O verdadeiramente inadmissível | The truly inadmissible
Body rice (2006) Hugo Vieira da Silva excerto | excerpt
Das vezes que vi Body rice, precisamente a meio de um dos planos mais bonitos e complexos, senti um súbito incómodo, primeiro dentro de mim, depois também nas emanações doutros espectadores. Algo como uma irritação crescente, irredutível e profundamente estúpida, perante um elemento demasiado simples e fortuito da cena. Na verdade, talvez quase nem se repare. Vejamos [-00:49]. Uma mulher toma um duche ao ar livre depois de um banho de lama. No entanto, seja por desatenção ou desleixo, deixa todo um flanco do seu corpo por passar completamente por água. Fica ainda com lama. Na nossa cabeça, de boca fechada, começa alguém a gritar, irritado com a personagem: «Hei, estás toda suja! Volta para o duche. Olha, agora sujaste o casaco todo! Parva!” No fundo, desesperamos pela falta em que incorre. Lama. Quase perdemos o pé. Tal pequenez tornada enorme afoga-nos. São destas coisinhas perigosas que acontecem nos filmes. Felizmente, para a incidência das doenças nervosas já de si frequentes nas salas cinéfilas, são raras. Estou em crer que só os filmes muito maus, ou os muito bons, aí está, nos dão acesso a este tipo de experiências. Ou seja, dar-nos cabo dos nervos sem, digamos, a correlativa experiência estética exaltante. É mesmo só paranóia à solta, sem qualquer grandeza. Podemos até brincar um pouco com a situação, mas não há nada a fazer. Aquela coisa pouca configura para nós o inadmissível. É o verdadeiramente inadmissível, mesmo ou sobretudo no meio de outras tantas mortes ou amores tremendamente inverosímeis. (Enfim, presumo que tenha sido uma experiência semelhante a que tenha sofrido Cristina Peres por causa de um prato de ovos em Ossos, lá no longínquo ano de 1997, num texto citado abaixo, e a que Miguel Gomes, na altura crítico de cinema do Público, respondia de forma severa... Espero escrever sobre Body rice em breve.) | The times I’ve seen Body rice, precisely at the middle of one of its most beautiful and complex shots, I felt a sudden disturb, first inside me, then also in other spectators emanations. Something like an increasing, irreducible and deeply stupid irritation, in front of a simple and fortuitous element of the scene. Perhaps even hardly noticeable. Let’s see [-00:49]. A woman takes an outdoors shower after a mud bath. However, either because of carelessness or negligence, she leaves a flank of her body not completely watered. She’s still with mud. In our head, with our mouth shut, somebody starts to cry out, irritated with the character: “Hey, you’re all dirty! Get back in the shower. Now look, you got mud all over your coat! Dumb!” Deep down, we’re in despair for her fault. Mud. Losing it. Such a small thing turned enormous is drowning us. These tiny dangerous things happen in films. Happily, regarding the incidence of nervous illnesses already frequent in cinefilic movie theatres, it's rare. I believe that only in really bad movies, or really good ones, that’s the point, are we given access to this kind of experiences. That is, breaking our nerves without, lets say, the correlative exultant aesthetic experience. It’s just merely paranoia on the loose, without any greatness. We can even try to joke a little with the situation, but we’re hands tied. That slight thing configures for us the inadmissible. It’s the truly inadmissible, even or specially in the middle of all those other tremendously unlikely deaths or love affairs. (Well, I presume that was a similar case Cristina Peres experienced due to a plate of eggs in Bones, back in the distant year of 1997, in a text quoted below, one that Miguel Gomes, who was then a critic for the newspaper Público, responded with severity... Hope I can write on Body rice real soon.) |