Precariedade (dos filmes)
Por contraste aos filmes feitos com todos os recursos técnicos e de produção sofisticada que, por demasiado “bem feitos”, ainda que apenas em estrito sentido técnico, acabam por bloquear ou ocultar a aparição dos gestos cinematográficos singulares que prometiam, limitando, por conseguinte, a própria experiência estética que é neles possível, existem outros filmes, feitos em condições de filmagem precárias e material de base reduzido que, não ocultando essas circunstâncias, constituem uma certa menoridade que é também, de início, uma promessa, pois nela se projeta a esperança de uma justeza para com as personagens e as situações perante as quais se coloca, muitas vezes também elas marginais e precárias. São, no entanto, alguns os perigos, intrínsecos a essa condição, que se colocam à consistência destes filmes. Em primeiro lugar, nem sempre é possível escamotear de forma criativa, através da montagem, a fragilidade inerente a ter pouco material de base. Aparenta ser bastante difícil construir uma densidade temporal e existencial quando os planos filmados são reduzidos e não contemplam as personagens atravessando o quotidiano. E quando, em paralelo, existe uma excessiva dependência da força existencial que algumas personagens emanam, seja pela sua peculiaridade, seja pelo caricato do seu discurso, corre-se muitas vezes o risco de as tornar em caricaturas. Essas evidências que emanam as personagens, que parecem inicialmente um ganho, acabam por severamente limitar a complexidade dos filmes. A suposta riqueza dos personagens constitui então, paradoxalmente, um perigo para a composição do filme enquanto obra, cuja força intrínseca se dá menos por isso do que pela conjugação, com o seu quê de misterioso, de muitos outros elementos. | Também no tratamento dado a personagens que estão, por si mesmas, numa situação interpretada socialmente como marginal e, por isso, particularmente expostas a olhares siderados e juízos fáceis, como no caso dos alcoólicos, dos indigentes, toxicodependentes, doentes mentais, etc., existe um perigo para a composição do filme. Se as regras servissem para alguma coisa no cinema, seria de seria de evitar que fossem possíveis essas facilidades do olhar e do juízo, não sublinhando, mas também não escondendo, alguns aspectos que podem indiciar essa marginalidade. Outro elemento de risco diz respeito à aparição, principalmente em contexto documental, de pessoas que, sobretudo por falta de habituação à presença da câmara, a defrontam com o olhar, criando muitas vezes uma hiperconsciência da situação no espectador, que pode resultar numa atrofia. São posições ainda mais complicadas quando, a esse olhar na câmara insistente e prolongado, se acrescenta o carácter aparentemente precário da sensibilidade dessas pessoas. Em IMPERIAL GIRL de Salomé Lamas, há um momento muito forte, mas também muito incómodo, em que uma mulher idosa e aparentando um estado de espírito não muito claro, a meio do seu percurso na pensão, confronta a câmara durante aquilo que parece ser uma eternidade. Se, por um lado, esse defrontar é perturbador ao ponto do fascínio, por outro surge quase completamente isolado, não nos permitindo entender verdadeiramente como essa mulher, que afinal nos foi apresentada, vive. Ou talvez a nossa sideração incómoda seja o mais próximo que dela podemos chegar... |
A brevidade de uma situação de filmagem torna-se ainda mais notória quando a câmara oscila algumas vezes, procurando por entre os interlocutores aquele que emitirá o elemento de discurso ou a expressão do rosto mais significativa. Isto acontece, em especial, quando várias pessoas se encontram no mesmo espaço e é difícil passar de uma a outra em diálogos bastante sincopados. O prolongamento da filmagem, caso seja possível, bem como a experiência adicional criada, forneceriam talvez a capacidade e a confiança para saber perder alguns desses elementos, só aparentemente mais significativos, em prol da continuidade de outros, quase desapercebidos. Mas aquilo que, em última análise, parece definir o gesto que tenta compensar a precariedade em alguns filmes, neste sentido que lhe demos, e o seu maior risco, encontra-se na introdução de uma dimensão meta-fílmica, que é em geral bem mais difícil de integrar do que pensamos. Nela, o filme parece desejar questionar-se a si próprio e, simultaneamente, justificar o seu fim e mesmo os seus limites. No entanto, esse espelhamento súbito, pese embora possa potencialmente dar conta dos limites do filme e da sua construção, acrescentando-lhe uma complexidade rude, quase sempre nos subtrai da realidade até então composta, que era já de si de uma natureza frágil, afastando-nos do segredo da subtileza. |
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