Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Uma linha de pensamento, incapaz de ser retida...

«Já em Paris tinha pensado em coligir os meus estudos num livro, mas fui sempre adiando a sua redacção. As diversas concepções deste livro que fui acatando em diferentes épocas iam desde o plano de uma obra em vários volumes, sistemática e descritiva, até uma série de ensaios sobre temas como higiene e salubridade, arquitectura penitenciária, templos profanos, hidroterapia, jardins zoológicos, partir e chegar, sombra e luz, vapor e gás e outros mais. Claro que, à primeira vista, os papéis que trouxe do Instituto para aqui, para Alderney Street, mostravam não passar, na sua maior parte, de esboços que então me pareceram inúteis, falsos e deficientes. Comecei a separar e a ordenar tudo o que ainda servisse para recriar aos meus próprios olhos, como se nas páginas de um álbum, o aspecto da paisagem que o viandante atravessa já quase imersa no esquecimento. Mas quanto maior o esforço que ao longo de meses dediquei a esta tarefa, mais lamentáveis me pareciam os resultados e mais o mero abrir dos maços e virar das incontáveis páginas por mim escritas me invadia de um sentimento de relutância e de asco, disse Austerlitz. E no entanto ler e escrever tinha sido sempre a sua actividade favorita. Como gostava, disse Austerlitz, de me sentar com um livro ao cair da tarde até já não conseguir decifrar as palavras e o pensamento começar a andar em círculos, como me sentia protegido quando me punha à secretária, na minha casa às escuras, e via à luz do candeeiro a ponta do lápis correndo atrás da sua sombra, como se por vontade própria e com perfeita lealdade enquanto essa sombra se deslocava paulatinamente da esquerda para a direita, linha a linha, sobre o papel pautado. Contudo, tornou-se-me tão difícil escrever que precisava de um dia inteiro para uma só frase, e assim que essa frase, produzida com extraordinário esforço, ficava escrita, logo mostrava a penosa inautenticidade das minhas construções e a inadequação do conjunto de palavras que tinha usado. Quando por vezes, iludindo-me a mim próprio, sentia que apesar de tudo tinha ganho o meu dia, era certo que, ao lançar o primeiro olhar à folha na manhã seguinte, encontraria os piores erros, incongruências e dislates. Muito ou pouco que tivesse escrito parecia sempre, a uma leitura posterior, tão destituído de fundamentos que tinha que o destruir sem demora e começar de novo. Em breve se tornou desagradável dar sequer o primeiro passo. Como um equilibrista que deixa de saber como se põe um pé à frente do outro no arame, sentia apenas a plataforma instável por baixo de mim e via, aterrado, que as pontas reluzentes da vara de equilíbrio, bem no limite do meu campo de visão, já não eram como outrora a minha luz de guia, mas malignos incitamentos a que me atirasse para o vazio. Uma vez por outra desenhava-se com inteira clareza na minha cabeça uma linha de pensamento, embora eu soubesse, mal ela se formava, que seria incapaz de a reter, pois logo que pegava no lápis as infinitas possibilidades da linguagem a que antes podia abandonar-me com toda a confiança tornavam-se uma miscelânea de frases de tremendo mau gosto. Não havia pertinência das expressões que não se revelasse uma miserável muleta, nem palavra que não soasse a falso e a oco. E neste vergonhoso estado de espírito me mantive durante horas, dias a fio, de cara virada para a parede, a atormentar a alma, e gradualmente fui percebendo como é horrível descobrir que a mínima tarefa ou dever, por exemplo, a arrumação de uma gaveta com várias coisas, está para além das nossas forças. Foi como se uma doença em mim latente há muito procurasse declarar-se, como se se tivesse apossado de mim um aturdimento, uma prostração que lentamente acabaria por me paralisar todo. Sentia já na minha fronte o terrível torpor que anuncia a degradação da personalidade, que na realidade já não possuía memória nem capacidade de pensamento, nem sequer vida própria, que toda a minha existência tinha sido passada a extinguir-me e a apartar-me de mim e do mundo. Se alguém tivesse vindo então buscar-me para me levar para o local de execução ter-me-ia deixado ir calmamente, sem dizer uma palavra, sem abrir os olhos, como as pessoas que, ao atravessarem, por exemplo, o Mar Cáspio num vapor, sofressem de tão violento enjoo que não oferecessem a mínima resistência a quem viesse informá-las de que iam ser lançadas borda fora. Fosse o que fosse que se passava em mim, disse Austerlitz, o sentimento de pânico com que encarava o início da escrita de qualquer frase sem saber como começar essa frase ou qualquer outra não tardou a abranger essa outra ocupação em si mais simples que é a leitura, até que comecei a cair inevitavelmente num estado de maior desconcerto sempre que procurava abarcar uma página inteira. Se pudermos considerar a linguagem uma velha cidade com um emaranhado de ruas e praças, com bairros que remontam longe no tempo, com quarteirões demolidos, limpos e construídos de novo e subúrbios que se vão alargando ao campo circundante, eu serei uma pessoa que, após uma longa ausência, já não consegue encontrar o caminho neste aglomerado, já não sabe para que serve uma paragem de autocarro, o que é um saguão, um cruzamento, uma avenida ou uma ponte. Todo o articulado da língua, o ordenamento sintáctico de cada elemento, pontuação, conjunções e por fim até mesmo os nomes das coisas vulgares, tudo ficou mergulhado numa neblina impenetrável. Também eu próprio havia escrito no passado, isso particularmente, deixei eu de entender. Estava sempre a pensar: portanto, uma frase, uma coisa pretensamente cheia de sentido, é na verdade quando muito um expediente medíocre, uma espécie de excrescência da nossa ignorância com a qual tacteamos às cegas a escuridão que nos rodeia, do mesmo modo que muitas plantas e animais marinhos usam os seus tentáculos. Precisamente o que de costume contém a expressão de uma inteligência bem orientada, a exposição de uma ideia mediante certa competência estilística, não passava, parecia-me então, de uma empresa de todo arbitrária ou ilusória. Já não via coerência alguma, as frases diluíam-se em muitas palavras isoladas, as palavras numa série de conjuntos de letras aleatórios, as letras em sinais desmantelados e estes num rasto cor de chumbo com reflexos prateados aqui e além que alguma criatura rastejante tivesse segregado e deixado como rasto e cuja visão me enchia cada vez mais de sentimentos de horror e vergonha. Uma noite, disse Austerlitz, peguei em todos os meus papéis soltos ou em maços, nos blocos e cadernos de apontamentos, nas fichas e notas de leitura, tudo o que tivesse sido escrito por mim, tirei tudo de casa e levei para o extremo mais afastado do jardim, para o monte do composto, onde enterrei aquilo sob camadas de folhas podres e pazadas de terra alternadas. Nas semanas seguintes, enquanto arrumava as divisões da casa e renovava a pintura de chãos e paredes julguei-me aliviado do peso da minha vida, mas em breve me apercebi das sombras que iam pousando em mim. Sobretudo à hora do crepúsculo, que antes era a minha favorita, invadia-me uma angústia a princípio difusa, depois cada vez mais densa, com o que o belo espectáculo do empalidecer das cores se transformava numa lividez execrável e baça, me comprimia no peito o coração até um quarto do seu tamanho natural e na minha cabeça sobrava apenas uma ideia: ir a uma casa de Great Portland Street, onde, uns anos antes, a seguir a uma consulta com um médico, tivera o estranho capricho de subir ao patamar do terceiro andar, transpor a balaustrada e lançar-me no poço escuro da escada.»
W. G. Sebald, Austerlitz,
trad. Telma Costa, Teorema, Lisboa, 2004, pp. 114-118


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