Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #158 (António Guerreiro): Vícios linguísticos

Como é que uma palavra, uma expressão, um vocabulário ‘pegam’ como um tique ou um hábito social e entram na engrenagem da repetição mimética? Nos últimos tempos, este mecanismo que funciona como uma câmara de ecos pôs em circulação a palavra ‘narrativa’ no comentário político, em frases do tipo: “Afinal, a narrativa da dívida é outra”; ou: “Não devemos acreditar na narrativa da superação do défice.” Nas colunas de opinião de jornais, este uso da palavra ‘narrativa’ sofreu uma inflação e difundiu-se como acontece aos estereótipos. De onde vem esse uso? Podemos descobri-lo, na sua origem mais plausível, num pequeno livro que teve um grandioso efeito: La condition postmoderne (1979), de Jean-François Lyotard. Aí, este filósofo francês, entretanto falecido, definia a pós-modernidade como uma crise das narrativas, como o fim de um metadiscurso a que ele chamou “narrativas da legitimação”. Na sua perspetiva, o modernismo ter-se-ia caracterizado por grandes discursos legitimadores (por exemplo, o discurso do iluminismo e do marxismo) que chegaram ao seu fim.  

Ora, é precisamente neste sentido de narrativa de legitimação que, de repente, por um fenómeno mimético, a palavra ‘narrativa’ passou a fazer parte do jargon do comentário político. Tão interessante como este fenómeno das palavras que pegam é o do uso errado de palavras ou expressões até ao ponto em que esse uso se torna quase universal. Por exemplo: ‘grau zero’. É escusado lembrar que ‘grau zero’ não é pura e simplesmente ausência de qualquer coisa. Designa algo diferente: consiste numa presença que se faz notar pela ausência de um indicador, é uma existência que se torna notável exatamente por estar ausente. Assim, podemos dizer, por exemplo, que o liberalismo atual não é tanto a defesa de que o Estado se ausente da economia mas que ele se reduza ao grau zero.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.9.2011.

Ao pé da letra #157 (António Guerreiro): O 11 de setembro e o ‘Kitsch’ total

O 11 de setembro – pudemo-lo verificar agora até à náusea – tornou-se, sobretudo pela exploração das imagens literalmente espetaculares que o documentam e, ao mesmo tempo, o monumentalizam, grandiosa presa de um ideal estético. E esse ideal estético é o kitsch. Dito de uma maneira direta: o 11 de setembro tornou-se um espetáculo kitsch planetário – o maior da história da Humanidade – que faz com que aquilo em relação ao qual se reivindica um dever de memória seja afinal objeto de um esquecimento grosseiro. O extermínio dos judeus deu origem a uma atitude mística e iconófoba porque dele não havia imagens: o ataque às torres gémeas deu origem àquela comoção universal que se tem perante o sublime porque havia demasiadas imagens grandiosas. E, assim, o 11 de setembro resultou numa iconofilia (e é como reação a esta iconofilia, e não como alusão a um irrepresentável, que temos de interpretar a capa totalmente negra da Revista Única, concebida por Pedro Cabrita Reis). 

Essa comoção não esconde um enorme fascínio, que precisa de ser disfarçado com pudicas exclamações de horror. E esse fascínio – que é o fascínio pelo sublime – tem por base o kitsch espetacular do qual ficámos reféns. Não são as fotografias e os registos em vídeo que são kitsch, em si, mas o modo como são difundidos, editados, sublinhados, musicados, legendados, repetidos, de modo a exercer uma ditadura emocional. O músico alemão Karlheinz Stockhausen, logo a seguir ao colapso do World Trade Center, disse que se tratava da maior obra de arte total. Foram declarações muito inconvenientes, que lhe valeram o cancelamento de muitos concertos. Mas estas palavras de Stockhausen eram afinal o prenúncio de uma estetização irresponsável que viria a seguir, ao nível das revistas de moda. O resultado é o que se vê. Se Flaubert voltasse para reescrever o seu “Dictionnaire des idées reçues”, diria na entrada sobre o 11 de setembro: “Deste dia, dizer sempre ‘o dia em que...’”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 17.9.2011.

Ao pé da letra #156 (António Guerreiro): O salário dos ricos

A questão dos impostos levantou uma discussão indigente sobre o que é ser rico e ser pobre. Para começar, dever-se-ia ler um ensaio de Georg Simmel, de 1907, onde este sociólogo alemão formula uma definição: “É pobre aquele cujos meios não são suficientes para os fins que persegue”. Em vez de identificar a categoria social específica dos pobres, Simmel mostra que a pobreza não pode ser definida de maneira quantitativa por características que lhe seriam próprias: não é um dado absoluto, mas relativo. Um professor universitário que não tem dinheiro para comprar livros é pobre. Outra coisa que nos ensina Simmel é que a assistência aos pobres não se destina a socorrê-los, mas a proteger a sociedade da sua presença. Quanto aos ricos, importa verificar que os títulos de pertença à alta-burguesia já não se definem pelo valor da propriedade, mas por um certo nível de remunerações e o modo de vida que ele permite. 

A burguesia moderna é a burguesia assalariada (muita gente de esquerda parece que ainda não percebeu que a correspondência que Marx tinha estabelecido entre proletariado e assalariado está hoje quebrada). Só que esse salário, ao contrário do “salário fundamental” da grande maioria dos trabalhadores, tem um preço ‘político’, independente do mercado. É o sobressalário arbitrário. Não é a qualificação, o mérito e a lei da oferta e da procura que fazem com que um gestor ganhe muitos milhares de euros por mês: ele ganha-os por uma arbitragem política da sociedade que determina que o poder deve estar aí e não, por exemplo, num indivíduo que detém uma posição singular no ramo do saber e da ciência. O mesmo acontece com as vedetas de televisão: elas devem o seu sobressalário não à qualificação, não ao facto de fazerem aquilo que mais ninguém poderia fazer, mas por uma arbitragem do poder na sociedade mediática que leva a aquele que paga ganhe precisamente por pagar muito. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.9.2011.

Ao pé da letra #155 (António Guerreiro): Os blogues e a estrutura mafiosa do poder

Quando surgiram, os blogues eram portadores de uma grande virtualidade que nos remetia para a herança mais indeclinável do projeto iluminista: a racionalidade, a discussão e a socialização do saber que exigem a abertura do espaço público mediático. Fazendo um balanço do que se passou em Portugal, devemos concluir que esse projeto falhou. E são sobretudo os blogues de carácter político que exibem esse falhanço escandaloso. De um modo geral, a propaganda (à esquerda e à direita) sobrepôs-se à discussão política e arrastou tudo no seu movimento. Uma vez instaurado o regime da propaganda, a linguagem dominante passou a ser a do insulto e a regra é a da guerra civil permanente. A esperança iluminista soçobrou no obscurantismo. E, como de uma guerra civil se trata, os conflitos têm uma dimensão familiar e regional; e, como de propaganda se trata, tudo se reduz a táticas discursivas e planos de ocupação do terreno. 

Este jogo de guerra pressupõe uma intriga novelesca e códigos de elaboração que só os protagonistas e quem os acompanha exaustivamente (sem perder o fio à meada) podem perceber. Tudo se reduz a uma longa conversa entre eles. Tão codificada como as conversas de família. Em rigor, o que temos é uma conversa interminável, pois os blogues políticos tornaram-se ‘chats’, isto é, veículos da tagarelice e da parolice. E, no entanto, estão longe de ser inócuos e de ser insignificantes no que revelam. Organizados como uma estrutura mafiosa, eles fornecem hoje o modelo e os instrumentos, como é fácil perceber, da própria organização mafiosa do poder político que se foi edificando nas últimas duas décadas. Por ‘organização mafiosa’ não se entenda organização criminosa. É outra coisa: é uma organização que sobrevive através das construção de uma teia de relações ‘familiares’ e que faz da propaganda a arma principal do seu desígnio: a autoproteção que garante a sobrevivência. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 3.9.2011.


Arquivo / Archive