Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ir ao cinema e ver um filme (Stanley Cavell)

«Poder-se-ia dizer que as projecções de cinema começaram pela primeira vez a ser frequentadas por uma audiência, ou seja, por pessoas que chegam e partem ao mesmo tempo, como numa peça. Quando ir ao cinema era algo de casual e entrávamos em não importa que altura das ocorrências (durante as actualidades ou nas curtas metragens ou algures na longa – desfrutando o reconhecimento, mais tarde, do retorno do momento exacto em que se tinha entrado, e a partir daí sentindo-nos livres para decidir quando sair, ou então para ver de novo por completo a parte conhecida), levávamos as nossas fantasias, companheiros e anonimato para dentro e saíamos com eles intactos. Agora que existe uma audiência, é feita uma demanda sobre a minha privacidade; por isso importa-me que as nossas respostas ao filme não sejam verdadeiramente partilhadas. Ao mesmo tempo do mero facto de uma audiência fazer esta demanda sobre mim, quase parece que a antiga casualidade de ir ao cinema foi substituída por uma casualidade de ver um filme, que interpreto como uma inabilidade para tolerar as nossas próprias fantasias, quanto mais as dos outros – uma atitude que também não posso partilhar.
Sinto que estou presente num culto cujos membros não têm nada em comum senão a sua presença no mesmo lugar. As coisas são diferentes – não necessariamente mais agradáveis – se o filme já faz parte da história e é em si algo em torno do qual um culto transitório se formou. Suponho que a velha casualidade protegia o valor de ilicitude que desde o começo fez parte de ir ao cinema. Mas os constrangimentos da nova audiência não afastam a ilicitude ou tornam-na desnecessária; a audiência não é uma reunião de cidadãos para confissão honesta e aceitação de uns aos outros. A nova necessidade de reunião é tão misteriosa como a antiga necessidade de privacidade; portanto, a exigência de que eu abdique da privacidade é tão ilícita quanto o meu requisito de a preservar.»

Stanley Cavell, The world viewed. Reflections on the ontology of film, Harvard U.P., Cambridge, (1971) 1979, pp. 11-12.

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