Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #167 (António Guerreiro): O clube do ‘top’ e as suas guerras

Uma prática muito comum, que consiste em falsificar os tops dos livros mais vendidos, explica-se pelo efeito performativo que tem a publicação dessas listas: aparecer no top potencia o número de vendas, segundo um mecanismo tautológico que nos garante que tudo o que é bom aparece e tudo o que aparece é bom. Os tops não são um mero dado de um sector económico, não são uma informação sobre um estado de coisas, não são uma simples constatação: são um ato que produz efeitos ou que, pelo menos, pretende produzi-los. Tal como produz efeitos outro tipo afim de exibição quantitativa: as grandes torres de exemplares de um mesmo título à entrada das livrarias servem para incitar à compra por impulso e estimular a “rotação rápida”. A glória da quantidade que os tops celebram não tem mais de meio século. Até ao final dos anos cinquenta, o número de cópias de um livro vendidas não era do domínio público, até porque a regra da consagração, tal como ela tinha sido instituída pela autonomia do campo artístico, na segunda metade do século XIX, implicava o princípio de uma economia às avessas: o mais provável é que um livro que vendia muito estivesse naturalmente arredado da consagração.  

Por essa mesma razão, os escritores e os artistas fugiam das honrarias (“Les honneurs déshonnorent”, dizia Flaubert). A última coisa que um escritor queria era entrar num top club ou ver o seu nome associado a um hit-parade. Esse gesto não pode ser apenas interpretado como um puritanismo herdado da conceção heroica do artista; era um modo de assegurar a autonomia da literatura. No campo da arte, o correspondente aos tops de livros é a exibição pública dos valores de mercado de uma obra. Os contemporâneos de Picasso conheceram-lhe a fama, mas, a não ser já no final da sua vida, não conheciam a lista dos preços dos seus quadros. Também aqui o objetivo é o mesmo: fazer crescer aquilo que, aparentemente, só se está a medir. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 26.11.2011.

[Mostra/Seminário “O animal e a câmera” no forumdoc.bh.2011]


21 de Novembro a 4 de Dezembro de 2011
Cine Humberto Mauro/Palácio das Artes, Centro Cultural UFMG e Campus UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Entrada franca

O forumdoc.bh, Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte dedica-se à exibição, à discussão e ao fomento da produção cinematográfica, sobretudo a documental. Ao longo de quatorze anos consecutivos, o forumdoc.bh exibiu quase três mil filmes, para um público total estimado em 70 mil pessoas. Organizado pela Associação Filmes de Quintal, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, o festival se destaca pela curadoria criteriosa, seja com eixos temáticos ou retrospectivas de autor, trazendo a público filmes clássicos e contemporâneos cujo acesso é restrito, além do amplo debate que visa dialogar com cinéfilos, pesquisadores, realizadores e o público em geral.
No decorrer de sua história, o forumdoc.bh exibiu mostras de autores fundamentais para sepensar o cinema documentário, tais como: Jean Rouch, Pedro Costa, John Marshall, AgnèsVarda, Jean-Louis Comolli, Timothy Ash, Chantal Akerman, Zacharias Kunuk, Martin Maden,Bob Connolly, Chris Owen, Fernando Birri, Ousmane Sembéne, Abderrahmane Sissako, Idrissa Ouedraogo, Flora Gomes, Safi Feye, Frederick Wiseman, Ed Pincus, Pierre Perrault, Michel Brault, Robert Drew, Richard Leacock, D.A Pennebaker, the Maysles brothers, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Eduardo Coutinho, Arthur Omar, Aloysio Raulino, Andrea Tonacci, Carlos Prates, Ozualdo Candeias e Eduardo Escorel, além de projetos coletivos, como o Vídeo nas Aldeias.

MOSTRA/SEMINÁRIO ”O ANIMAL E A CÂMERA”
A mostra/seminário “O animal e a câmera” apresentará uma seleção de cerca de 20 filmes que tematizam modalidades diversas de relacionamento entre o homem e o animal. A maioria dos filmes estão centrados na caça e pesca como modos mediadores dessa relação cinematográfica. Documentaristas como Robert Flaherty, John Grierson, Jean Rouch, John Marshall, Frederick Wiseman, Arthur Omar, Andrea Tonnaci, dentre outros, compõem a mostra. Um seminário dedicado ao tema contará com a presença de nomes importantes do cinema e da antropologia, tais como, Tânia Lima, André Dias, Cezar Migliorin, Renato Sztutman, Takumã Kuikuro, dentre outros, que dialogarão com a mostra em palestras e mesas-redondas.

FAFICH Auditório Sônia Viegas/UFMG
22/11 Terça-feira

CINE HUMBERTO MAURO
24/11 Quinta-feira
19h PRIMATE Frederick Wiseman 1974, 105’

25/11 Sexta-feira
21h LA BÊTE LUMINEUSE Pierre Perrault 1982, 127’

26/11 Sábado
21h30 Fórum de Debates MESA REDONDA: “O animal e a câmera” com André Dias, Renato Sztutman, Paulo Maia

[Curso Marías / Buñuel na Cinemateca]

Ao pé da letra #166 (António Guerreiro): A culpa e a dívida

A linguagem é o primeiro instrumento de todas as trocas, e muitos conflitos e desacordos têm origem em problemas de linguagem. Quando a troca é entre línguas diferentes, há zonas idiomáticas intraduzíveis. Para percebermos a atitude moralista e disciplinadora da senhora Angela Merkel perante os países da zona euro mais atingidos pela crise da dívida não basta evocar, como explicação, a defesa irredutível de interesses nacionais (que, neste caso, chocam com o ideal supranacional da Europa) e recordar a história da Alemanha. Temos também de entrar numa lógica de pensamento a que a nossa língua não nos obriga. Neste caso, é conveniente saber que em alemão a palavra que traduz a nossa “dívida” é a mesma que diz a nossa “culpa”: “Schuld” tem ambos os significados. As consequências desta determinação linguística para a economia são enormes, como podemos hoje avaliar. A experiência do débito como culpa e da culpa como débito supõe uma conceção do capitalismo onde se sobrepõem categorias éticas, jurídicas e teológicas.  

Angela Merkel pode até nunca ter lido Max Weber, mas fala a mesma língua – em que “Schuld” significa “dívida” e “culpa” – do sociólogo alemão que formulou a tese da relação entre a ascese protestante e o espírito do capitalismo. E fala a mesma língua em que Marx sublinhou a derivação parasitária da economia capitalista da religião cristã. E fala ainda a mesma língua em que Walter Benjamin definiu “o capitalismo como religião”, como um culto “gerador de culpa” (ou de dívida, já que a palavra é a mesma) que não redime o pecado mas torna-o universal. Um culto permanente, uma festa contínua que não obedece a uma doutrina dogmática e que se celebra todos os dias, para o qual – e pronunciemos em voz baixa o que vem a seguir para nenhum dos governantes nos ouvir – não há dias feriados. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 19.11.2011.

À beira do mar azul... ♪♪


 [audio]

U SAMOGO SINEVO MORIA
À Beira do Mar Azul
de Boris Barnet
com Elena Kuzmina, Lev Sverdlin, Nicolai Kriuchkov
URSS, 1933 - 71 min / legendado em português
«Este filme é, como a generalidade da obra de Barnet, aparentemente “leve”, de um lirismo magistral, filmado do modo mais livre e menos convencional: dois jovens pescadores de um kholkoze apaixonam-se pela mesma rapariga, tornando-se rivais até um desconcertante final. Uma sequência inesquecível: a “ressurreição” da protagonista. Pouco visto à época, fora da URSS, À BEIRA DO MAR AZUL é hoje unanimemente considerado uma das obras máximas do cinema russo, ou do cinema tout court
> Sex. [18] 19:00 | sala dr. Félix Ribeiro, Cinemateca Portuguesa, Rua Barata Salgueiro 39, Lisboa

Sessão apresentada por Bernard Eisenschitz e Pierre Léon no âmbito do programa cinematografia – musicalidade 1.

Ao pé da letra #165 (António Guerreiro): A crítica em falso

A reação da Igreja, através de uma nota do Secretariado Nacional da Pastoral de Cultura, ao último livro de José Rodrigues dos Santos cai exatamente num equívoco que é o mesmo da crítica 'profana': o de elevar o livro a um estatuto que não tem. Walter Benjamin ensinou-nos esta coisa fundamental: um livro mau, num grau em que está ausente qualquer princípio crítico que é inerente à literatura, é incriticável enquanto tal (o que pode ser criticável é tudo o que o envolve no seu aparecimento e difusão). Este princípio, mesmo que não racionalizado e explicitado, vigorou até um tempo relativamente recente. Data do século XIX o aparecimento de uma literatura de entretenimento que tinha, na melhor das hipóteses, alguma importância económica, mas cujos caminhos nunca se cruzavam com os do ‘sistema literário’. E era exclusivamente deste que emanava o sistema da crítica.  
A partir do momento em que as regras de difusão e legitimação crítica começaram a ser permeáveis aos critérios do sucesso mediático e comercial e enfraqueceram o poder das instâncias (a Universidade, por exemplo) que não deixavam que a literatura se confundisse com as produções das ‘belas letras’, os dois campos passaram a cruzar-se e a mobilizar os mesmos meios, os mesmos métodos de difusão e os mesmos discursos. As categorias de ‘ficção’ e ‘não-ficção’ utilizadas pelas livrarias e por muitas revistas e suplementos literários são uma manifestação deste estado de coisas. Diga-se em abono da verdade que, se a literatura de entretenimento acedeu às esferas dantes reservadas ao que tinha a consagração apenas outorgada pelo ‘campo literário’, a literatura também passou a competir nos modos de edição e difusão com o entretenimento. O que facilitou o estado de confusão, nesta matéria, em que vivemos hoje. E explica que se gastem munições críticas e teológicas em alvos que se situam noutro campo de batalha.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 12.11.2011.

Ao pé da letra #164 (António Guerreiro): O sublime a que temos direito

“Colossal”, essa palavra que entrou recentemente no discurso político e fez o seu curso tornando-se objeto de glosas irónicas ou mesmo paródicas, é uma arma de fino recorte filosófico, consagrada como conceito por Kant na sua analítica do sublime. Remetendo-a para o campo conceptual onde o pensamento crítico da modernidade a entronizou, obrigatório é concluir que o sublime a que todos hoje temos direito, enquanto experiência de algo colossal, é-nos fornecido pela representação matemática da grandeza das dívidas, dos ganhos, dos empréstimos. Milhões, milhares de milhões, biliões de euros: estes números que desfilam à nossa frente como cálculos objetivos para a nossa vida presente e futura são tão incomensuráveis para todos nós como a especulação metafísica sobre a eternidade. Na sua Crítica da Faculdade do Juízo, Kant definiu o sublime como “o que é absolutamente grande” e como “o que é grande para além de toda a comparação”. E uma das categorias do sublime que ele define é o sublime matemático: o sentimento de uma grandeza desproporcionada em relação às nossas faculdades sensíveis, isto, é, que ultrapassa a medida dos nossos sentidos.  

Assim, Kant chama colossal ao que, por ser demasiado grande para a nossa faculdade de apreensão, exerce uma violência sobre a nossa imaginação. Por via das grandezas colossais, as finanças fornecem hoje um suplemento de sublimidade às massas, ao povo, que perante o colossal ainda mais se sente o “menu peuple”, o povo miúdo: esse que, ao contrário do “povo” das constituições democráticas modernas, não é soberano nem entra no cálculo das decisões políticas. Resta-lhe – resta-nos – a experiência de prazer e ‘desprazer’ que o sublime colossal oferece ao interesse dos sentidos; e o ‘desprazer’ que advém da experiência do confronto com o nosso próprio limite natural.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 5.11.2011.

[Programa de cinema: ‘Resíduos’]

Ao pé da letra #163 (António Guerreiro): Os bárbaros que não chegam

Há, em última instância, um acordo relutante e inconfessado entre os que defendem que a superação da crise económica e financeira se faz através da imposição da mais estrita austeridade e os que advogam que essa medida terá um efeito fatal e o que é preciso é estimular o consumo: ambas as partes caem no erro de uma falsa alternativa entre meios e fins que paralisa toda a política (e só serve quem está interessado em trabalhar para a despolitização). Ambas as partes, em suma, obedecem ao mandamento primeiro da teologia económica: o crescimento. Muito timidamente, e enquanto elaboração teórica, surgiu nos últimos anos um discurso do decrescimento que não parece ainda ter adquirido grandes condições para prosperar. Crescer é o mais resistente direito adquirido, cúmplice de um ‘progressivismo’ supra-ideológico. É evidente que mesmo o pensamento que se reivindica de esquerda colabora ativamente com os instrumentos e os modos de pensar que nos governam (desde logo, o produtivismo e o economismo) e, no fundo, não aspira senão a reconciliar tudo com o seu contrário.  
Ora, só um pensamento e uma prática que ousassem levar às últimas consequências uma total falta de ilusão em relação à nossa época poderiam superar esta oposição ao austeritarismo que o preserva no entanto na sua lógica e até na sua pragmática. Todos aqueles que criticam o sistema em que vivemos, hoje à beira do colapso, parecem querer salvá-lo, incapazes de dar o salto que lhes permitiria pôr a questão de um recomeço – esse recomeço que já Walter Benjamin, no início dos anos trinta do século passado, dizia ser a atitude própria dos grandes construtores, daqueles que, fazendo tábua rasa do que vigorava antes, são induzidos a construir a partir do pouco que têm, sem olhar à direita nem à esquerda. Para essa atitude dos construtores capazes de fazer tábua rasa reservou Benjamin o conceito de barbárie positiva. Onde estão estes bárbaros?  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.10.2011.


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