Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Cena primitiva 1

"Há uma história que eu conto muitas vezes, e lá vou eu repetir, mas paciência, o comentário que me fez compreender não o cinema, mas o sítio onde eu me colocava no cinema – e eu já o sabia muito bem mas não tinha compreendido – é um comentário de Rivette. Já lhe devia ter contado esta história porque para mim ela é a base de tudo, foi perante um filme de Pontecorvo, Kapo, que é um filme sobre os campos de concentração feito em 61.
Pontecorvo era um cineasta de esquerda, italiano, mau cineasta mas um homem impecável, contra a guerra da Argélia e isso tudo, mas um mau cineasta. E Rivette escreve uma crítica extraordinária – Rivette tinha trinta anos na altura e eu devia ter quinze ou dezasseis – ele conta o fim do filme e diz a propósito de Emmanuelle Riva que morre – eu nunca vi o filme, mas é como se o tivesse visto, havia além do mais uma imagem, bom, vimo-la em tantos filmes esse cliché visual, que é como se o tivesse visto – portanto ela morre e a câmara reenquadra o seu rosto para que ele se inscreva bem no alto do ecrã e o plano seja mais equilibrado, mas ela é kapo num campo de concentração e está de pijama às riscas e é sem dúvida um pouco gorda de mais para o papel, é isso.
E Rivette diz: o homem que naquele momento preciso, no momento em que ela morre, faz um travelling para a frente para que o enquadramento fique mais bonito, merece o desprezo mais profundo. É Rivette quem escreve isto, como só Rivette pode escrever, muito jansenista, e eu lembro-me, eu disse: claro, claro, tem razão, isto não se faz, para mim é o crime absoluto, são verdadeiramente os interesses dos cinéfilos que enlouqueceram, é o crime absoluto uma pessoa fazer isto.
Durante anos esqueci-me disto, de tal forma me parecia ser a evidência absoluta. E depois a ideia de que o assunto não estava resolvido voltou-me ao espírito quando vi certos cineastas fazerem esse travelling de Kapo sem que as pessoas se insurgissem, e portanto disse para mim próprio: esta agora, deves ser tu que és demasiado moralista sobre o assunto, que não toleras uma coisa destas, que talvez te sintas mesmo pessoalmente bloqueado com isto, com essa cena primitiva. Para mim é talvez a minha cena primitiva, uma coisa que se passa nos campos de concentração, e para muita gente da minha geração, sem dúvida, mesmo que não tenham consciência disso, mas depois disso não sei, as gerações mais jovens, não se sabe."
Serge Daney, Itinerário de um cine-filho (conversa com Regis Debray)

por Joana

Sem comentários:


Arquivo / Archive