Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #115 (António Guerreiro)

Sobre uma geração delapidada e o vazio cultural que está a ser criado por ausência de renovação

«Não é fácil medir — mas é plausível uma conta pesada — os efeitos nefastos da situação precária, ou até indigente, em que se encontram hoje grande parte dos jovens que acabam os estudos. Aliás, já não é bem uma situação, é um estatuto. Além do drama individual, há uma devastação coletiva, uma ruína social e cultural que avança em silêncio e da qual quase ninguém fala porque os jovens também estão excluídos da parte ativa da opinião pública, aquela que Pasolini incitou os estudantes a reivindicar. O grande linguista russo Roman Jakobson escreveu nos anos 30, na sequência do suicídio de Maiakovski e da deportação de outros escritores, um texto intitulado “A Geração que Delapidou os seus Poetas”. O nosso tempo é aquele que delapidou os seus jovens. Para percebermos o alcance desta delapidação, devemos recordar a forte carga utópica que a juventude teve desde as primeiras décadas do século XX, quando se mobilizou em diversos movimentos. Mais do que um sujeito social, a juventude surgiu aí como uma categoria do espírito, o centro de onde nasce o novo, contra o filisteísmo da ‘experiência’ das gerações instaladas.

Esta lição irrecusável faz-nos ver que a questão atual da delapidação dos jovens não pode ser encarada apenas em termos sociais. O que acontece com as instituições culturais que não se renovam? O que acontece quando uma grande parte da população — precisamente aquela que não está em letargia defensiva — foi condenada à situação de pária? O que acontece à Universidade quando estão bloqueadas todas as entradas de novos professores e ela caminha, em bloco, para a reforma? Acontece, muito provavelmente, que alguns dos seus cursos e departamentos (e as Humanidades são as primeiras vítimas) vão extinguir-se, para gáudio dos governos que podem apresentar como vítima de ‘morte natural’ o que na verdade eles quiseram exterminar.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.10.2010.

«The Man of the hoe» (translation), on Thomas Harlan’s TORRE BELA.

Expoentes críticos | Critical exponents (O período cor-de-rosa | The pink period #1.9)

Se houve uma pequena irmandade de cineastas – a Nouvelle Vague – que chegaram necessariamente tarde, porém se reconheceram na “impossibilidade de fazer o cinema que [lhes] tinha dado vontade de o fazer” (Godard), haverá também uma outra, cujo magistério pertence sem dúvida ao crítico Serge Daney: a dos que afinal se viram na impossibilidade de ver o cinema da mesma maneira, sem a doce inocência do cinema clássico nem sequer já com as esperanças abertas do primeiro cinema moderno, aqueles que aterraram directamente no cinema irremediável, que no entanto souberam ainda amar. Aquele que vem depois — Serge Daney — como o decano dessa comunidade lutuosa, é também a prova de como a cinefilia não se sustenta necessariamente no exclusivo da fruição cinematográfica, mas pode ter igualmente uma expressão literária.
O género crítico suscita muitas expectativas, filmes por que se passa a esperar e de já se gosta mesmo antes de se os ver, como que por um processo de osmose da ansiedade. A tardo-modernidade tem também os seus grandes expoentes críticos e criadores de ânsias cinéfilas, que devem ser nomeados: a verdadeira súmula crítica, melancólica e severa, dos excessivos anos 70, é La rampe de Serge Daney; e L’image-temps de Gilles Deleuze – livro de filosofia muito e mal lido, cuja incompreensão tem negligenciado, em prol do papaguear dos grandes conceitos abrangentes de natureza ontológica, o nível discreto mas constante de leitura parcial de certos filmes bem concretos –, indiscutivelmente posicionado na linhagem da grande tradição crítica dos Cahiers du cinéma, a saber, a de uma soberania imanente do cinema que estende à dimensão vizinha de pensamento.

[fim do #1; continua]

If a small brotherhood of filmmakers — the French New Wave — arrived necessarily late, and nevertheless acknowledged the “impossibility of doing the cinema that had gave [them] the urge to do it” (Godard), there is also another one, whose magisterial position belongs to the film critic Serge Daney: of those who were in the impossibility of seeing cinema the same way — without the sweet innocence of classical cinema nor even the opened hopes of the first modern cinema —, those who landed directly on the irreparable that, notwithstanding, they managed to love. The one who comes after — Serge Daney, dean of that mournful community... and also the proof that cinephilia doesn’t stand solely in exclusive cinematic fruition, but can also have a literary expression.
The critical genre bestirs lots of expectations: films one starts wishing for and already loves before seeing them, as if by a process of anxiety osmosis. Late modernism has also its great critical exponents, those creators of cinephile expectations that should be named: so melancholically harsh, the true critical summa of those excessive 70’s is Serge Daney’s La rampe; and there is also this very badly read philosophy book — Gilles Deleuze’s The time-image — whose common misunderstanding has neglected — in favour of a babble repeating those big overreaching concepts of ontological nature — the subtle but constant partial readings of certain films, thus also clearly positioned in the lineage of the great critical tradition of the Cahiers du cinéma, i.e., of the immanent sovereignty of cinema extending to the vicinity of the dimension of thought.

[end of #1; to be continued]

Trabalho de luto | Work of mourning (O período cor-de-rosa | The pink period #1.8)

Depois do cinema moderno, portanto, ainda em trabalho de luto. Mas sem que esse luto demorado se torne um peso excessivo e condicione a alegria dos encontros. Pelo contrário, esta necrofagia tornou-se paradoxalmente uma condição, se não necessária pelo menos fundamental, para a nossa alimentação cinematográfica. E, se reconhecermos o valor de uma aprendizagem que pode começar pelo meio, ou mesmo pelo fim de alguma coisa, neste caso, pelo preciso momento em que nada é já claro sobre o destino do cinema (e passados trinta anos continua tudo bastante confuso), não temos quaisquer motivos para, contrariando a nossa pertença, ceder à autoridade insistente que remete para as origens históricas como premissas insuperáveis da compreensão. Chega-se ao cinema por onde se chega, pelos filmes que se viram, pelos que nos demandaram, e é sempre a eles que é preciso responder.

[continua]

After modern cinema, hence, still the work of mourning. But this slow mourning doesn’t become a heavy burden nor conditions the joy of encounters. On the contrary, this necrophagy has paradoxically become a requirement — if not strictly necessary, at least fundamental — to our cinematic nourishment. And, if we recognize value to an apprenticeship that can start from the middle, or even at the end of something — in this case, at the moment in which nothing was clear anymore about the destiny of cinema (and, thirty years later, everything is still pretty much confusing) — we have no motive whatsoever to go against our belonging and submit to that persistent authority that consigns us to historical origins as insurmountable premises for an understanding. One reaches cinema by so many ways, by the films one sees, by the ones demanding us, and only to those one must answer to.

[to be continued]

Pequenos elementos parciais ardentes | Small partial burning elements (O período cor-de-rosa | The pink period #1.7)

Este processo de indagação sobre um certo cinema tardio requer que tentemos escapar a uma cansativa cinefilia canónica e meramente rememorativa, que não se projecta nem implica nos filmes. Logo se torna evidente a obrigação de descermos um degrau e nos colocarmos ao lado, nem sequer dos “autores” menores, mas da própria pequenez formigante dos filmes em concreto ou, ainda mais abaixo, dos pequenos elementos parciais que neles ainda ardem. Ou seja, descer ao nível do que nestes filmes tardios, mesmo que à escala ínfima de uma cena ou sequência, movimento ou gesto, nos interpela e permanece actual contra o nosso próprio tempo.
Do mesmo modo, vemo-nos também obrigados a evitar, nalguns casos talvez de forma injusta, uma certa modernidade “de prestígio” que nos parece demasiado sedimentada, a saber: Ingmar Bergman, Luís Buñuel, Andrei Tarkovsky, Federico Fellini, Rainer Werner Fassbinder, Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti...

[continua]

The process of enquiry of a certain late cinema requires that we attempt to escape a tiresome canonical cinephilia — merely recollective — that does not project nor implies itself in the films. It quickly becomes clear the obligation to descend a step in order to be side by side — not even of minor “auteurs” — the vibrant smallness of particular films or, even lower, the small partial burning elements in them. That is, to descend until the level in which these later films, even at the pitiful scale of a scene or sequence, a movement or gesture, take hold of us and remain actual against our own times.
Similarly, we are also forced to avoid — in some cases unfairly — a somewhat “prestigious” modernity that seems far too well-grounded, like: Ingmar Bergman, Luís Buñuel, Andrei Tarkovsky, Federico Fellini, Rainer Werner Fassbinder, Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti...

[to be continued]

Amplitude gestual | Gestural amplitude (O período cor-de-rosa | The pink period #1.6)


Embora a descoberta de uma ambiguidade livre — cujo sentido propriamente cinematográfico tem de ser entendido como extra-linguístico e extra-moral — seja o movimento que nos parece abranger melhor todo o cinema moderno e sintetizar o conjunto das suas façanhas, é mais precisamente no campo tardio deste cinema que se encontrará uma inaudita amplitude gestual.
Em TERRA EM TRANSE (1967) de Glauber Rocha, dois amantes rodeiam-se de pé, abraçam-se, beijam-se e, enquanto a câmara os contorna, sussurram um ao outro e ela declama um poema dele em off, acompanhados pela música de Villa-Lobos. Trata-se de um momento muito ambicioso e de raro conseguimento, dado que a declamação de poemas em cinema tem tendência a ser bastante penosa ou a deixar escapar por completo a própria apreensão do poema dito. Neste caso, pelo contrário, é extremamente comovente, e certamente que um particular desacordo entre os elementos, os corpos e as vozes, para isso contribui.
Esta amplitude gestual liberta, não naturalista, permitirá várias encarnações aos corpos, possessões por uma vez explícitas, expondo a sua natureza cinematográfica e não remetendo para entidades imaginárias. Permitirá também, em casos extremos, como no massacre com que termina LANCELOT DU LAC (1974) de Robert Bresson, dar a imagem mais terrível e desoladora — sobretudo porque isenta de pathos — da separação da vida nos corpos.

[continua]

Although the discovery of a liberated ambiguity — whose cinematic sense must be properly conceived as extra-linguistic and extra-moral — seems the movement that encompasses the best of all modern cinema and synthesises the gathering of its feats, it is more precisely in the later field of this cinema that one can find a new gestural amplitude.
In Glauber Rocha’s TERRA EM TRANSE / ENTRANCED EARTH (1967), two lovers round up, embrace and kiss each other, and, while the camera goes around them, they whisper and she recites his poem in off, accompanied by the music of Villa-Lobos. It is a very ambitious moment, one of rare achievement, since the recitation of poems in films tends to be rather painful or to completely miss the seizing of the poem itself. In this case, on the contrary, it is extremely moving, and surely the particular disagreement between the elements, bodies and voices, plays a major part.
This liberated gestural amplitude, non-naturalistic, will allow several incarnations of the bodies, possessions for once explicit, exposing their cinematic nature and non-consigning imaginary entities. It will allow also, in extreme cases such as the massacre that ends Robert Bresson’s LANCELOT DU LAC (1974), to give the most terrible and desolate image — because absent of pathos — of the separation of life in bodies.

[to be continued]

Linhas de fuga | Lines of flight (O período cor-de-rosa | The pink period #1.5)

No entanto, porque o carácter verdadeiramente problemático da apreensão do cinema moderno não se encontra hoje tanto na consideração do seu surgimento, como no seu dificilmente compreensível desvanecimento, precisamente nos anos 70 que nos ocupam, em detrimento de uma definição histórica geral, demasiado geral, do cinema moderno, parece-nos antes necessária a apreciação de um modernismo tardio, que é aquilo de que a nossa periodização “cor-de-rosa” procura dar conta. Como disse Deleuze, parafraseando Nietzsche, “nunca é no início que algo de novo, uma nova arte, pode revelar a sua essência, mas, o que era desde o início, só o pode revelar num desvio da sua evolução”. O que implica a declinação de algumas linhas de fuga, em grandes pinceladas e pequenos traços ao mesmo tempo, de um cinema que, perdido por entre o calor vociferante do seu tempo e em si mesmo já de natureza indomesticável, jaz praticamente abandonado, sem seguidores, e dificilmente recuperável pelos habituais revivalismos kitsch.

[continua]

Nevertheless, since today the true problematic character of modern cinema’s apprehension resides not so much in the consideration of its irruption as in the difficult understanding of its disappearance, precisely in those 70’s we are dealing here, instead of a general, all too general historical definition of modern cinema, it seems rather necessary the appreciation of a late modernism, one which our “pink” periodization tries to account for. As Deleuze once said, paraphrasing Nietzsche, “it is never at the beginning that something new, a new art, is able to reveal its essence; what it was from the outset it can reveal only after a detour in its evolution”. This implies the declension of some lines of flight, in big strokes and small traces at the same time, of a cinema that — lost within the vociferous heat of its time and in itself already of an untamed nature — lies practically abandoned, without followers, and hardly recoverable by the usual kitsch revivals.

[to be continued]

Descontinuidade forçada | Forced discontinuity (O período cor-de-rosa | The pink period #1.4)

O cinema moderno terá nascido como uma descontinuidade forçada – a tese é conhecida – no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, no confronto “ao que nos aconteceu”, do inaudito dos campos de extermínio à própria incapacidade histórica do cinema, pior do que isso, à sua participação voluntária nas grandes encenações e máquinas de propaganda. Esta descontinuidade poder-se-á talvez definir, positiva e simultaneamente, por uma libertação da ambiguidade e uma extensão dos afectos. Nessa ferida aberta inscreveram-se várias dinâmicas disruptivas, das quais se salientam os choques vitais, de que as repetidas “ressurreições” nos filmes de Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni ou Carl. Th. Dreyer são fascinantes expoentes.

[continua]

Modern cinema might have been born as forced discontinuity — a common stance — in the aftermath of World War II, facing “what happened to us”, from the originality of extermination camps to the historical inability of cinema itself, even worse, its willing participation in the great staging and propaganda machinery. This discontinuity could perhaps be defined, positively and simultaneously, as liberation of ambiguity and extension of affects. In that open wound several disruptive dynamics were inserted, of which one can emphasize the vital shocks of which the repeated “resurrections” found in Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni and Carl Th. Dreyer are fascinating instances.

[to be continued]

Tentativa de periodização | Attempt at periodization (O período cor-de-rosa | The pink period #1.3)

Esta degradação cromática, à qual nos apegámos, parece ser o mote descritivo adequado para um certo cinema. Um “período cor-de-rosa” da história do cinema, assim tão inabilmente concebido, na soberba de partir exclusivamente de um acidente da experiência de espectador, e negligenciando obviamente a incongruência da inclusão dos filmes a preto e branco ou dos que não foram vistos nesse estado, decorre antes de mais da seguinte afirmação: é unicamente no interior dessa experiência de espectador que se pode fundar toda e qualquer “ciência” ou, mais modestamente, ter pensamentos perante o cinema. Tal tentativa de periodização é também, e sobretudo, um gesto conscientemente desesperado de recuperação da parcela mais desprezada da história do cinema; uma parcela transversal e rarefeita, pequenos pontos verdadeiramente excêntricos e extremados no mar avassalador da indiferente produção...

[continua]

This chromatic degradation, of which we became fond of, seems to be an adequate descriptive motto for a certain cinema. A “pink period” of film history, so ill-conceived in the arrogance of starting just with a singular accident in the experience of a spectator, and obviously neglecting the incongruence of including black & white films or those who were not seen in that condition, derives first of all from the following statement: it is uniquely through the spectator’s experience that any whatever “science” can be founded or, more modestly, can we have thoughts facing film. Such an attempt at periodization is also, and mostly, a consciously desperate recovery gesture of the most neglected slice of film history, a rarefied and transversal slice, truly eccentric and extreme tiny points in the overwhelming sea of an indifferent production...

[to be continued]

In memoriam Thomas Harlan (1929-2010)

“Cópias cor-de-rosa” | “Magenta prints” (O período cor-de-rosa | The pink period #1.2)

As “cópias cor-de-rosa” são um fenómeno explicável historicamente pela substituição progressiva, a partir dos anos 50 e por razões de simplicidade e economia, do sistema Technicolor pelo Eastmancolor. A instabilidade química intrínseca das emulsões positivas do novo sistema manifestava-se frequentemente no rápido desvanecimento da cor, com a particularidade de ser a resistente camada magenta a última a perder densidade. O problema começa com uma dominante castanha nas sombras, perca de contraste, o céus azuis ficam brancos, tudo tende a uma tonalidade vermelha... No final resta apenas um inundante rosa que banha o filme por completo. Esta limitação tecnológica terá sido aparentemente corrigida ou atenuada no início dos anos 80 (depois de uma carta aberta de Martin Scorsese); no entanto, para um cinéfilo pouco conhecedor de detalhes químicos e históricos, o mal já estava feito. A coincidência temporal e a afinidade estilística daqueles filmes cedo deu azo a uma interpretação paranóica, que incluía especulações delirantes sobre o menosprezo de um certo tipo de cinema por parte dos poderes da preservação, etc. E, na verdade, que melhor estatuto de menoridade haverá, para um cinema relativamente recente, do que a dificuldade em encontrar cópias novas e em condições?

[continua]

“Magenta prints” are a historically understandable phenomenon caused by the progressive substitution from the 50’s onwards, for reasons of simplicity and economy, of Kodak’s Technicolor system by Eastmancolor. The intrinsic chemical instability of the new system’s positive emulsions manifested frequently in rapid colour vanishing, with the particularity that the resistant magenta layer was the last one to lose density. The problem starts with a brown dominant in the shadows, loss of contrast, the blue skies turn white, everything tends to a reddish tonality... In the end, an overflowing pink drowns the film completely. This technical limitation was apparently corrected or attenuated in the beginning of the 80’s (following a Martin Scorsese open letter); nevertheless, for a cinephile ignorant of chemical and historical details, the harm was done. The temporal coincidence and stylistic affinity of those films soon gave way to a paranoid interpretation, including delirious speculations about the neglect of a certain kind of cinema by the preservation powers that be, etc. And, truth be told, what better minority status can there be, to a relatively recent cinema, than the difficulty of finding new or able to be shown prints?

[to be continued]

Uma particular cinefilia | A singular cinephilia (O período cor-de-rosa | The pink period #1.1)

«O período cor-de-rosa. Sobre o modernismo tardio no cinema», publicado previamente no catálogo do ciclo Eram os Anos 70, ed. Antonio Rodrigues, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2009, pp. 90-115.


O cinema “moderno”, uma provocação sem objecto e um luto sem fim.
(Serge Daney, 1982)

Uma particular cinefilia não se dá indiferente aos acidentes que a perturbam. Procura, para lá da apetência por determinados filmes, traços que a singularizem, que a justifiquem como anomalia que é. E, ao longo dos anos fechados, certas coincidências acabam por revelar-se significativas. Por exemplo, ter-se dado o caso de descobrir alguns filmes, tornados depois entre os preferidos, em condições estranhas, nada ideais; em concreto, em cópias manchadas de um tom rosa, mais propriamente, num quase insuportável magenta. Assim nos chegaram, lembramos: OTHON (1970) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, MILESTONES (1975) de Robert Kramer, SON NOM DE VENISE DANS CALCUTTA DÉSERT (1976) de Marguerite Duras, JEANNE DIELMAN (1975) de Chantal Akerman, PROVIDENCE (1977) de Alain Resnais, entre outros. Depois deparamo-nos com fotografias de cena ou fotogramas reproduzidos, e não lhes reconhecemos a cor. Eram, no entanto, aqueles os filmes vistos. Algo na nossa experiência de espectador tinha ultrapassado a circunstância nefasta, negligenciando-a. Uma força tinha atravessado a cor, os filmes ainda vivos acercando-se a nós...

[continua]

«The pink period: On cinema’s late modernism», english translation of an essay previously published in the film program catalog Eram os Anos 70, ed. Antonio Rodrigues, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2009, pp. 90-115.


‘Modern’ cinema: provocation without object and endless mourning.
(Serge Daney, 1982)

A singular cinephilia doesn’t come unharmed the accidents it goes through. It reaches — beyond the affinity of some films to each other — for traces that singularize and justify it as the anomaly it indeed is. And, in those years closed inside, coincidences ended up making some kind of meaning. For instance, that a few films — later among favourites — were revealed in strange and far from ideal conditions; specifically, in pinkish stained prints, an almost unbearable magenta, to be more precise. That’s how — we remember — those films came to us: Jean-Marie Straub and Danièle Huillet’s OTHON (1970), Robert Kramer’s MILESTONES (1975), Marguerite Duras’ SON NON DE VENISE DANS CALCUTTA DÉSERT (1976), Chantal Akerman’s JEANNE DIELMAN (1975), Alain Resnais’ PROVIDENCE (1977), among others. We would afterwards notice photos taken at the set of those films or reproduced frames; we wouldn’t then recognized their colour. Those were, nevertheless, the films we had seen. Something in our spectator’s experience had overcome the adverse circumstance by neglecting it. A force had traversed the colour, those films still alive, reaching us...

[to be continued]

Ao pé da letra #114 (António Guerreiro)

Sobre uma revista que é um parque temático e que fornece material para uma etologia da vida literária

«A literatura, que na época do romantismo fez da crítica o seu conceito imanente e, com a sociedade de massas, se tornou objeto da sociologia, entrou na fase em que reclama uma etologia. Em rigor, a etologia nada tem a dizer sobre a literatura, mas é a ciência mais competente para falar sobre aquilo em que esta se dissolve: a vida literária. Entende-se por vida literária o código de comportamentos que rodeiam a instituição literária. A utopia de uma vida literária plena, encontramo-la na revista “Ler”. Até um etólogo de fraco saber percebe, mal começa a folheá-la, que entrou numa reserva de vida especial. Não é que esta vida não habite nas páginas literárias dos jornais. Mas na revista “Ler” todos os álibis foram abandonados e o resultado é uma concentração de vida literária, um encontro jubilante de escritores, editores, críticos, divulgadores, leitores: a grande entrevista que eleva o entrevistado ao Olimpo do Grande-Escritor; as rubricas de fait-divers e de brincadeiras inocentes; as notícias e as listas dos livros a sair (a vida literária tem, por definição, uma tensão prospetiva, declina-se sob a forma do que aí vem); o top dos livros mais vendidos nos países a que o leitor cosmopolita não pode deixar de estar atento; a prodigiosa proliferação (dez, ao todo) de crónicas — o bem mais partilhado neste mundo de sonho.

Tudo alimentado por um fervoroso amor aos livros, até às suas entranhas materiais. A vida barroca e flamejante deste jardim, que é o melhor dos mundos possíveis, tem a sua expressão na eloquência patética de um Candide sem ironia: “O que faz falta na crítica literária portuguesa é a análise superficial” (Jorge Reis-Sá). Só nesta coutada protegida de vida literária, onde reina uma harmonia pré-estabelecida, “um devorador de livros açoriano”, anunciado na capa, não é uma séria ameaça a um escritor que, logo abaixo, ousa dizer em voz alta: “O Livro sou eu.”»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 16.10.2010.

Empty extension (Birth of electronic space #11)

On the other hand, the (philosophical) problem concerning the intensity of space remains. Besides some paradoxes of place, with its superimposed incongruous spaces and times, contemporary cinema seems to offer us an additional dimension that just cannot be expressed by the too general concept of “space”. Can we still elaborate deeply about interior or exterior space in the films of Hou Hsiao-hsien, Apichatpong Weerasethakul, Rithy Panh, Abbas Kiarostami, Pedro Costa, etc.?
Or, on the contrary, are those most impressive exploits already a manifestation of an empty extension? We feel that an important philosophical problem is being incarnated or, better still, being expressed through contemporary cinema (even if one might suspect that what one might call an empty affective extension was anticipated by Henri Michaux’s later writings). Its further and conjoint exploration would perhaps provide a conceptual grid to comprehend it after modern cinema.

[the end]

[Devido à minha ausência de Lisboa, a rubrica mensal «Filmes ‘menores’» fica suspensa até ao início do próximo ano.]


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