Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Couve | Cabbage


Public housing (1997) Frederick Wiseman excerpt from nostalgist/Supposed aura

« Procura o “drama” enquanto filma?
Frederick Wiseman – O primeiro pensamento é: estou a tentar fazer um filme. Um filme tem que ter sequência e estrutura dramática. Não tenho uma noção muito precisa do que constitui drama, mas aposto em conseguir episódios dramáticos. Doutra forma torna-se no filme de Andy Warhol sobre o Empire State Building. Portanto, sim, procuro o drama, apesar de não estar necessariamente à procura de pessoas a baterem umas na outras, disparando umas sobre as outras. Há imenso drama nas experiências comuns. Em Public housing, havia drama naquele velho a ser despejado do seu apartamento pela polícia. Havia imenso drama naquela velha na sua cozinha a cortar uma couve.
O que viu nessa cena da couve?
Frederick Wiseman – Vi uma mulher sozinha, num apartamento escassamente mobilado, que fora um dia independente. O modo como examinava e cortava a couve – havia um elemento de controlo. A paciência e a resistência sugeriram-me o modo como levava a sua vida. Quando falava ao telefone estava claramente desapontada por alguém que presumi fosse um membro da família não ir aparecer. Li aí toda uma história de relações familiares. Estava desapontada, mas aceitava-o tão estoicamente quanto examinava a couve. Achei isso dramático – não num sentido de shoot-’em-up, antes dramático num sentido de expressão do sentimento. »
« Do you look for "drama" while shooting?
Frederick Wiseman – The first thought: I'm trying to make a movie. A movie has to have dramatic sequence and structure. I don't have a very precise definition of what constitutes drama, but I'm gambling that I'm going to get dramatic episodes. Otherwise, it becomes Andy Warhol's movie on the Empire State Building. So, yes, I am looking for drama, though I'm not necessarily looking for people beating each other up, shooting each other. There's a lot of drama in ordinary experiences. In Public Housing, there was drama in that old man being evicted from his apartment by the police. There was a lot of drama in that old woman at her kitchen table peeling a cabbage.
What did you see in that cabbage scene?
Frederick Wiseman – I saw a woman alone, in a very sparsely furnished apartment, who once was independent. The way she examined and peeled the cabbage – there was an element of control. The patience and endurance suggested to me the way she led her life. When she talked on the phone, she was clearly disappointed that someone I took to be a member of her family was not going to show up. I read into that a whole history of family relationships. She was disappointed, but she accepted it as stoically as she'd examined the cabbage. I found that dramatic – not in a shoot-'em-up sense, but dramatic in a sense of the expression of feeling. »

Frederick Wiseman
, interviewed by Gerald Peary

[Este blogue não é elitista] | [This blog ain’t elitist]

Porque apesar da comunidade da arte séria ser pequena, não é exclusiva – não do modo como uma elite é exclusiva. É esotérica, mas o segredo está aberto a qualquer um.
(Stanley Cavell) 

«Toda a gente aceita que os críticos de literatura, artes plásticas ou de música (erudita) sejam “elitistas”. A um crítico de cinema – “não gostam de cinema comercial”, “gostam de filmes franceses”, ou pior, “iranianos”, ou pior ainda, “portugueses” – o “elitismo”, a divergência para com o grande público é vista como desqualificação.
Mas é claro que a crítica é elitista, e foi-o sempre. Os
Cahiers do cinéma são elitistas, a revista Cinéfilo era elitista, a Film comment é elitista, a crítica no Libération ou no Guardian, publicações generalistas, é elitista. No dia em que o gosto da crítica estiver sistematicamente alinhado com o gosto do grande público alguém está a mais (e não é o grande público).»
Luís Miguel Oliveira, «Os Óscares, o público, os críticos», Público-Ípsilon, 23.2.2007, p. 7

No interior de um debate, talvez não haja erro táctico mais grave do que deixar que outros definam o sentido dos termos com que pretendem caracterizar a nossa acção. Para mais, existem palavras que nos merecem particular repugnância. A nossa “sensibilidade política”, precisamente, não as pode tolerar. Solta-se então uma espécie de pudor agressivo, quando perante esta conjunção de circunstâncias nos vemos encurralados numa definição absolutamente insuportável que exige esclarecimento.
Tomemos a palavra “elitista”, que conheceu um assinalável transplante de sentido. De uma definição assente na prática da «discriminação na base da habilidade ou atributos», de âmbito eminentemente económico ou político, que não interessa aqui pormenorizar, passou a usar-se este termo de uma forma muito mais corriqueira e pejorativa, que reflecte simplesmente uma atitude, predominantemente cultural, que «não toma em conta as preferência de uma maioria» ou «um modo de pensar arrogante ou uma desconsideração pelo público geral não pertencente à elite» (Wikipedia). Na verdade, parece hoje que se pode e deve chamar de “elitista” a alguém que simplesmente não partilha os gostos da maioria suposta. Por exemplo, apesar da raridade, um crítico de cinema.
É pelo esquecimento daquele sentido “discriminatório” que precede o uso corrente que, quando um crítico de cinema como Luís Miguel Oliveira vem auto-reivindicar essa designação de “elitista” como inerente e até historicamente fundada, cobrindo inclusive a quase totalidade da crítica cinematográfica, tal me parece absolutamente estranho e sem a possibilidade de partilha. Não fazendo crítica, não a concebendo sequer como ainda possível, nem vislumbrando na quase totalidade das suas múltiplas instâncias actuais, nomeadamente na generalidade dos blogues (sendo Luís Miguel Oliveira precisamente uma das excepções), senão repetições, porventura necessárias, dos gestos cristalizados de uma forma crítica morta (as famosas estrelinhas e as enxurradas de adjectivos), não posso, no entanto, de deixar de me sentir abrangido pela designação. Não serei eu, não será este blogue todo ele também uma prática “discriminatória”, segregadora e excluente, não só de toda a “actualidade” cinematográfica, mas de uma maioria de público que requer o reconhecimento da sua não-singularidade?
Deixemos de lado a tendência infeliz de se procurar definir uma prática não pelo que efectivamente esta faz, ou seja, aquilo que constitui a sua afirmação, mas pelo que esta ao mesmo tempo supostamente negará. Não deverá a questão principal ser recolocada em torno das práticas efectivas de discriminação? A quem assentará melhor o sentido que “elitista” guarda de “discriminatório”, quando o sentido contemporâneo parece ser simplesmente o da proibição da dissenção? Será aos críticos, por estes eventualmente não gostarem de Babel, ou às outras instâncias comunicacionais emergentes que exigem esse reconhecimento como uma espécie de vínculo democrático, um unanimismo ou coincidência entre “grande público”e “entendidos”? Será, por exemplo, a Cinemateca “elitista”, por nas suas salas se conseguirem ver vários filmes pelo preço de um bilhete numa sala normal, para mais sem ter que aguentar com a publicidade? Há que exigir então àqueles que empregam o termo “elitista” que explicitem as práticas discriminatórias correntes, sociais ou culturais, que, segundo eles, acontecem quando aqueles que escrevem em jornais como críticos não apreciam um determinado filme.
Como contraponto da discriminação, se há algo que caracteriza explicitamente a posição relativa à “economia do cinema” por parte de cineastas habitualmente, e erradamente, tomados como “elitistas”, como Straub-Huillet ou Pedro Costa, por exemplo, é um constante e, estamos em crer, verdadeiro lamento por os seus filmes não chegarem a todos; ou seja, por a individualidade qualquer, que é exactamente o não-público que constitui uma pessoa qualquer, não chegar a ter condições para ver os seus filmes.
A posição de Luís Miguel Oliveira tem a atenuante do debate se fazer em torno de bases paupérrimas e inúmeros equívocos. Se os críticos de cinema não são particularmente sensíveis aos filmes com mensagem política (como diz Daniel Oliveira no mesmo Público) não é, em primeiro lugar, tanto pela “política” como pela própria evidência da “mensagem”. Não sente qualquer cinéfilo que se preze a urgência de fugir a sete pés de qualquer “mensagem” explícita? Há, aliás, no cemitério do cinema, uma taxa brutal de ocupação de equívocos cinematográficos (e, consequentemente, também políticos), obras inanes que transbordam explicitamente de mensagens, muitas vezes evidências discursivas de natureza política, que excedem ou contrariam a matéria cinematográfica, e que são hoje (não seriam já no seu tempo?) completamente insuportáveis.
Fica a pergunta: se tanto se preocupam com a “globalização”, porque preferem Babel a Ten de Kiarostami, entre tantos outros? Não será por o primeiro apenas confirmar o que já julgam saber sobre a dita? Quem quer retirar ao cinema espaço de pensamento?


[Adenda: Caro Luís, o único momento em que me sinto crítico é aquele em que disparo contra o meu próprio regimento. Na verdade, interessam-me as divergências próximas. Há algo de falso nas distantes; como se estivessem numa margem demasiado afastada para serem produtivas, exigindo muitas explicações (ou intermináveis discussões) para o pouco tempo que temos. Não há menosprezo, mas também não quero converter ninguém. E não imaginas o quanto me deixou feliz não teres malentendido o meu gesto. Algo que é deveras raro no nosso contexto, onde tantas vezes se confunde uma simples divergência com uma questão pessoal. E a nossa estará certamente concentrada na letra, e não no espírito da coisa. Uma letra, no entanto, que me pareceu irredutível; por isso tive de a explicitar. De resto, também assino por baixo o que escreveste naquele artigo. E acredito na tua e noutras hipóteses de aliança.
Cf. a explicação de Luís Miguel Oliveira.]
For while the community of serious art is small, it is not exclusive – not the way an elite is exclusive. It is esoteric, but the secret is open to anyone. 
(Stanley Cavell)

 «Everybody accepts that literary, fine arts or (classical) music critics are “elitists”. With film critics – “they do not like commercial cinema”, “they like French films”, or worse, “Iranian”, or even worse, “Portuguese” – “elitism”, the disagreement with larger audiences, is seen as a disqualification.
But of course criticism is elitist, and always was. The Cahiers of cinéma are elitist, Cinéfilo magazine was elitist, Film comment is elitist, the critics in Libération or in Guardian, larger audiences’ publications, are elitist. When the day comes that criticism taste is systematically aligned with the taste of larger audiences’, then someone’s in the way (and it isn’t larger audiences). »
Luís Miguel Oliveira, «The Oscars, the public, the critics»


Perhaps there isn't a worse tactical mistake, while in a dispute, than the one of letting others define the meaning of the terms by which they intend to describe our actions. Besides that, there are words which deserve our special repugnance. Our “political sensibility”, precisely, cannot tolerate them. A kind of aggressive reserve gets loose when in front of this
combined circumstances, when we see ourselves trapped in an absolutely unbearable definition, one that demands clarification. Let us take the word “elitist”, that has remarkably been transplanted of meaning. From a definition determined by the practice of «discrimination on the basis of ability or attributes», of an eminently economic or political kind, not worthy of mention in detail right now, the term started to be used in a much more current and pejorative way that reflects simply an attitude, predominantly cultural, that «doesn’t take into account the preferences of a majority» or « a general mindset of arrogance or disregard for the general non-elite public» (Wikipedia). In fact, it seems that today one can and must call “elitist” to someone that simply doesn’t share the supposed majority's tastes . For example, the case, although rare, of a film critic.
It’s through the oblivion of that “discriminatory” meaning that precedes the current use that, when a film critic as Luís Miguel Oliveira claims himself this “elitist” designation as inherent and even historically established, almost covering the whole of film criticism, such a thing seems to me absolutely strange and without possible connection. Not undertaking in critical writings myself, nor conceiving it as still possible, nor even glimpsing in the almost totality of its multiple contemporary instances, namely in blogs (being Luís Miguel Oliveira precisely one of the exceptions), nothing other than repetitions, perhaps necessary, of crystallized gestures from a deceased criticism feature (the famous stars attributed to a film and the monsoons of adjectives), I cannot, however, but feel enclosed by the designation. Aren’t I, isn’t this blog itself also a “discriminatory”, segregative and excluding practice, not only of all the “present-day cinema”, but also of a majority of audience who requires the recognition of its not-singularity?
Let’s leave aside the unfortunate tendency of trying to define a practice, not for what it actually produces, i.e., what constitutes its affirmation, but for what it supposedly denies at the same time. Shouldn’t the ultimate issue be readdressed on the effective practices of discrimination? To whom applies the discriminatory meaning that “elitist” still holds, when its current meaning seems to be simply one of prohibition of dissent? To the critics, for conceivably not liking Babel, or to the other emergent communicational instances that demand the recognition as a kind of democratic bond, a unanimous or greater coincidence between “larger audiences” and “experts”? Is Cinemateca, for instance, “elitist”, for making it possible to see a number of films for the price of a normal screen ticket, without even having to put up with advertising? One has to demand those who use the “elitist” term to
specify then the current discriminatory practices, social or cultural, that, according to them, happen when those who write in newspapers as critics do not appreciate a certain film.
As a counterpoint to the discrimination, if there is something that explicitly portrays the position of directors on the “economy of cinema” who are usually and wrongfully taken to be “elitists”, like Straub-Huillet or Pedro Costa, for instance, is a constant and, we believe, true lament for their films not coming to all people; i.e., that whatever individual, exactly the non-audience who constitutes any given person, does not arrive at achieving the conditions in order to see their films.
Luís Miguel Oliveira’s stance has the extenuating circumstance that the dispute is shaped around a pitiable foundation and innumerable misunderstandings. If film critics are not especially sensible to films with political messages (as Daniel Oliveira puts it, in the same Público) it’s not, primarily, so much because of “politics” itself, and a lot more due to the “message’s” presence. Doesn’t all respectable cinéfils feel the urge to run away from any explicit “message”? There is, by the way, at cinema’s cemetery, a gross occupation rate of cinematographic miscarriages (and, consequently, political miscarriages), inane works that overflow explicitly with messages, often discursive presences of political nature, that exceed or counter the cinematographic matter, and are today (weren't already at their time?) completely insupportable.
Let us leave a question: if so many are worried about “globalisation”, why do they prefer Babel to Ten by Kiarostami, among many others? Is it not because the former only confirms what they already think they know about globalisation? Who wants to confiscate cinema’s space of thought?


[Addenda: Dear Luís, the only time I feel like a critic is when I shoot at my own regiment. Actually, I’m interested in close disagreements. There’s something false about the distant ones; as if they were in a margin too far away to be productive, demanding many explanations (or ceaseless discussions) for the little time we have. There’s no disdain here, but I’m also not into converting anybody. And you can’t imagine how it made me happy that you didn’t misunderstood my gesture. Something that is indeed very rare in our context, where so many times one confounds a simple disagreement with a personal problem. And ours is certainly concentrated on the letter, and not on the spirit of it. A letter, however, that seemed irreducible to me; I had therefore to make it explicit. After all, I make your article words mine as well. And I believe in yours and other hypothesis of alliance.
Cf. Luís Miguel Oliveira's explanation.]

Omissão, não adição | Omission, not addition

«O modo habitual nos filmes é o de mostrar – e dizer – algo. Mas o meu objectivo é criar um cinema em que vejamos quanto podemos fazer sem o mostrar realmente, ou sem o dizer. Quanto uso podemos fazer da imaginação do espectador. Tem de se ser capaz de imaginar o que está a acontecer para lá do que é mostrado fisicamente, porque na verdade se está a mostrar apenas um canto da realidade. É uma boa ideia as imagens e a acção guiarem-nos para algo que está fora da estória sem o mostrarem realmente. Acredito no método de Bresson de criar através da omissão, não através da adição.»
« The usual way in film is to show — and to say — something. But my aim is to create a cinema in which we see how much we can do without actually showing, or saying, it. How much use we can make of the imagination of the spectator. You must be able to imagine what is going on beyond what is physically shown, because you are actually only showing a corner of reality. It is a good idea when pictures and action guide you to something which is outside the story without actually showing it. I believe in Bresson’s method of creation through omission, not through addition.»
Abbas Kiarostami, in bright lights

Opiniões, quem as não tem?

«[O] que a opinião propõe é uma certa relação entre uma percepção exterior como estado de um sujeito e uma afecção interior como passagem de um estado a outro [...]. Destacamos uma qualidade supostamente comum a vários objectos que nos surgem, e uma afecção supostamente comum a vários sujeitos que a experimentam e apreendem connosco essa qualidade. A opinião é a regra de correspondência de uma para outra, é uma função ou uma proposição cujos argumentos são percepções ou afecções, e nesse sentido função do vivido. Por exemplo, nós discernimos uma qualidade perceptiva comum aos gatos, ou aos cães, e um certo sentimento que nos faz amar, ou odiar, uns em vez dos outros: para um grupo de objectos, podem-se extrair muitas qualidades diversas, e formar muitos grupos de sujeitos muito diferentes, atractivos ou repulsivos (“sociedade” dos que gostam de gatos, ou dos que os detestam...) de tal modo que as opiniões são essencialmente o objecto de uma luta ou de uma troca. [...]
A doxa é um tipo de proposição que se apresenta da seguinte maneira: dada uma situação vivida perceptivo-afectiva (por exemplo, traz-se queijo para a mesa do banquete), alguém extrai dele uma quantidade pura (por exemplo, odor fétido); mas ao mesmo tempo que abstrai a qualidade, ele próprio se identifica com um sujeito genérico que experimenta uma afecção comum (a sociedade dos que detestam queijo – rivalizando, a este título, com os que gostam de queijo, a maior parte das vezes em função de uma outra qualidade). A “discussão” incide pois sobre a escolha da qualidade perceptiva abstracta, e sobre o poder do sujeito genérico afectado. Por exemplo, detestar o queijo será privar-se de ser um bon vivant? Mas bon vivant será uma afecção genericamente invejável? Não será necessário dizer que os que gostam de queijo, e todos os bon vivant, fedem, eles próprios? A não ser que sejam os inimigos do queijo que fedem. É como a história que Hegel contava, a vendedeira a quem alguém disse: “Os seus ovos estão podres”, e que responde: “Podre está você, e a sua mãe, e a sua avó”: a opinião é um pensamento abstracto e a injúria desempenha um papel eficaz nesta abstracção, porque a opinião exprime as funções gerais de estados particulares. Ela retira da percepção uma qualidade abstracta e da afecção um poder geral: qualquer opinião é desde logo política neste sentido. É por isso que tantas discussões podem ser enunciadas assim: “eu, enquanto homem, penso que todas as mulheres são infiéis”, “eu, enquanto mulher, penso que todos os homens são mentirosos”.
A opinião é um pensamento que se molda intimamente pela forma da recognição: recognição de uma qualidade na percepção (contemplação), recognição de um grupo na afecção (reflexão), recognição de um rival na possibilidade de outros grupos e de outras qualidades (comunicação). Ela dá à recognição do verdadeiro uma extensão e critérios que são por natureza os de uma “ortodoxia”: será verdadeira uma opinião que coincide com a do grupo, ao qual que se pertence exprimindo-a. Isso vê-se bem em certos concursos: tem de se dizer a opinião pessoal, mas “ganha-se” (disse-se de um modo verdadeiro) se se disse a mesma coisa que a maioria dos que participam do concurso. A opinião, na sua essência, é vontade de maioria, e fala desde logo em nome de uma maioria. [...] o reinado da opinião: esta triunfa quando a qualidade considerada deixa de ser a condição de constituição de um grupo, mas não é mais do que a imagem ou a “marca” do grupo constituído que determina ele próprio o modelo perceptivo e afectivo, a qualidade e a afecção que cada um deve adquirir.»

Gilles Deleuze, O que é a filosofia?, trad. Margarida Barahona e António Guerreiro, Presença, Lisboa, 1992, pp. 128-130.

Quem pensa em abstracto? | Who thinks abstractly?

«“Ó velha, os seus ovos estão podres”, diz a criada à vendedeira da praça. “Quê, retorque ela, os meus ovos, podres? Podre está você! É você que vai apontar alguma coisa aos meus ovos? Logo você! Não foi o seu pai comido pelos piolhos lá na estrada? Não fugiu a sua mãe com os franceses? E a sua avó, não morreu ela no hospício? Vá mas é comprar uma camisa interior com o seu lenço encastrado. Sabemos bem donde vem esse lenço, e o seu chapéu! Se não fosse pelos oficiais, muitos não estariam tão anémicos. E se as madames se ocupassem um pouco de suas casas, muitos estariam por trás das grades. Vá mas é coser os buracos das meias.” — Em suma, não lhe perdoa nada. Pensa em abstracto; faz desaparecer a outra mulher por detrás do seu lenço, do seu chapéu, da sua camisa e todo este terramoto, até por detrás dos dedos ou doutras partes do corpo, e mesmo o seu pai e toda a tribo, pelo crime apenas de ter achado os ovos podres. Tudo nela ganha a cor dos ovos podres...»
«Old woman, your eggs are rotten! the maid says to the market woman. What? she replies, my eggs rotten? You may be rotten! You say that about my eggs? You? Did not lice eat your father on the highways? Didn't your mother run away with the French, and didn't your grandmother die in a public hospital? Let her get a whole shirt instead of that flimsy scarf; we know well where she got that scarf and her hats: if it were not for those officers, many wouldn't be decked out like that these days, and if their ladyships paid more attention to their households, many would be in jail right now. Let her mend the holes in her stockings! — In brief, she does not leave one whole thread on her. She thinks abstractly and subsumes the other woman — scarf, hat, shirt, etc., as well as her fingers and other parts of her, and her father and whole family, too — solely under the crime that she has found the eggs rotten. Everything about her is colored through and through by these rotten eggs...»
Hegel, Wer denkt abstrakt

Estranho, verdadeiro, Herzog | Weird, true, Herzog

«Offscreen: De volta às imagens. Nos seus filmes existem muitas imagens ou momentos que, apesar de às vezes muito simples, ficam connosco depois. Queríamos mencionar alguns deles. No final do documentário Na terra do silêncio e da escuridão, o homem cego, surdo e mudo afasta-se e a sua mãe diz: "Lembro-me que um dia pôs a mão sobre a neve e disse a palavra 'neve'".
Werner Herzog: E foi a última palavra que alguma vez disse!
Offscreen: E isso ainda ressoa. Parece dizer muito sobre o seu trabalho em geral e sobre uma certa relação ao mundo através dos nossos sentidos...
Werner Herzog: Sim, e o que se segue em particular, quando deixa o grupo vai de encontro a uma árvore, começa a tocar a árvore e tenta perceber os ramos dela. É o fim do filme. Quando o narramos assim, é um homem que é surdo e cego a tocar uma árvore, é sem consequência, não tem poder. Mas, num filme que trabalha quase uma hora e meia em direcção àquela imagem, sensualiza-a, de súbito torna-se algo muito muito grande. E é misterioso como o cinema funciona em relação a isto. É a colocação de um plano que o torna tão importante e tão altamente significante.
«Offscreen: Coming back to images. In your films there are many images or moments, although sometimes very simple, that stay with us afterwards. We wanted to mention a few. At the end of the documentary Land of Silence and Darkness, the blind, deaf and mute man is walking away and his mother says: “One day I remember he put his hand in the snow and said the word ‘snow’”.
Werner Herzog: And that was the last word he ever said!
Offscreen: And that still resonates. It seems to say a lot about your work in general and a certain relationship to the world through our senses…
Werner Herzog: Yes and what follows in particular, when he breaks away from the group he runs into a tree, starts to touch the tree and attempts to figure out it’s branches. That’s the end of the film. When you narrate it like this, it’s a man who is deaf and blind and touching a tree, it is of no consequence, it has no power. But, in a film that works almost one and half-hours towards that image, sensualizes it, all of a sudden it becomes something very very big. And it is mysterious how cinema works in that respect. It is the placement of a shot that makes it so important, and makes it highly significant.


Land des Schweigens und der Dunkelheit (1971)

É como o fim de Stroszek, por exemplo, com a galinha dançante. Mas, na altura, a equipa técnica ou quase todos nas filmagens odiaram o filme de tal forma que por fim o director de fotografia se recusou a filmá-lo (ao plano) e disse: "Vamos almoçar agora, se queres filmar essa merda." E eu disse: "Vou filmar esta merda, claro". E tentei dizer-lhes. "Não percebem que há algo muito muito grande aqui?" E ninguém o via. Era mesmo grande. Ainda é uma das melhores coisas que filmei na minha vida.
Offscreen: É um dos finais mais bonitos de um filme...
Werner Herzog: Até a equipa que eu paguei e que me era leal entrou em greve.
Offscreen: Estava a cena no guião inicialmente?
Werner Herzog: Não me lembro. Acho que estava no guião. Sim! Acho mesmo que estava no guião. Mas não tenho a certeza absoluta, devia dar uma vista de olhos no guião.
Offscreen: E uma coisa sobre essa cena é uma rara ocorrência de montagem intercalada de diferentes coisas que ocorrem simultaneamente, de Bruno nas montanhas aos animais (galinhas, patos, coelhos) dançando e tocando música e para o camião a arder andando aos círculos lá fora. Normalmente, as suas cenas são segmentos bastante largos, passados num local, numa situação, frequentemente tomadas longas...
Werner Herzog: Sim, mas os animais dançam ainda algum tempo, portanto agarramo-nos a isso. O problema era que as galinhas não dançavam mais do que 15 segundos e depois retiravam-se. Colocamo-las em treino especial para que dançassem tanto quanto pudessem. Quando se punha uma moeda na máquina, a música tocava e a galinha dançava. Como recompensa recebia algum milho. Estavam acostumadas a dançar entre 3 a 5 segundos. Mantive-as em treino por uns par de meses para que dançassem tanto quanto pudessem. Mas só dançavam durante 15 segundos. O problema é que não me conseguia safar com um final que fosse um plano de 15 segundos. Tinha bastantes planos desses e tive que os juntar. Ficava sempre um jump cut. Portanto, também havia razões técnicas por trás disso. Muitas vezes não é uma ideologia ou algo parecido que está por trás de alguma coisa. »
Stroszek (1977) from esenbeh

It’s like the end of Stroszek, for example, with the dancing chicken. But then, the technical crew or almost everyone on location hated the film so much that ultimately the cinematographer refused to shoot it (the shot) and said: “We are going for lunch now if you want to film that shit.” And I said: “I’m gonna film that shit, sure.” And I tried to tell them. “Don’t you see there’s something very very big here?” And nobody saw it. It was really big. And it’s still one of the best things I ever filmed in my life.
Offscreen: That’s one of the most beautiful endings of a film…
Werner Herzog: Even the crew that I paid and who were loyal to me went on strike.
Offscreen: Was that scene scripted initially?
Werner Herzog: I do not remember. I believe it was scripted. Yes! I do believe it was scripted. But I’m not absolutely sure, I should have a look at the screenplay.
Offscreen: And one thing about that scene, it is a rare occurrence of inter-cutting different things happening simultaneously, from Bruno on the mountain to the animals (chickens, ducks, rabbits) dancing and playing music and to the truck on fire making circles outside. Usually your scenes are rather large segments, set in one space, one situation, often shot in long takes....
Werner Herzog: Yes but the animals dance for quite a while so you hang on to that. The problem was that the chickens wouldn’t dance for more than 15 seconds and then they would retreat. We had them in special training for dancing as long as they could. When you fed a quarter into the machine, the music would play and the chicken would dance. And as a reward it would get some corn. They were accustomed to dancing for 3 to 5 seconds. Now I held them in training for a couple of months to dance as long as they could. But they would only dance for 15 seconds. The problem is, I couldn’t get away with an ending that was a 15 second shot. I had quite a few of those shots and I had to add them together. There was always a jump cut. So there were technical reasons behind it as well. Very often it’s not an ideology or so that’s behind something. »

Werner Herzog, «The Trail of Werner Herzog: An Interview» by Nicolas Renaud, André Habib, Simon Galiero, Offscreen, 2003


Stroszek (1977) Werner Herzog
Sáb, dia 3, 18h30 - Malaposta, Odivelas

Imensamente incompreensivas | Immensely uncomprehending

«À pedra não coube partilhar a respiração. E passa bem sem ela. Mais que outra coisa, é a gravitação que diz respeito à pedra. Quanto a ti, é dos “outros” que precisas. Uma quantidade de outros. Considera consequentemente, com discriminação os que contigo estão na terra, tratando as rochas de uma certa maneira, as plantas, a madeira, os vermes, os micróbios, de outra, talqualmente os homens e os animais a quem dispensarás diverso tratamento, sem jamais te confundires com uns e outros, sobretudo com essas criaturas a quem a palavra foi dada principalmente, ao que parece, para se misturarem no maior número no meio do qual, julgando compreender e ser compreendidas, ainda que custosamente compreendidas e imensamente incompreensivas, sentem-se à vontade, joviais, dilatadas.»
Henri Michaux, Poteaux d'angle, trad. Natália Correia

«The stone did not receive breathing as its share. It can do without. It is mainly gravitation it has to deal with. As for you, it is much more the “others” you will have to deal with, many others. Consider then your companions here with discrimination, treating the rocks in one way, the woods, plants, vermin, microbes in another, animals and men in yet another, without ever mistaking yourself for either of them, especially for those creatures to which the word seems to have been given mainly so they could be able to meddle in the greatest number, in which, trusting they comprehend and are comprehended, although barely comprehended and immensely uncompreending, they feel at ease, merry, inflated.»

Os pais terríveis, ou a continuidade do massacre | The terrible parents, or the continuity of the slaughter


Certos filmes apresentam-se por vezes bastante dirigidos, como que pedindo que nos concentremos num aspecto específico da sua expressão, que pode ser uma espécie de tema ou um qualquer elemento formal. Há então alguma felicidade quando acontece a intromissão inesperada de um outro elemento menor que nos cativa, e que na sensação que faz perdurar nos permite pensar um pouco noutra direcção. (Por exemplo, em Miami vice de Michael Mann, a contrario de alguma parafernália tecno-cinematográfica, um pequeno gesto da face de Gong Li numa cena de amor no duche.) Tratam-se de deslocamentos que, no entanto, não aliviam necessariamente a nossa experiência cinematográfica, nem sequer nos garantem menor perturbação. Um aterrador menos novo pode ressurgir, por exemplo, de onde se espera apaziguamento, emergindo por trás de um terror mais explícito e fazendo deslocar toda a percepção do filme. Benny’s video (1992) de Michael Haneke posiciona-se explicitamente e serve muitas vezes uma reflexão em torno da relação próxima às novas imagens e aos seus eventuais efeitos nefastos, enfim, à chamada “violência das imagens”. De resto, é bem complexo o trabalho feito dentro do filme sobre esta matéria. Mas no meio de todo o terrível que desse aspecto decorre, e que inclui pelo menos uma morte “gratuita” [talvez nos filmes mais conseguidos não seja preciso morrer tanta gente para que o que é morrer se faça sentir], o mais aterrador acaba por se instalar num elemento aparentemente secundário: a reacção dos pais ao assassínio cometido mediante as imagens pelo filho adolescente. Irrompem assim de repente, trazidos naquela reacção abjecta, antigos horrores bem conhecidos – o nazismo e Auschwitz – que se julgam por vezes bem arrumados nas gavetas do arrependimento. Não nos parece então nada negligenciável que a expressão cinematográfica dos novos horrores convoque os passados, que deles faça nova luz e prova da terrível continuidade (histórica, intergeracional e mesmo interespécies) do massacre.

Certain films sometimes present themselves quite focussed, as asking us to concentrate on a specific aspect of its expression, one that can be a kind of subject or a given formal element. So, there’s some happiness in the unexpected intromission of another smaller element that captivates us, and that, in the sensation that it prolongs, allows us to think a little in another direction. (For instance, in Michael Mann’s Miami vice, a contrario of some tecno-cinematographic paraphernalia, a small gesture in Gong Li’s face at a love scene in the shower.) Those displacements, however, do not necessarily alleviate our cinematographic experience, or even guarantee a disturbance of minor intensity. A not so new terror can resurge, for example, from where one would expect appeasement, emerging from behind of a more explicit terror and displacing all the film’s perception. Michael Haneke’s Benny’s video (1992) explicitly locates itself, and many times serves as a reflection on the close relation to new images and its eventual threatening effects, that is, to the so-called “violence of the images”. In fact, the work done inside the film on this matter is quite complex. But in the middle of all the terrible that aspect presents, which includes at least a “needless” death [perhaps in accomplished films it isn’t so necessary that many people die in order to convey what is to die], the most terrifying finishes by installing itself trough an apparently secondary element: the parents’ reaction to the assassination committed by the means of images by their adolescent son. It then burst suddenly, brought by that abject reaction, old and well-known horrors – Nazism and Auschwitz – sometimes thought to be taken care of while closed in repentance drawers. Then, it doesn’t seem to us that one can neglect that the cinematographic expression of new horrors convoke past ones, shedding new light on them and proving the terrible (historical, intergenerational and even interspecies) continuity of the slaughter.


Benny’s video
(1992) de Michael Haneke
6ª, dia 16, 19h30 - Cinemateca

Quando o censor não percebe | When the censor does not understand

«Dois dos meus filmes escaparam às tesouras afiadas da censura, provavelmente porque os censores não perceberam bem o que neles deviam censurar! Um filme é bom, parece-me, quando o censor não percebe o que deve ser censurado. Se se faz um filme do qual um censor corta algumas partes, então essas partes deveriam ter sido cortadas, dado que ele as percebeu!»
«Two films of mine have escaped the sharp censorship scissors, probably because the censors did not quite understand what they should censor in them! A movie is good, I think, when the censor does not understand what should be censored. If a film is made from which a censor cuts some parts, then those parts should have been cut, because he understood them!»
Abbas Kiarostami, in bright lights

O verdadeiramente inadmissível | The truly inadmissible


Body rice (2006) Hugo Vieira da Silva excerto | excerpt

Das vezes que vi Body rice, precisamente a meio de um dos planos mais bonitos e complexos, senti um súbito incómodo, primeiro dentro de mim, depois também nas emanações doutros espectadores. Algo como uma irritação crescente, irredutível e profundamente estúpida, perante um elemento demasiado simples e fortuito da cena. Na verdade, talvez quase nem se repare. Vejamos [-00:49]. Uma mulher toma um duche ao ar livre depois de um banho de lama. No entanto, seja por desatenção ou desleixo, deixa todo um flanco do seu corpo por passar completamente por água. Fica ainda com lama. Na nossa cabeça, de boca fechada, começa alguém a gritar, irritado com a personagem: «Hei, estás toda suja! Volta para o duche. Olha, agora sujaste o casaco todo! Parva!” No fundo, desesperamos pela falta em que incorre. Lama. Quase perdemos o pé. Tal pequenez tornada enorme afoga-nos. São destas coisinhas perigosas que acontecem nos filmes. Felizmente, para a incidência das doenças nervosas já de si frequentes nas salas cinéfilas, são raras. Estou em crer que só os filmes muito maus, ou os muito bons, aí está, nos dão acesso a este tipo de experiências. Ou seja, dar-nos cabo dos nervos sem, digamos, a correlativa experiência estética exaltante. É mesmo só paranóia à solta, sem qualquer grandeza. Podemos até brincar um pouco com a situação, mas não há nada a fazer. Aquela coisa pouca configura para nós o inadmissível. É o verdadeiramente inadmissível, mesmo ou sobretudo no meio de outras tantas mortes ou amores tremendamente inverosímeis.
(Enfim, presumo que tenha sido uma experiência semelhante a que tenha sofrido Cristina Peres por causa de um prato de ovos em Ossos, lá no longínquo ano de 1997, num texto citado abaixo, e a que Miguel Gomes, na altura crítico de cinema do Público, respondia de forma severa... Espero escrever sobre Body rice em breve.)
The times I’ve seen Body rice, precisely at the middle of one of its most beautiful and complex shots, I felt a sudden disturb, first inside me, then also in other spectators emanations. Something like an increasing, irreducible and deeply stupid irritation, in front of a simple and fortuitous element of the scene. Perhaps even hardly noticeable. Let’s see [-00:49]. A woman takes an outdoors shower after a mud bath. However, either because of carelessness or negligence, she leaves a flank of her body not completely watered. She’s still with mud. In our head, with our mouth shut, somebody starts to cry out, irritated with the character: “Hey, you’re all dirty! Get back in the shower. Now look, you got mud all over your coat! Dumb!” Deep down, we’re in despair for her fault. Mud. Losing it. Such a small thing turned enormous is drowning us. These tiny dangerous things happen in films. Happily, regarding the incidence of nervous illnesses already frequent in cinefilic movie theatres, it's rare. I believe that only in really bad movies, or really good ones, that’s the point, are we given access to this kind of experiences. That is, breaking our nerves without, lets say, the correlative exultant aesthetic experience. It’s just merely paranoia on the loose, without any greatness. We can even try to joke a little with the situation, but we’re hands tied. That slight thing configures for us the inadmissible. It’s the truly inadmissible, even or specially in the middle of all those other tremendously unlikely deaths or love affairs.
(Well, I presume that was a similar case Cristina Peres experienced due to a plate of eggs in Bones, back in the distant year of 1997, in a text quoted below, one that Miguel Gomes, who was then a critic for the newspaper Público, responded with severity... Hope I can write on Body rice real soon.)

O meu reino por um prato de/com ovos | My kingdom for a plate of/with eggs


Ossos (1997) Pedro Costa excerto | excerpt

« Senti a dificuldade de, perante um objecto virtuoso com uma maturidade técnica cuja luz e som dão uma noção de coerência narrativa, compreender as incongruências que Ossos tem e ninguém mencionou. Se há tanta verdade neste olhar sobre o bairro e as gentes do bairro, se se recorre à sugestão de modelos neo-realistas para consumo reservado às más consciências íntimas do potencial público burguês, se se opta por contornos de personagens cuja essência apenas retrata uma dor pairante, que possibilidade de recuo tenho eu enquanto espectadora para, sem uma experiência semelhante à de Pedro Costa, supor e adivinhar o resto da vida daquelas pessoas?
Não acredito, por exemplo, que tantas tentativas de suicídio por gaseamento não acabem por resultar. Não acredito que um personagem esfomeado que revolve caixotes à procura de restos de comida e diz já não comer há três dias abandone um prato de ovos oferecido numa casa cuja estratégia é ilustrar “o outro lado da ordem” [...]»
Cristina Peres, «Ossos difíceis», Expresso-Cartaz, 6.12.1997

«[...] Cristina Peres: a) embora não tenha a vivência dos habitantes do bairro das Fontainhas, parece ter uma noção exacta do que ela poderá ser – em relação ao qual o filme de Pedro Costa não fará justiça; b) enquanto espectadora do cinema nacional tem um “ideal de identificação” que se rege por critérios universais e que a levam a invocar valores lógicos de “verdade” e “falso” para aquilo que vê na tela; c) terá do espectáculo de dança uma concepção diferente daquela que tem do espectáculo cinematográfico – para o primeiro aceita as convenções da “representação”, para o segundo exige um respeito (documental, sociológico) àquilo que toma por realidade; d) alinha pela bitola do sociologicamente correcto (ironicamente, essa é uma das acusações que faz a Ossos), denunciando uma suposta inexactidão em de uma ordem que não quer ver profanada.
Tudo junto, e no caso, dá o seguinte: Cristina Peres está desapontada porque acha que um filme passado nas Fontainhas e protagonizado pelos seus habitantes deveria reflectir a imagem que (se) tem dos pobrezinhos.
Pode-se contrapor algo às “incoerências” que Cristina Peres aponta à narrativa de Ossos. Todas as personagens guardam um lado secreto (aquele que Cristina Peres lastima não poder aceder) onde se equaciona um orgulho que está para além de qualquer prato com ovos. [...] Mas mais importante será refutar-lhe o ponto de partida: não se pode estabelecer como limites de um filme (quer se passe nas Fontainhas ou no Palácio de Belém) aquilo que se toma por “correcto”. Isso é amputar-lhe um olhar – que não será, também à partida, mais ou menos interessante; será diferente.
Cristina Peres, que escreve sobre artes performativas, tem a obrigação de saber que a verdade de uma “performance” (uma coreografia, uma encenação teatral ou a “mise-en-scène” cinematográfica) está permanentemente auto-contida.
[...] foram os próprios promotores de Ossos que o desviaram para uma zona de mal-entendidos. E com isso criaram expectativas que o objecto não pode satisfazer.
Quem faz passar com oportunismo o apelo sociológico no “trailer” televisivo, quem celebra a sua eficácia (em detrimento do próprio filme) ou quem promove discursos (urgentes mas obviamente extra-cinematográficos) para caucionar um objecto que lhes é transversal não terá legitimidade moral para vir agora defender um filme que tão corajosamente recusa essas premissas.
Aparentemente vai mesmo ter de passar algum tempo até que Ossos possa ser visto sem o recurso a filtros teóricos ou sociológicos. Entretanto há que respeitar os trâmites dos rituais de exumação e deixar que a carne apodreça para finalmente resgatar à terra a ossada. Quer dizer, esperar que o vínculo de actualidade seja cortado para que só possamos ver o cinema. Nessa altura – nesse tempo – seremos seguramente reenviados para o seu intemporal interior. »
Miguel Gomes, «Da exumação dos ossos», Público-Artes & Ócios, 12.12.1997
«Facing a virtuoso object with a technical maturity whose light and sound offer a notion of narrative coherence, I felt difficult to understand the incongruencies Bones has and that nobody mentioned. If there is so much truth in this gaze of [Fontainhas] district and the people there, if it recurs to the suggestion of neo-realists models for private consumption of the bad self-consciences of the potential bourgeois public, if it opts for character outlines whose essence only portrays a hovering pain, what possibility of detachment have I as a spectator for, without a similar experience to the one of Pedro Costa, to suppose and to guess on the remaining portion of the lives of those people?
I do not believe, for instance, that so many gas suicide attempts do not eventually result. I do not believe that a starving character who scatters trash bins in search of food leftovers and says he doesn’t eat for three days abandons a plate of eggs offered in a house whose strategy is to illustrate “the other side of order” [...]”
Cristina Peres, «Difficult bones»

«[...] Cristina Peres: a) despite not having the experience of Fontainhas district inhabitants, seems to have a exact notion of what it could be –relating to which Pedro Costa’s film wouldn’t make justice; b) as a Portuguese cinema spectator, she has an “identification ideal” mesured by universal criteria and that brings her to invoke “truth” or “false” logical values for what sees on the screen; c) she might have a different conception of a dance spectacle from the one she has of the cinematographic spectacle – for the first she accepts the “representation” conventions, for the second she requests a (documentary, sociological) respect to which she takes for reality; d) she aligns by the sociological correct type (ironically, that’s one of the accusations she makes at Bones), denouncing a supposed inaccuracy of an order that she doesn’t want to see profaned.
In this case, all put together, it amounts to this: Cristina Peres is disappointed because she thinks a film happening at Fontainhas and featured by its inhabitants should reflect the image she (one) has of poor people.
One could contend something to the “incoherencies” Cristina Peres points out in Bones narrative. All the characters maintain a secret side (the one Cristina Peres laments not being able to accede) where a pride beyond any plate with eggs is being attempted. [...] But more important is to refute her starting point: one cannot establish as limits to a film (featured either at the Fontainhas or at Belém’s Presidential Palace) what one takes as “correct”. That is to amputate it of a gaze – that doesn’t have to be, firsthand, more or less interesting; just different.
Cristina Peres, who writes on performance arts, has the obligation of knowing that the truth of a “performance” (a choreography, a theatre staging or a cinematographic “mise-en-scène”) is permanently self-contained.
[...] the promoters of Bones themselves deviated it to an area of misunderstandings. And with that they created expectations the object cannot satisfy.
He who with opportunism conveys a sociological appeal at the television trailer, who celebrates its effectiveness (in detriment of the film itself) or promotes discourses (urgent but obviously extra-cinematographic) to vouch an object that is transversal to them, will not have the moral legitimacy to come and defend a film that so courageously refuses those premises.
Apparently it will be necessary some time until Bones can be seen without resource to theoretical or sociological filters. Meanwhile one has to respect the proceedings of exhumation rituals and leave the meat to root, so to finally rescue the skeleton from the dirt. That is, to wait for the bond with actuality to be cut so that one can see only the cinema. Then – at that time – surely we’ll be returned to its timeless interior.»
Miguel Gomes, «On bone exhumation»

Imagens que dão que pensar | Images that make you think

« Você [Daney] questiona-se porque escrevem tantas pessoas sobre cinema. Esta questão vale para si como para mim. Parece-me que é porque o cinema comporta muitas ideias. Aquilo a que chamo Ideias são imagens que dão que pensar. De um arte para outra, a natureza das imagens varia e é inseparável das técnicas: cores e linhas para a pintura, sons para a música, descrições verbais para o romance, imagens-movimento para o cinema, etc. E, em cada caso, os pensamentos não são separáveis das imagens, são completamente imanentes às imagens. Não existem pensamentos abstractos que se realizariam indiferentemente em tal ou tal imagem, mas apenas pensamentos concretos que existem apenas através dessas imagens e seus meios. Resgatar as imagens cinematográficas é então extrair pensamentos sem os abstrair, apreendê-los na sua relação interior com as imagens-movimento. É por essa razão que escrevemos “sobre” o cinema. Os grandes autores de cinema são pensadores, neste sentido, tanto quanto os pintores, os músicos, os romancistas ou os filósofos (a filosofia não tem nenhum privilégio).
Dão-se encontros entre o cinema e as outras artes; podem chegar a pensamentos semelhantes. Mas não é porque haver um pensamento abstracto indiferente aos seus modos de expressão. É porque as imagens e os meios de expressão podem criar um pensamento que se repete ou se retoma de uma arte para outra, a cada vez autónomo e completo. [...] Aquilo a que chamo um pensamento não é o conteúdo da questão, que pode ser abstracta e banal (para onde vamos, de onde vimos?), é antes esta ascensão formal da situação a uma questão escondida, essa metamorfose dos dados. [...]
O estado da crítica cinematográfica [em 1983] parece bastante forte nos livros e nas revistas. Há muitos livros belos. Talvez seja devido ao carácter recente e rápido do cinema: recência e velocidade. No cinema ainda não ganhámos o hábito de separar o clássico (aquilo que se fez, e que será objecto de uma crítica universitária demasiado segura de si mesma) e o moderno (o que se faz agora e que será julgado de cima). Esta disjunção, entre uma arte e a sua história, é sempre ruinosa. Se acontecer no cinema, será por sua vez ruinosa. De momento, há toda esta tarefa que está a ser encetada, a pesquisa das Ideias cinematográficas. É, ao mesmo tempo, a pesquisa mais interior ao cinema e uma pesquisa comparada, porque ela funda uma comparação com a pintura, a música, a filosofia e mesmo a ciência.

Gilles Deleuze
, «Cinéma-1, première» (1983),
Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995, Minuit, Paris, pp. 194-196
« You [Daney] ask yourself why so many people write about cinema. That’s a valid question for you but also for me. It think its because cinema contains a lot of ideas. What I call Ideas are images that make you think. From an art to another, the nature of images varies and is inseparable from techniques: colors and lines for painting, sounds for music, verbal depictions for novels, image-movement for cinema, etc. And in each case, thoughts are not separable from images; they are completely immanent to images. There are no abstract thoughts that would indifferently accomplish themselves in such or such image, just concrete thoughts that exist only through these images and its means. To release the cinematographic images is then to extract thoughts without abstracting them, to apprehend them in their interior rapport with the image-movement. This is the reason why we write “on” cinema. In this sense, the great cinema authors are thinkers, just as painters, musicians, novelists or philosophers are (philosophy doesn’t have any privilege).
There are encounters between cinema and other arts; they can arrive at similar thoughts. But this is never because there would be an abstract thought indifferent to its means of expression. It’s because images and means of expression can create a thought that repeats itself or is recaptured from an art to another, autonomous and complete at each time. [...] What I call a thought is not the content of a question, that can be abstract and banal (where are we going, where did we came from?), it’s the formal restaging from the situation to a hidden question, this metamorphosis of facts. [...]
The state of cinematographic critic [in 1983] seems rather strong in books and magazines. There are many beautiful books. That’s perhaps because of cinema’s recent and fast nature: recency and speed. In cinema we’re not yet accustomed to separating the classic (what was made and will be the object of a too self-assured academic critic) and the modern (what’s being done and that will be judged with harshness). This disjunction between an art and its history is always ruinous. If it happens in cinema, it will be ruinous as well. For now, there’s this very instigated task, the research of cinematographic Ideas. At the same time, it’s the cinema’s innermost research and a comparative one, because it establishes a comparison with painting, music, philosophy and even science. »

Ciclo Imagem e Pensamento
Org. Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
3ª, 17h30 - Universidade Nova de Lisboa | FCSH, Torre A, 1º, Aud. 1, Avenida de Berna, 26 C - Lisboa


5ª, 14.12.2006, 18h Apresentação de José Bragança de Miranda e Jacinto Godinho
Television delivers people (1973) 7' de Richard Serra e Carlotta Schoolman | The way things go (1987) 30' de Peter Fischli & David Weiss
6 de Fevereiro Zizek! (2005) 71' de Astra Taylor | Apresentação de Jacinto Godinho
13 de Fevereiro D'ailleurs, Derrida (1999) 68' de Safaa Fathy | Apresentação de Maria Fernando Bernardo Alves
27
de Fevereiro The gospel according to Philip K. Dick (2001) 80' de Mark Steensland | Apresentação de Jorge Rosa
6 de Março Jacques Lacan - Télévision (1973) 50'x2 de Benoît Jacquot | Apresentação de Maria Bello
13 de Março Martin Heidegger - Im Denken unterwegs (1975) 45' de Richard Wisser e Walter Rüdel | Apresentação de Mafalda Blanc
20 de Março Judith Butler, philosophe en tout genre (2006) 55' de Paule Zajdermann | Apresentação de Luísa Amaral
27 de Março (18h) La société du spectacle (1973) 88' de Guy Debord | Apresentação de José Pinto
3 de Abril Deleuze - C(h)i pensa il cinema? (Curso em Vincennes) | Apresentação de José Gil
17 de Abril Foucault par lui-même (2003) 63' de Philippe Calderon e François Ewald | Apresentação de Fernando Cascais
24 de Abril Cremaster 3 (2002) 182' de Matthew Barney | Apresentação de José Bragança de Miranda

Criatividade e criação artística, salvo seja

« A propriedade dos filmes realizados pelos alunos no âmbito do curso, bem como os direitos de autor de carácter patrimonial, o que inclui os respectivos direitos de difusão e de comercialização, pertencem à Fundação Calouste Gulbenkian. »
in «Normas para alunos», Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística

Voice-over


ao falecido | to the late W. G. Sebald

Parafraseando Godard | Paraphrasing Godard

Alguns homens dormiram na passagem do milénio. “Eu era esse homem”.
Some men slept through the millennium passage. “I was that man”.

Alguns filmes de Fevereiro


Germania anno zero
Roberto Rossellini
1947, 78’
5ª, dia 1, 21h30
6ª, dia 9, 19h30
Cinemateca, Lisboa

Body rice
Hugo Vieira da Silva
2006, 120’
até 7 de Fevereiro
16h45, 19h15, (00h15)
Medeia - King 3, Lisboa


Rigadoon | Platform
Ben Callaway (com Chris Reeves)
2004-5, 3’49'' | 2006, 2'53''
até 25 de Março
Culturgest - Galeria 1, Lisboa

Sex, lies and videotape
Steve Soderbergh
1989, 100’
5ª, dia 8, 21h30
Cinemateca


A woman of Paris
Charles Chaplin
1923, 84’
Sáb, dia 10, 19h
Cinemateca

Vivre sa vie
Jean-Luc Godard
1962, 83’
Dom, dia 11, 18h30
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa

Os verdes anos
Paulo Rocha
1963, 85’
5ª, dia 15, 19h30
Cinemateca

Bennys video
Michael Haneke
1992, 105’
6ª, dia 16, 19h30
Cinemateca

F for fake
Orson Welles
1974, 85’
5ª, dia 22, 19h
Cinemateca

Europa 51
Roberto Rossellini
1952, 109’
5ª, dia 22, 21h30
2ª, dia 26, 19h30
Cinemateca

Jeder für sich und Gott gegen alle/
O enigma de Kaspar Hauser:
Cada um por si e Deus contra todos
Werner Herzog
1974, 109’
Sáb, dia 24, 21h30
Centro Cultural da Malaposta, Odivelas


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