Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Raros filmes (especial IndieLisboa 2009)


Süt Leite
Semih Kaplanoglu
2008, 102’, 35mm
IndieLisboa 2009
4ª, dia 29 Abril, 15h30
Sáb, dia 2 Maio, 15h30 
City Classic Alvalade 3, Lisboa


Tôkiô sonata
Kiyoshi Kurosawa

2008, 119’, 35mm
IndieLisboa 2009
5ª, dia 30 Abril, 19h
Museu do Oriente, Lisboa
[atenção: projecção vídeo!]


Ruínas
Manuel Mozos
2009, 60’
IndieLisboa 2009

6ª, dia 1 Maio, 17h45
Londres 2, Lisboa


Ballast
Lance Hammer
2008, 92’, 35mm
IndieLisboa 2009

6ª, dia 1 Maio, 18h15
City Classic Alvalade 3


Die Große Ekstase des 
Bildschnitzers Steiner / 
The Great Ecstasy of the 
Woodcarver Steiner

Werner Herzog
1974, 47’
Werner Herzog
IndieLisboa 2009

6ª, dia 1 Maio, 19h – Fórum Lisboa

Ao pé da letra #45 (António Guerreiro)

«Da simbólica do livro à realidade do livro

Prolongando o Dia Mundial do Livro, decidiu a APEL promover a Semana dos Livreiros. A astuciosa iniciativa decorre assim à boleia de uma evocação ecuménica do livro, da sua história gloriosa e dos seus mitos, o maior dos quais é o do Livro-Mundo (na versão de Leibniz, esse livro que é o Mundo teria sido escrito por Deus numa linguagem que é a das matemáticas). Se esta comemoração só tem algum sentido considerando a “simbólica do livro” (uma noção do grande romanista alemão Curtius), abstraindo-a da realidade da indústria livreira, quando os livreiros entram em cena nesta festa dificilmente sobrevive a dimensão simbólica.


Porque a verdade conspícua da maior parte das livrarias em Portugal é pouco compatível com tal glorificação simbólica. Pelo contrário, elas tornaram-se entrepostos da indústria do entretenimento, onde observamos o funcionamento eficaz desta lei: a difusão homogeneizada determina a uniformização da produção e, portanto, uma redução da oferta. Talvez não seja fácil saber onde se iniciou este círculo vicioso, mas as livrarias são, justa ou injustamente, a montra onde se exibe este espectáculo pouco edificante.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 25.4.2009.

Ao pé da letra #44 (António Guerreiro)

«E, de repente, Nietzsche é um convidado clandestino

O slogan de Vital Moreira – “Nós, europeus” – tem um autor intempestivo, secretamente convocado e retocado para uma festa que não é a sua: Friedrich Nietzsche. Foi ele quem escreveu, em Para Além do Bem e do Mal: “Nós, bons europeus, temos as nossas horas de nacionalismo, momentos em que nos deixamos mergulhar em velhos amores e seus estreitos horizontes”. Quem são os “bons europeus”? São os que recusam a “pequena Europa” burguesa e reaccionária, os que combatem a “infecção nacionalista”, os “herdeiros encarregados de obrigações milenares do espírito europeu”.


Para o discurso político, é difícil integrar os “bons europeus”, tanto mais que, em Nietzsche, tal adjectivo não é conforme à moral cristã e platónica. Evocar o “Nós, europeus” é muito mais fácil; mas é preciso que não se descubra que quem assim falou teve também estas palavras para designar quase a mesma coisa: “Nós, os sábios” e “Nós, os imoralistas”. Nietzsche, como teórico da ideia europeia, só clandestinamente pode entrar na festa eleitoral que aí vem. Gente respeitável e pouco dada à loucura não convive facilmente com quem abraça cavalos numa praça de Turim.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 18.4.2009.


Fundação


A SISMOGRAFIA DA CULTURA

17 Abr - 03 Jul 2009 - das 19:00 às 21:00 - Sextas - BIBLIOTECA, Museu de Serralves, Porto 
21 ABR - 23 JUN 2009 - DAS 19:00 ÀS 21:00 - TERÇAS - Auditório, Rua Castilho, 165, LISBOA 

Nas duas primeiras décadas do século passado, os “diagnósticos da cultura”, motivados quase sempre por um profundo pessimismo cultural, tornaram-se quase um género autónomo. A metáfora do sismógrafo (ou outra metáfora da mesma família) é então usada por uma constelação de autores. Por exemplo: Aby Warburg, Hugo von Hofmannsthal, Karl Kraus e Walter Benjamin.
Fazendo, muito embora, um breve percurso por este universo, deter-nos-emos em Aby Warburg (1866-1929) e Walter Benjamim (1892-1940), duas figuras maiores do século XX que contribuíram decisivamente para as configurações conceptuais do tempo em que vivemos (e, se Benjamin é um dos autores mais lidos e influentes nas áreas da teoria da cultura, da arte e da história, já Warburg permaneceu até há pouco tempo num certo desconhecimento, do qual emergiu em grande força na última década). A aproximar estes dois autores está uma concepção da história e da cultura que encontra na questão da imagem um dispositivo fundamental. A ideia de «imagem dialéctica» em Walter Benjamin pode ser posta a par da visão warburguiana da imagem como «fórmula de pathos», como energia onde se polariza a memória cultural e as leis da sua transmissão trans-histórica. Tentando construir um “Atlas das imagens», Warburg chega à ideia de uma esquizofrenia da cultura ocidental, sempre dividida entre o pólo racional e o pólo mágico-demoníaco; e é na «imagem dialéctica» que Benjamin concentra a sua ideia de que os fenómenos históricos só chegam ao «momento da sua cognoscibilidade» quando são postos em sincronia (ou em constelação) com momentos anteriores e posteriores da história.

(Passagens por Walter Benjamin e Aby Warburg)

Concepção e orientação: António Guerreiro

Ao pé da letra #43 (António Guerreiro)

«Os prémios literários tornaram-se uma caricatura

A cerimónia de entrega do Prémio Leya teve o alto patrocínio do Presidente da República. Tal caução está no lugar de uma falta: a da instituição literária que legitime, consagre e assegure a existência pública do prémio. Projectados para um exterior que nada tem a ver com a literatura ou sujeitos às composições dos grupos e às afinidades tácticas e estratégicas que se criam no interior da “vida literária”, os prémios tornaram-se o episódio mais degradante do território sem autonomia a que outrora se chamava República das Letras.


A questão, hoje, já não é a de os prémios serem justos ou injustos (foi ainda nesses termos que Musil se referiu a eles e fez a caricatura do Grande Escritor), mas a de já nem se saber quem os outorga, o que eles visam e a que público (dos leitores?, dos consumidores?) é dirigida a publicidade a que os prémios aspiram. Há um longo capítulo da sociologia da literatura contemporânea que deve ser dedicado à progressiva deslegitimação dos prémios, o que levou, aliás, a uma situação frequente: o júri de hoje será o premiado de amanhã e vice-versa. Não se trata de ‘corrupção’: é a lei do estreitamento do Universo.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra»,Expresso-Actual
, 10.4.2009.

A imagem intolerável (Jacques Rancière)

«A questão do intolerável deve então ser deslocada. O problema não é o de saber se se deve ou não mostrar os horrores sofridos pelas vítimas desta ou daquela violência. Ele concerne a construção da vítima como elemento de uma certa distribuição do visível. Uma imagem nunca aparece sozinha. Pertence a um dispositivo de visibilidade que regula o estatuto dos corpos representados e o tipo de atenção que eles merecem. A questão é a de saber o tipo de atenção que provoca este ou aquele dispositivo. [...]
[O] problema não é o de saber se se deve ou não fazer e olhar tais imagens, mas antes no seio de que dispositivo sensível o fazemos. [...]
O tratamento do intolerável é então uma questão de dispositivo de visibilidade. Aquilo a que chamamos imagem é um elemento num dispositivo que cria um certo sentido de realidade, um certo sentido comum. Um “sentido comum” é antes de mais uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade é suposta ser partilhável por todos, modos de percepção dessas coisas e significações igualmente partilháveis que lhes são conferidas. É em seguida a forma de estar em comum que religa indivíduos ou grupos na base dessa comunidade primeira entre as palavras e as coisas. O sistema de Informação é um “sentido comum” deste género: um dispositivo espacio-temporal no seio do qual palavras e formas visíveis são agregadas em dados comuns, em maneiras comuns de percepção, de ser afectado e de dar sentido. O problema não está em opor a realidade às suas aparências. Está em construir outras realidades, outras formas de sentido comum, quer dizer, outros dispositivos espacio-temporais, outras comunidades de palavras e coisas, formas e significações.
Essa criação é o trabalho da ficção, que não consiste em contar histórias mas em estabelecer relações novas entre as palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui e um além, um antes e um agora. [...] O problema não é o de saber se o real destes genocídios pode ser posto em imagens ou em ficção. É o de saber como é que o é, e que tipo de sentido comum é tecido por esta ou aquela ficção, pela construção desta ou daquela imagem. É o de saber que tipo de humanos a imagem nos mostra e a que tipo de humanos ela é destinada, que tipo de olhar e de consideração é criada por essa ficção.
Este deslocamento na abordagem da imagem é também um deslocamento na ideia de uma política das imagens. O uso clássico da imagem intolerável traçava uma linha a direito do espectáculo insuportável à consciência da realidade que ele exprimia e desta ao desejo de agir para a modificar. Mas essa ligação entre representação, saber e acção era uma pura pressuposição. A imagem intolerável, com efeito, retirava o seu poder de evidência dos cenários teóricos que permitiam identificar o seu conteúdo e da força dos movimentos políticos que os traduziam em práticas. O enfraquecimento desses cenários e desses movimentos produziu um divórcio, opondo o poder anestesiante da imagem à capacidade de compreender e à decisão de agir. A crítica do espectáculo e o discurso do irrepresentável ocuparam então a cena, alimentando uma suspeita global sobre a capacidade política de toda a imagem. O cepticismo presente é o resultado de um excesso de fé. Nasceu da desilusão da crença numa linha a direito entre percepção, afecção, compreensão e acção. Uma confiança nova na capacidade política das imagens supõe a crítica deste esquema estratégico. As imagens da arte não fornecem armas para os combates. Elas contribuem para o desenho das configurações novas do visível, do dizível e do pensável, e, por aí mesmo, de uma paisagem nova do possível. Mas elas fazem-no na condição de não antecipar o seu sentido nem o seu efeito.

Jacques Rancière, «L'image intolérable»,
Le spectateur émancipé, Le Fabrique, 2008, Paris, pp. 108-113.

Ao pé da letra #42 (António Guerreiro)

«Será possível salvar quem corre para o suicídio?

Na semana em que decorre na cidade de Perugia um encontro com o nome de operação de emergência, Cinco dias para salvar o jornalismo, apetece recordar Hegel: “A leitura do jornal é a oração matinal do homem moderno”. Já não é possível atribuir aos jornais a função de socialização da cultura e emancipação intelectual. Mas talvez estes tenham ido longe demais, alienando-se do público culto, da “esfera literária”, no sentido que tal expressão ganhou na época do Iluminismo.


Exemplifico com o jornal que me proporciona a oração matinal, o Público. Na secção “Escrito na pedra”, citava-se na semana passada uma frase de Paul Celan: “A poesia é uma espécie de boas-vindas”. Quem conhece os textos em prosa de Celan sabe que ele não escreveu tal coisa, mas sim: “O poema é uma espécie de regresso a casa” (“Eine Art Heimkehr”). Alguns dias depois, na mesma secção, surge outra citação deturpada de W. Benjamin. Por trás destes descuidos está o pressuposto funesto de que o leitor é ignorante e nem ousa querer sair desse estado de menoridade. Daí a regra paradoxal em que vivemos: os livros e os jornais, na sua maioria, são editados para quem não gosta de ler e não aspira ao saber.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra»,Expresso-Actual
, 4.4.2009.


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