governo de Portugal”, ladeada pela bandeira portuguesa. A ‘marca’ grita e ofende: a subtileza é nula, a vontade de aclamação do poder é muita, o modo de tratar a arte e a cultura é de filisteus. Ela está próxima da tatuagem que a lei escreve no corpo dos prisioneiros de uma colónia penal, e é certamente com muita reserva e pudor que muitos artistas encaram essa espécie de ferida que lhes é infligida. Mas há outra questão essencial – e não é de agora – que deve ser colocada. Porque é que a máquina governamental faz tanta questão de se apoderar daquilo que pertence à esfera do simbólico (a arte, a cultura), e negligencia, nos atos litúrgicos do poder, o que pertence à esfera pragmática? Na verdade, os autocarros e os comboios não circulam com placas a dizer “Governo de Portugal”: tal inscrição também não aparece na televisão pública, na ficha técnica de cada programa; e os bancos que receberam a intervenção do Estado não colocam uma bandeira portuguesa nos balcões ao lado das palavras “Governo de Portugal”.  

Para responder a esta pergunta temos primeiro de perceber que a glória que o poder político necessita (Giorgio Agamben fez a arqueologia dos dispositivos gloriosos da governamentalidade) não é jamais proporcionada pelos atos e pela obras da sociedade produtiva, da sociedade homogénea, mas por aquilo que se subtrai à utilidade e pertence, portanto, à esfera do heterogéneo. Um governo pode providenciar, com grande mérito, o bem-estar de uma nação; mas para se glorificar, para obter a aclamação gloriosa, ele não pode prescindir do heterogéneo e do inútil, em suma, do que pertence ao plano do sagrado: a arte, a cultura, a arquitetura.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 9.6.2012.

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