Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #57 (António Guerreiro)

«A linguagem dos gestos é da esfera pré-política

Um incidente recente na Assembleia da República pôs muita gente a interrogar-se porque é que um gesto de valor indefinido na mímica codificada dos insultos causou maior escândalo do que muitas palavras – proferidas no mesmo contexto – que entram abertamente no discurso insultuoso. Para percebermos o que há de inassimilável no gesto de um político, devemos recordar a definição de Aristóteles: “O homem é um animal político, isto é, dotado de linguagem” (aqui, a palavra grega é logos, que também significa “razão”). O gesto não releva do logos, mas do pathos, advém de uma energia emotiva da esfera mágica e religiosa.
A linguagem dos gestos é pré-política, e mesmo quando é recodificada politicamente (o punho cerrado dos comunistas, a saudação nazi) guarda a memória das fórmulas do paganismo primitivo. Obama é um político que compreendeu tudo isto muito bem: quando mata uma mosca durante uma entrevista para a televisão, aponta esse seu gesto como algo não espontâneo, mas como uma interrupção voluntária do discurso político. E assim introduz um segundo grau, traduzível desta maneira: “Estou a representar um papel político, mas não coincido inteiramente com ele”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 25.7.2009.

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Ao pé da letra #56 (António Guerreiro)

«A crise das imagens é hoje uma questão fundamental

A crise da linguagem é uma questão muito importante em toda a literatura moderna. Os autores vienenses do princípio do século XX viveram-na com especial intensidade. O documento extremo dessa consciência crítica é a “Carta a Lord Chandos” (1902), de Hugo von Hofmannsthal. Quando hoje se fala do triunfo e do predomínio das imagens, do lugar privilegiado que elas ocupam na nossa sociedade, tendemos a esquecer que também há uma crise das imagens, e não menos grave. Só quem tem uma visão ingénua e muito simples do que é uma imagem é que não percebeu ainda que o fluxo imagético a que estamos submetidos corresponde, no fundo, à impossibilidade da nossa cultura de produzir imagens e símbolos que superem a anestesia geral.

A crise das imagens – cuja face mais visível é o excesso – é um sintoma de esterilização cultural. Por isso, correr atrás das imagens como a ‘linguagem’ própria da época é o mesmo que praticar a tagarelice, a conversa que ninguém ouve e já nada comunica a não ser a própria erosão da linguagem. A arte contemporânea sabe muito bem o que isso significa. Quem diria que a cultura da imagem se situa, afinal, do lado da cegueira?»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 18.7.2009.

On (the dangers of) actively forgetting (the tradition of) film criticism
André Dias
Saturday, July 18th, 4 pm – Lecture Theatre 3, Dalhousie Building, University of Dundee, Scotland

A spectre is haunting film philosophy – the spectre of film criticism... The present foundation of an academic sub-discipline around the hypothesis of a philosophy of film is not without its methodological dangers. Despite a few balanced approaches, film philosophy has been largely establishing itself through the active forgetfulness of a whole tradition, that of film criticism. In the absence of a consensual definition of its range and scope, film philosophy is now negatively defined by its neglect of film criticism’s broad contributions to the knowledge of cinema. Such a naiveté or conscious neglect can nevertheless be considered as a strategic position, since it might allow for the glimpse of a philosophical tabula rasa of cinema, as if cinema’s virginity remained intact to the very late but kind in heart philosopher’s approaches. The corresponding disciplinary open field will then give room for some philosophical pirouettes while at the same time dramatically overlooking the most demanding and creative cinematic works, precisely those the tradition of film criticism was able to establish in the vicinity of thought.




Ir ao cinema e ver um filme (Stanley Cavell)

«Poder-se-ia dizer que as projecções de cinema começaram pela primeira vez a ser frequentadas por uma audiência, ou seja, por pessoas que chegam e partem ao mesmo tempo, como numa peça. Quando ir ao cinema era algo de casual e entrávamos em não importa que altura das ocorrências (durante as actualidades ou nas curtas metragens ou algures na longa – desfrutando o reconhecimento, mais tarde, do retorno do momento exacto em que se tinha entrado, e a partir daí sentindo-nos livres para decidir quando sair, ou então para ver de novo por completo a parte conhecida), levávamos as nossas fantasias, companheiros e anonimato para dentro e saíamos com eles intactos. Agora que existe uma audiência, é feita uma demanda sobre a minha privacidade; por isso importa-me que as nossas respostas ao filme não sejam verdadeiramente partilhadas. Ao mesmo tempo do mero facto de uma audiência fazer esta demanda sobre mim, quase parece que a antiga casualidade de ir ao cinema foi substituída por uma casualidade de ver um filme, que interpreto como uma inabilidade para tolerar as nossas próprias fantasias, quanto mais as dos outros – uma atitude que também não posso partilhar.
Sinto que estou presente num culto cujos membros não têm nada em comum senão a sua presença no mesmo lugar. As coisas são diferentes – não necessariamente mais agradáveis – se o filme já faz parte da história e é em si algo em torno do qual um culto transitório se formou. Suponho que a velha casualidade protegia o valor de ilicitude que desde o começo fez parte de ir ao cinema. Mas os constrangimentos da nova audiência não afastam a ilicitude ou tornam-na desnecessária; a audiência não é uma reunião de cidadãos para confissão honesta e aceitação de uns aos outros. A nova necessidade de reunião é tão misteriosa como a antiga necessidade de privacidade; portanto, a exigência de que eu abdique da privacidade é tão ilícita quanto o meu requisito de a preservar.»

Stanley Cavell, The world viewed. Reflections on the ontology of film, Harvard U.P., Cambridge, (1971) 1979, pp. 11-12.

«Que poder é o do cinema que conseguiu sobreviver a (e até lucrar artisticamente com) tanta negligência e desprezo ignorante por parte dos que tinham poder sobre ele? O que é o cinema?»
«What is the power of film that it could survive (even profit artistically from) so much neglect and ignorant contempt by those in power over it? What is film?»

Stanley Cavell (1971)

Ao pé da letra #55 (António Guerreiro)

«Entre os ícones e os ídolos, instaurou-se a confusão

De onde vem o equívoco que leva a uma utilização inadequada da noção de ícone, quando se diz, por exemplo: “Michael Jackson era um ícone da nossa época”? “Ícone do meu tempo” foi como Malevitch definiu o seu Quadrado Negro, em 1915. E, três anos depois, com o seu Quadrado Branco sobre Fundo Branco, alcançava a pureza absoluta de uma pintura que se liberta do visível, contrariando o que Schleiermacher tinha sentenciado um século antes: “Nenhum pintor faz uma pintura sobre um fundo branco.” A noção de ícone, tem na sua origem, uma dimensão religiosa, que está bem patente no debate bizantino sobre a legitimidade dos ícones, da representação do divino.

Um ícone cumpre plenamente a sua missão negando-se como imagem, ou melhor, instaurando-se como imagem totalmente transitiva, através do qual se acede ao reino do invisível, do qual o ícone é uma epifania. Deve ter havido um momento, muito próximo de nós, em que o ícone foi tentado a abandonar a via da pureza, da ascese, da desencarnação da imagem e a experimentar a tentação da carne exuberante – um momento em que os deuses se retiram e os ícones passaram a ser ídolos.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 11.7.2009.

Interlúdio cognitivista (Raymond Bellour)

«– [...] Existe um paradoxo do cognitivista que reside na própria natureza da ciência que ele queria poder aplicar, e que induz neste sentido a um cientismo (reencontramos, de resto, os sonhos mecanicistas de alguns filmólogos, dos bons tempos da psicologia experimental – é por isso que, diga-se de passagem, a filmologia voltou a estar na moda). Por um lado, o verdadeiro cognitivista sonha com poder exprimir em termos de localizações, de modalidades e quantidades reais (zonas do cérebro, tipos de neurónios, redes associativas, percursos traçáveis, etc.) toda e qualquer operação do filme; por outro, como ainda é impossível, e de qualquer forma problemático, e como não nos podemos satisfazer com puras virtualidades, faz, como outro qualquer, a partir do momento em que volta a cair no filme, tudo o que quer (salvo psicanálise, é verdade!): narratologia, formalismo (russo ou não, ou seja neo), estilística de todo o género, estruturalismo (pré ou pós), ou simplesmente crítica, como outro qualquer, em suma, a análise mais ou menos feliz ou infeliz, de acordo com o seu humor, talento, sensibilidade (se ousarmos empregar tal termo face a tanta “ciência”), convicções variadas (incluindo ideológicas, que não lhe faltam).
– Você diz “ainda”, o que supõe que uma aproximação verdadeiramente científica venha um dia a ser possível. 
– Quem sabe? Henri Michaux bem que sonhava, já em 1942, com ver aquilo a que chamava o “ser fluídico”, é tão belo que tenho que citá-lo: “(...) esses percursos bizarros chamados sentimentos, que não fazem senão aflorar na fisionomia e marcar-se nos actos, um dia, estou convencido que um dia e não tão distante, felizes os valentes que os contemplarão, um dia vê-lo-emos. Veremos, graças a qualquer invenção, os sentimentos, as emoções formarem-se, enlaçarem-se, e os seus mecanismos cada vez mais próximos até se tornarem do interesse de todos os indivíduos. Veremos o amor.*”

* Henri Michaux, «En pensant au phénomène de la peinture», Passages (1950), Œuvres complètes, t. II, Gallimard, 2001, pp. 322-323. 
Mas mesmo que tal se tornasse verdade, e que acabássemos por ver, e portanto por poder até calcular, exprimir em termos verdadeiramente neurobiológicos o efeito do desenrolar de um filme num corpo-cérebro, permaneceria o problema de saber o que fazer desse segundo “filme” científico, que por sua vez seria necessário compreender, situar, quer dizer, interpretar, por mal vista que seja a palavra. E nem falo sequer das distâncias entre os cérebros... Tudo isto me lembra uma recordação dos tempos antigos da análise de filmes. Visitava em Nova Iorque, em meados dos anos 70, o departamento de Film Studies da Universidade de Columbia; evocava os meus problemas de então (parar, anotar, descrever, avaliar, construir, analisar). Pois então acabaram por me dizer: mas é precisamente isso que nós fazemos, análise! E estenderam-me um documento impressionante (tão impressionante que o conservei): cem páginas de decomposição plano a plano dos 72 planos da sequência do duche em PSYCHO, todos redesenhados, codificados, diagramatizados, segundo os eixos, as durações, as luzes, etc., de modo a produzir, a todos os níveis possíveis, equivalentes quantificados e visualizáveis da sequência tornada talvez a mais célebre da história do cinema. Algumas páginas modestas e precisas como introdução (assinadas por Linda Montanti) não diziam em certo sentido mais nada, a não ser que depois de ter sido assim transcrita, contabilizada, meta-esquematizada, essa sequência onde explodia o génio de Hitchcock assustava ainda tanto. Imagino deste modo, num futuro provável ou improvável, milhares, milhões de neurónios assim redistribuídos numa gigantesca partição matemático-musical. »


Raymond Bellour, «Un spectateur pensif», Le corps du cinéma. Hypnoses, émotions, animalités, P.O.L., Paris, 2009, pp. 189-190.

O mais imanente



Cabe ao cinema de Straub e Huillet o título de mais imanente, precisamente pela inseparabilidade que nele sempre revelaram os materiais e a sua expressão, cinema e pensamento. Num dos diálogos de DALLA NUBE ALLA RESISTENZA, duas personagens conversam sentadas lado a lado numa pedra de um bosque. As duas personagens, embora próximas, não integram o mesmo quadro na montagem, que passa de uma a outra. Pelo contrário, estão lançadas excentricamente para junto da outra no limiar do seu quadro, mas sem se tocarem nem entrarem no quadro alheio. Cada uma delas tem então, no mais próximo fora de campo, a outra. E, no entanto, os olhos postos na direcção contrária, para o mundo aberto... 

André Dias, «O período cor-de-rosa»,
in Catálogo do ciclo Eram os Anos 70, org. Antonio Rodrigues, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2009, p. 115;
(cont. de «Um diálogo»).
DALLA NUBE ALLA RESISTENZA (1979)
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
2ª, dia 6, 22h – Cinemateca


Ao pé da letra #54 (António Guerreiro)

«Há uma velha inimizade entre a opinião e a crítica

Pacheco Pereira reforçou o seu papel de Karl Kraus da nossa Cacânia no novo programa que tem na SIC Notícias. A veia satírica do escritor vienense não pode ser aqui chamada para a comparação; mas a batalha é contra o mesmo inimigo: a imprensa (e os media em geral) como a grande fábrica que produz a opinião pública, a ‘jornalização’ do pensamento e da vida; a fraseologia jornalística que corrompe a língua. Estas questões continuam actuais, mas Pacheco Pereira está limitado por os seus instrumentos analíticos serem tão permeáveis ao próprio discurso da opinião. A ‘opinião sobre a opinião’ é a praga a que estamos expostos.

O que faz falta é uma verdadeira crítica da opinião. Não da opinião A, B ou C, mas da opinião tout court. Esta diferença entre opinião e crítica é fundamental: a primeira corresponde a uma doxa e dispensa toda a gente de reflectir; a segunda não dispensa a elaboração argumentativa de um saber que não é matéria de opinião. Quando um crítico escreve sobre um livro, o ideal é que a sua opinião seja posta à distância ou só seja validada (ou refutada) pela argumentação crítica; mas, quando o classifica com estrelas, passa para o campo exclusivo da opinião.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 4.7.2009.


Cf. também «Opiniões, quem as não tem?». 


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