Louvor ao estilo, I
Pequena série de "louvores" em memória de um post desaparecido que, apenas aparentemente, contradizia assim o Pavese:
«Jean-Marie Straub: O estilo não existe. Um filme que tem um estilo é uma merda. O trabalho que deve fazer um realizador é contra si próprio, contra a complacência, para alcançar algo que não tem um estilo, mas que consegue roubar algo ao mundo, sem saquear.»
«– Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos? [...]
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. [...] Consegui um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura... Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já nada significa. É um modo de alcançar o estilo. [...]
Gosta de poesia? Sabe o que é poesia? Tem medo da poesia? Tem o demoníaco júbilo da poesia?
Pois veja. É também um estilo. O poeta não morre da morte da poesia. É o estilo.
Está a ouvir como essas enormes crianças gritam e gritam, entrando na eternidade? Note: somos o Poema onde elas se distanciam. Como? Loucamente. Quem suportaria esses gritos magníficos? Mas o poeta faz o estilo.
Perdão, seja um pouco mais honesto. Seja ao menos mais inteligente. Vê-se bem que não estou louco. Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso porque lhes falta um estilo.
Sabe de que lhe estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela? Bem, o senhor não é estúpido, mas também não é muito inteligente. Conheço. Conheço o género. Talvez eu já tivesse sido assim. Pratica as artes com parcimónia: não a poesia, mas as poesias. Cultiva-se, evidentemente. Se calhar está demasiado na posse de um estilo. Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade? [...]»
Herberto Helder, «Estilo»,
Os passos em volta, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997 (7ª), pp. 9-12.
3 comentários:
pois, mas era perigoso deixá-lo ali mesmo colado. era preciso explicar muitas coisas... optei por retirá-lo. mas fiz mal e nem era preciso expplicar nada
cristina, claro que estes louvores não são uma censura pelo desaparecimento, antes um elogio da dificuldade: tanta coisa a explicar... nunca é preciso explicar nada, mas também não somos capazes de tudo. teremos força para as incompreensões? são vias directa para a solidão...
sim, eu percebi e foi por isso que resolvi voltar a publicar o texto do Straub
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