Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #135 (António Guerreiro)

O tom aberta ou vagamente apocalíptico que se foi fixando desde há pouco tempo nos discursos de diagnóstico económico e político faz lembrar aquilo que na época de Weimar ficou conhecido como katastrophische Denkweise, o modo de pensar por catástrofes. Mas esse velho catastrofismo exprimia ainda uma visão apocalíptica do processo histórico da modernidade, própria de melancólicos e trágicos. Era o tempo em que Carlo Michaelstaedter, um filósofo italiano de Gorizia, perto de Trieste, impregnado de cultura vienense, se espantava que o mundo histórico pudesse continuar depois da leitura dos pré-socráticos, do Eclesiastes, de Leopardi, de Ibsen, suicidando-se a seguir (em 1910, aos 23 anos). Mais de meio século depois, Pasolini entendia que o agente do fim do mundo era a classe média, a pequena-burguesia, que ele responsabilizava pela destruição totalitária da pluralidade cultural e da tradição pré-moderna. Para Pasolini, o Maio de 68 dos estudantes foi um fenómeno clássico de mobilização da pequena-burguesia (por isso se colocou do lado da polícia).

Quando, no final dos anos 80 do século passado, por mediação da leitura que Kojève tinha feito de Hegel, se falou do triunfo planetário das democracias liberais como o fim da História, este fim não era mais um na sucessão das catástrofes, mas o contrário: era um prometedor recomeço. Ora, hoje começamos a perceber os contornos de uma nova fase que já se iniciou: a classe média, a mais forte e expansiva, capaz de se alargar e conquistar cada vez mais espaço — a classe, em suma, que se reproduziu alimentando-se de tudo —, começa a declinar enquanto classe universal, imortal e infinitamente dúctil. Aquilo a que hoje chamamos ‘crise’ é isto: a condição de fragilidade deste larguíssimo estrato intermédio, o fim do triunfo da classe média, cujo advento tinha sido o verdadeiro fim da História.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 16.4.2011.

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