Cena primitiva 1
"Há uma história que eu conto muitas vezes, e lá vou eu repetir, mas paciência, o comentário que me fez compreender não o cinema, mas o sítio onde eu me colocava no cinema – e eu já o sabia muito bem mas não tinha compreendido – é um comentário de Rivette. Já lhe devia ter contado esta história porque para mim ela é a base de tudo, foi perante um filme de Pontecorvo, Kapo, que é um filme sobre os campos de concentração feito em 61.Serge Daney, Itinerário de um cine-filho (conversa com Regis Debray)
Pontecorvo era um cineasta de esquerda, italiano, mau cineasta mas um homem impecável, contra a guerra da Argélia e isso tudo, mas um mau cineasta. E Rivette escreve uma crítica extraordinária – Rivette tinha trinta anos na altura e eu devia ter quinze ou dezasseis – ele conta o fim do filme e diz a propósito de Emmanuelle Riva que morre – eu nunca vi o filme, mas é como se o tivesse visto, havia além do mais uma imagem, bom, vimo-la em tantos filmes esse cliché visual, que é como se o tivesse visto – portanto ela morre e a câmara reenquadra o seu rosto para que ele se inscreva bem no alto do ecrã e o plano seja mais equilibrado, mas ela é kapo num campo de concentração e está de pijama às riscas e é sem dúvida um pouco gorda de mais para o papel, é isso.
E Rivette diz: o homem que naquele momento preciso, no momento em que ela morre, faz um travelling para a frente para que o enquadramento fique mais bonito, merece o desprezo mais profundo. É Rivette quem escreve isto, como só Rivette pode escrever, muito jansenista, e eu lembro-me, eu disse: claro, claro, tem razão, isto não se faz, para mim é o crime absoluto, são verdadeiramente os interesses dos cinéfilos que enlouqueceram, é o crime absoluto uma pessoa fazer isto.
Durante anos esqueci-me disto, de tal forma me parecia ser a evidência absoluta. E depois a ideia de que o assunto não estava resolvido voltou-me ao espírito quando vi certos cineastas fazerem esse travelling de Kapo sem que as pessoas se insurgissem, e portanto disse para mim próprio: esta agora, deves ser tu que és demasiado moralista sobre o assunto, que não toleras uma coisa destas, que talvez te sintas mesmo pessoalmente bloqueado com isto, com essa cena primitiva. Para mim é talvez a minha cena primitiva, uma coisa que se passa nos campos de concentração, e para muita gente da minha geração, sem dúvida, mesmo que não tenham consciência disso, mas depois disso não sei, as gerações mais jovens, não se sabe."
por Joana
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