Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Debaixo da terra, apenas sobre ela deitado

Retém a memória privilegiadamente emoções fortes? Alguém com perturbações graves de memória pode ser obrigado a dispensar os filmes. Destes guarda quase exclusivamente as cenas violentas, que não conseguirá depois distinguir da sua própria vida, devido à sua condição particularmente confusa (Without memory, Koreeda). No entanto, existem filmes tão plenos de saúde, feitos para todos os homens, mesmo os tão privados dela, que até amnésicos severos os podem ver.



Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer ou
Peut-être q'un jour Rome se permettra de choisir à son tour

de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (1969)

in memoriam Danièle Huillet


De há oito anos a esta parte, a memória por uma vez não me atraiçoou. As sensações mais fortes que retive de Othon – nome da tragédia de Corneille pelo qual é mais conhecido o filme Les yeux ne veulent pas... – diziam respeito a raccords de som brutais. Coisa bizarra, que o mais violento de um filme sejam os choques sonoros sofridos nas mudanças de plano, que em Straub-Huillet são sempre cortes na imagem e no som. Foi principalmente isso que perdurou em trabalho na minha memória, com a sua máxima força, nesta cena que ouvimos.
A personagem de Othon e um seu parceiro de intriga afastam-se na gravilha, com o som urbano da Roma contemporânea (de 1969) em fundo. Corte para outra cena junto a uma fonte, plano de um diálogo entre Plautine e Othon (primeira imagem). Plautine fala, Othon fala, Plautine volta a falar, Othon interrompe-a, Plautine continua a falar, Othon discorre longamente. Quase interrompido, quando acaba de falar é bruscamente dado o corte para outro plano (segunda imagem), ligeiramente subido e apenas com Plautine no quadro, que fala. Mas quando Othon responde, a sua voz tem agora um timbre imensamente grave, comparativamente, como se viesse debaixo da terra, ele que está apenas sobre ela deitado. Que aquele corte ocorra imediatamente quando Othon acaba a sua fala, dilui a percepção que teríamos da alteração da perspectiva sonora. Noutras cenas deste filme, à direcção da câmara corresponde absolutamente o som que ouvimos, como se este fosse lido na paisagem. Nada disto se pode confundir com um qualquer naturalismo da representação, pois, mesmo que tenhamos este efeito de “leitura”, a nossa audição não é assim enquadrada pela visão. E não são apenas as escalas sonoras que são “corrigidas”, dada uma proximidade diferenciada das personagens à câmara tomada como referência. São as próprias escalas sonoras que são tornadas evidentes. É o próprio cinema que se dá como sensação. Ainda ouvimos o travelling sonoro para trás, reenquadrando de novo Othon no quadro, que se encontra agora de pé, num dos inúmeros movimentos de câmara extremamente extravagantes, travellings para a frente e para trás que quase parecem “zoomadas” de vídeo.
Othon é o filme de acção mais rápido do mundo. (Não estou a brincar). É mesmo de uma velocidade lancinante. Nem a isto obsta que se trate de acção iminentemente oral. Trata-se de uma velocidade, um lançamento, um ritmo, que nos toma e que perdura até ao fim da quase hora e meia que dura. Perturba e desorienta como se víssemos (precisamente, não vemos) milhares de paisagens sociais, históricas, artísticas, naturais, desfilar perante nós. Evidência do massacre.
Talvez o aspecto principal que induz este brutal lançamento seja o da rapidez das falas. Quando Jean-Marie Straub e Danièle Huillet estiveram em Lisboa, na Cinemateca em 1998, a apresentar alguns dos seus filmes, perguntei-lhes, no final de uma sessão, porque falavam as personagens deste filme tão rápido. Irritado, Straub precisou: «Pas tous!». Ou seja, nem todos os personagens falam rápido em Othon. Depois falou um pouco em torno da sua impressão de que as pessoas que falam rápido têm algo a esconder. Ora, revendo oito anos depois o filme, parece-me evidente que todas as personagens falam rápido. Mas umas falam verdadeiramente, insuportavelmente rápido (Othon). Essas são as vencedoras.
Estas impressões levam-me a pensar (a intuir apenas, porque é algo que não consigo elaboradamente explicar), que o cinema de Straub-Huillet seria quase como a inauguração de uma nova ciência. Uma ciência da pobre ordem cinematográfica, porventura sem posteridade, de uma imanência material. Porque a definição deste cinema não remete, à primeira e apesar das aparências, para nenhum problema exterior, no sentido em que as sensações que constrói são, antes de tudo e apenas, cinematográficas. Que apesar disto, a sua fonte e também o seu apelo futuro sejam radical e integralmente políticos é o que urge perceber.

(ler também «as vozes»)

A ética é uma questão de travellings

Nuit et brouillard (1955) de Alain Resnais (excerto)

«(...) a Ética, ou seja, uma tipologia dos modos de existência imanentes, substitui a Moral, que refere sempre a existência a valores transcendentes.» (1)

«Rohmer: (...) tenho algumas reservas, na medida em que certos elementos de Hiroshima não me seduziram tanto como outros. Nas primeiras imagens havia algo que me incomodava. De seguida, rapidamente, o filme faz-me desaparecer esta sensação de incómodo. No entanto, compreendo que se pode amar e admirar Hiroshima e, ao mesmo tempo, considerá-lo em certos momentos irritante.
Doniol-Valcroze: Moralmente ou esteticamente?
Godard: É a mesma coisa. O travelling é uma questão de moral.
» (2)

«(...) Isto produz também uma coerência da encenação: o travelling que se prende às corridas dos homens, que esquadrinha e segue “a deslocação dos [seus] pés”. A moral do cineasta consiste em manter-se fiel a esse acto de cinema original: um ritmo, um estilo, um olhar, uma encenação que mostra o corpo do homem e mais particularmente os seus pés. “A moral é uma questão de travellings” , escreve então Luc Moullet para autenticar essa ética formal, que atesta algumas linhas mais abaixo designando com humor Samuel Fuller como “o único cineasta que filma com os pés”.
Moullet forja aqui uma expressão que, retomada em seguida por Godard e Rivette, se vai tornar célebre. Dado que não é nem o tema nem o discurso de um filme que importa, é preciso julgar Fuller com base na sua encenação, na sua maneira puramente cinematográfica de contar uma história e de mostrar os corpos (particularmente os pés). E aqui que reside a única ética do filme, “a moral é uma questão de travellings...”, fórmula reutilizada com algumas variantes na ocasião da estreia parisiense de Pickup on South Street, taxado de anticomunismo primário: “Notemos que o anticomunismo se limita ao tema: nem os enquadramentos, nem a mistura, nem a montagem são moscovofóbicos...” Algumas semanas mais tarde, em Julho de 1959, na ocasião de uma mesa redonda sobre Hiroshima mon Amour, Godard inverte os termos: “O travelling é uma questão de moral”. A inversão é também o sinal de um golpe de força: uma generalização do conceito que associa previamente cada gesto do cinema a um significado” moral, forma de reencontrar o olhar moral caro a Rossellini. Para Moullet, a moral é uma questão de forma; para Godard, é o olhar sobre o cinema que, em si, contém essa moral. Aliás, ao retomar e ao inverter a proposição de Moullet, Godard associa-a essencialmente à representação dos campos de extermínio. É sem dúvida um dos primeiros a querer avançar uma moral da representação do extermínio de um ponto de vista estético. O que de facto choca Godard “é uma certa facilidade em mostrar cenas de horror, porque se passa rapidamente para lá da estética”. Ele denuncia, tomando o exemplo de um filme recente, Judgment at Nuremberg, a obscenidade que há em “estilizar o horror”, comparando este género de procedimento com “as imagens pornográficas”.
Em Junho de 1961, Jacques Rivette intervirá no mesmo terreno para condenar o maneirismo de um filme de Gillo Pontecorvo, Kapo. Os temas de Fuller apontam-no à vindicta dos “bem pensantes”, mas a sua moral de cinema salvava-o aos olhos dos Cahiers; Kapo representa exactamente o caso inverso: o seu tema é gravemente importante (trata-se de um filme sobre os campos nazis), mas a sua ausência de ética cinematográfica torna-o obsceno. “Da abjecção”, assim titula Rivette, que escreve então uma análise determinante: “Citou-se muito, à esquerda e à direita, e na maioria das vezes muito tolamente, uma frase de Moullet: ‘A moral é uma questão de travellings’ (ou a versão de Godard); quis-se ver aí o cúmulo do formalismo... Vejam entretanto, em Kapo, o plano em que Riva se suicida, atirando-se sobre o arame farpado electrificado; o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para a frente de modo a reenquadrar o cadáver em contra-picado, tendo o cuidado de inscrever exactamente a mão levantada num ângulo do seu enquadramento final, esse homem só merece o mais profundo desprezo.”» (3)

1. Deleuze, Spinoza – Philosophie pratique, Minuit, Paris, p. 35.
2. «Hiroshima, notre amour», [mesa-redonda entre Rohmer, Godard, Kast, Rivette, Doniol-Valcroze sobre o filme de Resnais] Cahiers du cinéma, n.º 97, Julho 1959; tradução port. in Nouvelle vague, Catálogo da Cinemateca Portuguesa, p. 387.
3. Antoine de Baecque, «A moral é uma questão de travellings», [principalmente sobre a recepção crítica de Fuller em França] Trafic, n.º 25 [Primavera] & 26 [Verão], 1998; tradução port. in Nouvelle vague, Catálogo da Cinemateca Portuguesa, p. 301-302.

Trust the ear of the future

para o Andy Rector,
arauto da morte do “sol impiedoso do cinema moderno”

«Trust the ear of the future with the persistent feelings which embody the event: the ever renewed suffering of men, their ever recreated protest, their ever resumed struggle.
Confia ao ouvido do futuro as sensações persistentes que encarnam o acontecimento: o sofrimento sempre renovado dos homens, o seu protesto recriado, a sua luta sempre retomada.
»

Deleuze-Guattari, O que é a filosofia?

Nada a dizer

oferenda a “murnau”

«A estupidez não é nunca muda nem cega. Se bem que o problema já não seja o de fazer com que as pessoas se exprimam, mas o de lhes arranjar vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam alguma coisa a dizer. As forças de repressão não impedem as pessoas de se exprimir, pelo contrário, forçam-nas a exprimir-se. Doçura de não ter nada a dizer, direito de não ter nada a dizer, dado que é a condição para que se forme alguma coisa de raro ou de rarificado que mereceria um pouco ser dita.»

Gilles Deleuze, Pourparlers, Minuit, Paris, p. 177

Alguns filmes de Outubro

Il deserto rosso/O deserto vermelho
Michelangelo Antonioni
1964, 100'
Sáb, dia 7, 19h
Cinemateca, Lisboa





Wanda
Barbara Loden
1971, 102'
2ª, dia 9, 19h30
4ª, dia 25, 21h30

Cinemateca






Les deux anglaises et le continent
François Truffaut
1971, 170'

4ª, dia 11, 21h30
2ª, dia 23, 22h

Cinemateca




Le procès de Jeanne d'Arc
Robert Bresson

1962, 90'
5ª, dia 12, 19h30
Cinemateca







Sommaren med Monika/Mónica e o desejo
Ingmar Bergman
1952, 87'

5ª, dia 12, 21h30
Cinemateca


Die Marquise von O/A Marquesa de O
Eric Rohmer
1976, 107'

2ª, dia 16, 22h
Cinemateca





O bobo
José Álvaro Morais
1987, 120'
5ª, dia 19, 19h30

Cinemateca




Salesman
Irmãos Mayles e Charlotte Zwerin
1968, 90'
Dom, dia 22, 18h30

DocLisboa, Culturgest Pq. Aud.




Six fois deux - Y'a personne
Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville
1976, 58'
4ª, dia 25, 18h30

DocLisboa, Culturgest



Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer ou Peut-être q'un jour Rome se permettra de choisir à son tour (Othon)
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
1969, 88'
5ª, dia 26, 11h!
DocLisboa, Culturgest

Onde jaz o teu sorriso?
Pedro Costa
2002, 104'
6ª, dia 27, 14h30
DocLisboa, Culturgest




Die Bewerbung/A entrevista
Harun Farocki
1997, 58'
6ª, dia 27, 18h30
DocLisboa, Culturgest





Ana
António Reis e Margarida Cordeiro

1982, 114'
6ª, dia 27, 19h30
Cinemateca



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