Imagens que dão que pensar | Images that make you think
« Você [Daney] questiona-se porque escrevem tantas pessoas sobre cinema. Esta questão vale para si como para mim. Parece-me que é porque o cinema comporta muitas ideias. Aquilo a que chamo Ideias são imagens que dão que pensar. De um arte para outra, a natureza das imagens varia e é inseparável das técnicas: cores e linhas para a pintura, sons para a música, descrições verbais para o romance, imagens-movimento para o cinema, etc. E, em cada caso, os pensamentos não são separáveis das imagens, são completamente imanentes às imagens. Não existem pensamentos abstractos que se realizariam indiferentemente em tal ou tal imagem, mas apenas pensamentos concretos que existem apenas através dessas imagens e seus meios. Resgatar as imagens cinematográficas é então extrair pensamentos sem os abstrair, apreendê-los na sua relação interior com as imagens-movimento. É por essa razão que escrevemos “sobre” o cinema. Os grandes autores de cinema são pensadores, neste sentido, tanto quanto os pintores, os músicos, os romancistas ou os filósofos (a filosofia não tem nenhum privilégio). Dão-se encontros entre o cinema e as outras artes; podem chegar a pensamentos semelhantes. Mas não é porque haver um pensamento abstracto indiferente aos seus modos de expressão. É porque as imagens e os meios de expressão podem criar um pensamento que se repete ou se retoma de uma arte para outra, a cada vez autónomo e completo. [...] Aquilo a que chamo um pensamento não é o conteúdo da questão, que pode ser abstracta e banal (para onde vamos, de onde vimos?), é antes esta ascensão formal da situação a uma questão escondida, essa metamorfose dos dados. [...] O estado da crítica cinematográfica [em 1983] parece bastante forte nos livros e nas revistas. Há muitos livros belos. Talvez seja devido ao carácter recente e rápido do cinema: recência e velocidade. No cinema ainda não ganhámos o hábito de separar o clássico (aquilo que se fez, e que será objecto de uma crítica universitária demasiado segura de si mesma) e o moderno (o que se faz agora e que será julgado de cima). Esta disjunção, entre uma arte e a sua história, é sempre ruinosa. Se acontecer no cinema, será por sua vez ruinosa. De momento, há toda esta tarefa que está a ser encetada, a pesquisa das Ideias cinematográficas. É, ao mesmo tempo, a pesquisa mais interior ao cinema e uma pesquisa comparada, porque ela funda uma comparação com a pintura, a música, a filosofia e mesmo a ciência. Gilles Deleuze, «Cinéma-1, première» (1983), Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995, Minuit, Paris, pp. 194-196 | « You [Daney] ask yourself why so many people write about cinema. That’s a valid question for you but also for me. It think its because cinema contains a lot of ideas. What I call Ideas are images that make you think. From an art to another, the nature of images varies and is inseparable from techniques: colors and lines for painting, sounds for music, verbal depictions for novels, image-movement for cinema, etc. And in each case, thoughts are not separable from images; they are completely immanent to images. There are no abstract thoughts that would indifferently accomplish themselves in such or such image, just concrete thoughts that exist only through these images and its means. To release the cinematographic images is then to extract thoughts without abstracting them, to apprehend them in their interior rapport with the image-movement. This is the reason why we write “on” cinema. In this sense, the great cinema authors are thinkers, just as painters, musicians, novelists or philosophers are (philosophy doesn’t have any privilege). There are encounters between cinema and other arts; they can arrive at similar thoughts. But this is never because there would be an abstract thought indifferent to its means of expression. It’s because images and means of expression can create a thought that repeats itself or is recaptured from an art to another, autonomous and complete at each time. [...] What I call a thought is not the content of a question, that can be abstract and banal (where are we going, where did we came from?), it’s the formal restaging from the situation to a hidden question, this metamorphosis of facts. [...] The state of cinematographic critic [in 1983] seems rather strong in books and magazines. There are many beautiful books. That’s perhaps because of cinema’s recent and fast nature: recency and speed. In cinema we’re not yet accustomed to separating the classic (what was made and will be the object of a too self-assured academic critic) and the modern (what’s being done and that will be judged with harshness). This disjunction between an art and its history is always ruinous. If it happens in cinema, it will be ruinous as well. For now, there’s this very instigated task, the research of cinematographic Ideas. At the same time, it’s the cinema’s innermost research and a comparative one, because it establishes a comparison with painting, music, philosophy and even science. » |