Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Sobre a politização da estética (cinematográfica)



A sessão 7 do Seminário Questões de Estética será realizada a 3 de Maio de 2011 (3ª feira), entre as 15h-18h, na Sala 07, piso 0, Edifício I&D da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Av de Berna), enquadrada no âmbito de actividades do Instituto de Filosofia da Linguagem.

Sobre a politização da estética (cinematográfica)
por André Dias e Ilana Feldman
Se tomarmos como campo a análise da expressão cinematográfica, somos forçados a reconhecer nela uma dimensão política, intrínseca mas não por isso necessariamente privilegiada, que se revela afinal irredutível. Estas obras parecem constituir uma expressão do pensamento que, significativamente, é capaz de mostrar, de construir “visibilidades” que resistem aos discursos. Para apreender a especificidade deste modo de conhecimento temos de ser capazes de focar a sua composição, i.e., a sua (hetero)génese, as potencialidades e perigos que acolhe, e, sobretudo, o processo aberto das suas capacidades (habitualmente entendidas como) formais. Isto porque, presa entre as pesadas heranças do formalismo e da ideologia, a leitura dessa dimensão política se dissipou em dois processos: por um lado, numa acentuada metaforização da política na forma; por outro, numa delimitação excludente da política na arte. Como poderão então os paradoxos (políticos) do contemporâneo, mais expressos do que representados pelo cinema, ser aproximados pela atividade crítica? É que, pela sua natureza de arte popular e proximidade a um “conteúdo” (visível), o cinema é particularmente permeável a investimentos culturais que, muitas vezes, negligenciam a sua materialidade, a própria sensualidade, em prol de definições apressadas e funcionais.



O desafio é aqui, portanto, o de tatear essa relevância política sem nesse gesto atribuir valor às instâncias ideológicas, concentrando-nos nos problemas que constituem, simultaneamente, figurações das condições do mundo e das capacidades de cada obra em expressá-las, bem como nos paradoxos tantas vezes aí apresentados que oferecem resistência ao entendimento do mundo em que vivemos. Um dos paradoxos a partir do qual partimos é o da biopolítica contemporânea, estratégia através da qual as imagens e sons que conformam o cinema contemporâneo não se dissociam do modo como a política opera sobre a vida e, simultaneamente, do modo como a vida se torna um operador da política.

Ilana Feldman é pesquisadora, crítica e realizadora. Formada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Comunicação e Imagem também pela Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, é, atualmente, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação na Universidade de São Paulo, onde desenvolve pesquisa sobre o documentário brasileiro contemporâneo, a partir de questões concernentes à filosofia, à política e aos modos de produção de subjetividade. É colaboradora da revista eletrônica Cinética, na qual co-editou a publicação “Estéticas da Biopolítica - audiovisual, política e novas tecnologias”, realizada por meio do Programa Cultura e Pensamento para publicações em mídia eletrônica do Ministério da Cultura brasileiro.

Precariedade (dos filmes)

Por contraste aos filmes feitos com todos os recursos técnicos e de produção sofisticada que, por demasiado “bem feitos”, ainda que apenas em estrito sentido técnico, acabam por bloquear ou ocultar a aparição dos gestos cinematográficos singulares que prometiam, limitando, por conseguinte, a própria experiência estética que é neles possível, existem outros filmes, feitos em condições de filmagem precárias e material de base reduzido que, não ocultando essas circunstâncias, constituem uma certa menoridade que é também, de início, uma promessa, pois nela se projeta a esperança de uma justeza para com as personagens e as situações perante as quais se coloca, muitas vezes também elas marginais e precárias. São, no entanto, alguns os perigos, intrínsecos a essa condição, que se colocam à consistência destes filmes.
Em primeiro lugar, nem sempre é possível escamotear de forma criativa, através da montagem, a fragilidade inerente a ter pouco material de base. Aparenta ser bastante difícil construir uma densidade temporal e existencial quando os planos filmados são reduzidos e não contemplam as personagens atravessando o quotidiano. E quando, em paralelo, existe uma excessiva dependência da força existencial que algumas personagens emanam, seja pela sua peculiaridade, seja pelo caricato do seu discurso, corre-se muitas vezes o risco de as tornar em caricaturas. Essas evidências que emanam as personagens, que parecem inicialmente um ganho, acabam por severamente limitar a complexidade dos filmes. A suposta riqueza dos personagens constitui então, paradoxalmente, um perigo para a composição do filme enquanto obra, cuja força intrínseca se dá menos por isso do que pela conjugação, com o seu quê de misterioso, de muitos outros elementos.
Também no tratamento dado a personagens que estão, por si mesmas, numa situação interpretada socialmente como marginal e, por isso, particularmente expostas a olhares siderados e juízos fáceis, como no caso dos alcoólicos, dos indigentes, toxicodependentes, doentes mentais, etc., existe um perigo para a composição do filme. Se as regras servissem para alguma coisa no cinema, seria de seria de evitar que fossem possíveis essas facilidades do olhar e do juízo, não sublinhando, mas também não escondendo, alguns aspectos que podem indiciar essa marginalidade.
Outro elemento de risco diz respeito à aparição, principalmente em contexto documental, de pessoas que, sobretudo por falta de habituação à presença da câmara, a defrontam com o olhar, criando muitas vezes uma hiperconsciência da situação no espectador, que pode resultar numa atrofia. São posições ainda mais complicadas quando, a esse olhar na câmara insistente e prolongado, se acrescenta o carácter aparentemente precário da sensibilidade dessas pessoas. Em IMPERIAL GIRL de Salomé Lamas, há um momento muito forte, mas também muito incómodo, em que uma mulher idosa e aparentando um estado de espírito não muito claro, a meio do seu percurso na pensão, confronta a câmara durante aquilo que parece ser uma eternidade. Se, por um lado, esse defrontar é perturbador ao ponto do fascínio, por outro surge quase completamente isolado, não nos permitindo entender verdadeiramente como essa mulher, que afinal nos foi apresentada, vive. Ou talvez a nossa sideração incómoda seja o mais próximo que dela podemos chegar...



A brevidade de uma situação de filmagem torna-se ainda mais notória quando a câmara oscila algumas vezes, procurando por entre os interlocutores aquele que emitirá o elemento de discurso ou a expressão do rosto mais significativa. Isto acontece, em especial, quando várias pessoas se encontram no mesmo espaço e é difícil passar de uma a outra em diálogos bastante sincopados. O prolongamento da filmagem, caso seja possível, bem como a experiência adicional criada, forneceriam talvez a capacidade e a confiança para saber perder alguns desses elementos, só aparentemente mais significativos, em prol da continuidade de outros, quase desapercebidos.
Mas aquilo que, em última análise, parece definir o gesto que tenta compensar a precariedade em alguns filmes, neste sentido que lhe demos, e o seu maior risco, encontra-se na introdução de uma dimensão meta-fílmica, que é em geral bem mais difícil de integrar do que pensamos. Nela, o filme parece desejar questionar-se a si próprio e, simultaneamente, justificar o seu fim e mesmo os seus limites. No entanto, esse espelhamento súbito, pese embora possa potencialmente dar conta dos limites do filme e da sua construção, acrescentando-lhe uma complexidade rude, quase sempre nos subtrai da realidade até então composta, que era já de si de uma natureza frágil, afastando-nos do segredo da subtileza.

Ao pé da letra #136 (António Guerreiro)

Flaubert formulou uma vez a sua convicção quanto às relações entre editores e escritores: “Um editor explora-vos, mas não tem o direito de vos apreciações”. Para Flaubert, a defesa de uma radical autonomia da literatura e da arte implicava que o editor ficasse remetido ao seu papel de publisher e renunciasse às veleidades de editor literário (editor). Essa mesma conquista de autonomia implicava que o mercado do livro deveria ser uma espécie de mundo económico às avessas. E os grandes editores eram aqueles que mais sabiam permanecer escondidos. Em Itália, um dos fundadores da Adelphi, Roberto Bazlen (1902-1965), tornou-se pela sua forma de retirada uma figura mítica da edição. Não seria possível que as regras continuassem hoje a ser as mesmas (porque a autonomia deixou de ser uma exigência e porque o mercado dos bens simbólicos, como é o livro, já pouco se distingue do mercado dos bens reais), mas um dos aspectos mais conspícuos das transformações da edição em Portugal é o lugar espetacular conquistado por alguns editores, nos últimos anos.

Não se trata já do editor que acolhe, seleciona e cria um catálogo de prestígio, mas aquele que inventa, produz, difunde e especula na bolsa dos valores. Esta superstrutura do mundo literário tornou-se muito visível e facilmente categorizável em tipologias. Por exemplo, a tipologia do mandarinato. Neste movimento irreversível, os autores começam a ter o mesmo destino de outras classes profissionais, tais como os professores e os jornalistas, que tiveram um passado glorioso de autonomia. Esse destino é o da proletarização. De certo modo, todo o escritor está sob a ameaça de se tornar um ghost writer, que trabalha ao serviço de outrem (ainda que essa alteridade seja o seu nome próprio) e de uma instituição que já não é a literatura tal como Flaubert a entendia.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 22.4.2011.

Ao pé da letra #135 (António Guerreiro)

O tom aberta ou vagamente apocalíptico que se foi fixando desde há pouco tempo nos discursos de diagnóstico económico e político faz lembrar aquilo que na época de Weimar ficou conhecido como katastrophische Denkweise, o modo de pensar por catástrofes. Mas esse velho catastrofismo exprimia ainda uma visão apocalíptica do processo histórico da modernidade, própria de melancólicos e trágicos. Era o tempo em que Carlo Michaelstaedter, um filósofo italiano de Gorizia, perto de Trieste, impregnado de cultura vienense, se espantava que o mundo histórico pudesse continuar depois da leitura dos pré-socráticos, do Eclesiastes, de Leopardi, de Ibsen, suicidando-se a seguir (em 1910, aos 23 anos). Mais de meio século depois, Pasolini entendia que o agente do fim do mundo era a classe média, a pequena-burguesia, que ele responsabilizava pela destruição totalitária da pluralidade cultural e da tradição pré-moderna. Para Pasolini, o Maio de 68 dos estudantes foi um fenómeno clássico de mobilização da pequena-burguesia (por isso se colocou do lado da polícia).

Quando, no final dos anos 80 do século passado, por mediação da leitura que Kojève tinha feito de Hegel, se falou do triunfo planetário das democracias liberais como o fim da História, este fim não era mais um na sucessão das catástrofes, mas o contrário: era um prometedor recomeço. Ora, hoje começamos a perceber os contornos de uma nova fase que já se iniciou: a classe média, a mais forte e expansiva, capaz de se alargar e conquistar cada vez mais espaço — a classe, em suma, que se reproduziu alimentando-se de tudo —, começa a declinar enquanto classe universal, imortal e infinitamente dúctil. Aquilo a que hoje chamamos ‘crise’ é isto: a condição de fragilidade deste larguíssimo estrato intermédio, o fim do triunfo da classe média, cujo advento tinha sido o verdadeiro fim da História.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 16.4.2011.

Ao pé da letra #134 (António Guerreiro)

O retrato do artista enquanto saltimbanco, tão difundido ao longo do século XIX em imagens hiperbólicas e voluntariamente deformadoras, renasceu, no nosso tempo, graças aos ‘festivais de literatura’. Curiosamente, a arte literária, que tinha ficado fora do retrato, tornou-se entretanto o seu modelo de eleição. Os festivais onde o escritor se apresenta como saltimbanco têm os seus antepassados no teatro de feira, nas fêtes foraines, no mundo cómico e farsante das troupes, dos bouffons e dos acrobatas. Pese embora o esforço que muitos participantes fazem para disfarçar essa incómoda linhagem, ela surge com toda a evidência quando entra em ação o grande clown da commedia literária — misto de Pierrot e Arlequim — que se chama Eduardo Pitta. Leia-se o que este rei da irrisão involuntária escreveu no seu blogue (http://daliteratura.blogspot.com) sobre o Festival Literário da Madeira para percebermos o que é esse mundo feérico, onde as proezas funambulescas do escritor se dissipam numa apoteose gastronómica.

Quando ele chega, uma glória fácil espalha a sua luz e converte tudo em luxo, degustação e volúpia. Ou, nas palavras do artista, “gossips & drinks”. Não fosse ele poeta, não fosse a sua exuberância de clown admirada pelos seus pares como um equivalente alegórico do ato poético e aplaudida como um feito da mais genial bouffonnerie (é ele que fala da “versão madeirense de ‘La grande bouffe’”) e ninguém lhe perdoaria a licenciosidade com que transforma um festival literário num piquenicão para “happy few” (utilizando uma expressão que lhe é cara). A um festival, mesmo literário, não se pede ascetismo. Mas, para o seu prestígio, não convém a pantomima de um Arlequim que descreve como “grande bouffe” o que os seus anfitriões apresentam como pura substância espiritual.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 9.4.2011.

Ao pé da letra #133 (António Guerreiro)

Jean Baudrillard, nos seus tempos áureos de cartógrafo e analista do presente, dava este exemplo da “estratégia fatal” dos objetos e da ação que, por excesso, se torna inércia: solicitada a justificar, por suspeita de fraude, as contas anuais que tinha apresentado, uma empresa americana depositou à porta da secção de finanças local um contentor cheio de papéis que, se fossem verificados como estava previsto, entupiriam por longo tempo todos os serviços da secção. A metáfora do entupimento, como sabemos muito bem, aplica-se também a outro exemplo de inércia forçada pelo excesso de mobilidade: as filas de carros parados nas ‘vias rápidas’ para entrar ou sair de uma cidade. Desta forma de entropia, as caixas de comentários dos sites dos jornais são hoje o melhor exemplo: elas foram criadas para alargar a esfera pública mediática, para criar a ágora virtual, apta a realizar as promessas mais amplas da democracia.

Mas o que acontece, afinal? Tão aberto e sem controlo é o espaço que os primeiros a aceder a ele são os que se alimentam do combustível mais forte: os enraivecidos, os despeitados, os ressentidos, os voluntariosos, os tagarelas. Esta gente toda a trocar mensagens e insultos, a disseminar ódios e opiniões, a gritar impropérios e calúnias, ocupa a ágora de maneira tão ruidosa e tão avessa ao “agir comunicacional” que afasta quem, com saber ou racionalidade argumentativa, se dispõe a intervir. A “dialética do Iluminismo”, que Adorno e Horkheimer identificaram na reversibilidade da razão moderna, encontrou aqui a sua realização extrema: uma esfera pública totalmente aberta e ilimitada, exatamente por o ser, redunda no seu contrário; a promessa ‘iluminista’ por excelência torna-se o reino das trevas; e os meios que julgávamos poderem cumprir a promessa de uma sociedade racional tornam-se os instrumentos da barbárie.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 2.4.2011.


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