Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Desconfianças


«Todo o cinéfilo desconfia da famigerada “relevância sociológica” (ou “política”, ou nalguns casos “cultural”). Quando, a propósito de um filme, se destaca mais a intensidade com que ele reflecte certos assuntos que estão na ordem do dia e a quantidade de
discursos que sobre eles o filme (tornado transparente) permite engatilhar. “A Turma” corre esse risco de se dar a ver como mostruário, “self service” temático de menu “urgente”: a educação, a organização da escola, o multiculturalismo, a integração e a inserção, enfim, uma agenda facilmente confundível com as colunas de opinião na maioria dos jornais e revistas.»

Luís Miguel Oliveira, Público-Ípsilon, 31.10.2008

Todo o cinéfilo desconfia...
Luís Miguel Oliveira tem certamente razão no que diz. Mas o que é mais interessante é que leve suficientemente a sério o seu papel de crítico, no sentido forte da palavra, de modo a inserir algumas observações, que poderiam ser antes as de um ombudsman ou provedor dos leitores, no próprio local da recensão crítica de um filme. E, de facto, a mesma edição em que a sua crítica é publicada dá-lhe razões de sobra. Tanto a capa como oito páginas oito (!) deste suplemento são dedicadas ao referido filme. Claro está, essas páginas estão pejadas precisamente, nos comentários e nas reportagens que incluem, das temáticas que o crítico indica. Como não vi o filme, não é por aí que posso avaliar da justeza de tal destaque. Mas não é sequer essa a questão, pois é facilmente demonstrável que não há relação alguma entre a relevância cinematográfica dos filmes, mesmo medida nos termos pobres das estrelas, e a amplitude dos destaques que são dados.
Dá-se que sou ainda, e há muito tempo, leitor deste jornal e reconheço aqui um padrão. Por um lado, a atenção desmedida a certos objectos e acontecimentos culturais; por outro, a negligência absoluta com muitos outros. Por exemplo, capa e oito páginas para o último filme de Tim Burton; capa e oito páginas para o último DocLisboa, etc. Aliás, dos festivais de Lisboa o Público tornou-se mesmo o órgão oficial. Portanto, se todo o cinéfilo desconfia... há, no entanto, porventura outras coisas mais graves de que até mesmo um cinéfilo deve desconfiar.



A saber: até que ponto os critérios editoriais não estarão a mascarar outro tipo de critérios eventualmente menos legítimos. Custa a crer que seja por livre exercício do abrangente critério jornalístico, neste caso cultural, que se fomente esta desproporção.
Ainda recentemente, e em plena orgia suicida dos mercados financeiros, estreou YELLA de Christian Petzold, um filme precisamente “sobre” capital de risco, ou seja, sobre a especulação financeira. No entanto, o filme foi descartado rapidamente pelo Público com apenas duas menções críticas negligentes. Nada que se assemelhe a uma página, quanto mais oito. Tal discrepância justificar-se-á apenas com critérios editoriais? Ou haverá outras razões, relacionadas com o funcionamento próprio dos jornais e dos meios de comunicação em geral nas nossas sociedades? Tratam-se de perguntas que faço. Não sei as respostas de antemão. Nunca fui jornalista, não conheço os seus métodos de trabalho em pormenor. Mas há sinais evidentes de uma promiscuidade cada vez maior com as agências de informação e os dossiês de imprensa, em que já custa a distinguir o jornalismo cultural da publicidade. O informercial do cinema chega à imprensa escrita em força.
É verdade que o Público até é a excepção, dado que os restantes jornais há muito se demitiram de veleidades. Por exemplo, no moribundo suplemento Actual do Expresso o cinema parece algo de que se deve ter vergonha. Mesmo Francisco Ferreira, que até já entrevistou o realizador de YELLA e lhe teceu laudas então, quando era desconhecido em Portugal, agora que o filme estreia não quis ou foi impedido de escrever sequer uma linha. Depois admirem-se que alguns filmes fiquem apenas duas semanas em cartaz. A propósito, ENTRE LES MURS é distribuído pela Midas de Pedro Borges e YELLA foi-o pela Atalanta de Paulo Branco. Veremos se a cobertura que será feita ao Festival de Cinema do Estoril será igualmente entusiasmante, já que tem um programa no mínimo relevante, mas é organizado por este último, que parece ter gerado bastantes anticorpos ultimamente, a par das suas dificuldades financeiras.



Era necessário esclarecer como acontecem estas coisas, perceber em detalhe como se forma o critério editorial. Uma coisa tão simples como a de fazer um gráfico que relacionasse o número de páginas na imprensa e as semanas em cartaz já ajudava a perceber alguma coisa. Seria um dado para ajudar a um jornalismo de investigação também centrado no jornalismo, porque não? Ou estão os meios de comunicação num ponto cego e inatacável? Como dizia o documentarista americano Frederick Wiseman, muito pouco dado a queixumes, os meios de comunicação são das instituições menos transparentes que existem. Uma das poucas recusas que terá tido, para realizar um dos seus filmes “institucionais”, foi a de um jornal americano. Isto nos EUA, onde essa transparência, ao contrário do que poderíamos ser levados a crer e como provam os seus filmes, é transversal. Imaginem por cá. Também por isso, desconfiemos... mas de tudo.

A mão na boca #2: Mostrar/escrever


Um problema metodológico sério com que se confrontam aqueles que escrevem sobre cinema é o da descrição. Na ausência de imagens ou de excertos de um determinado filme, algo que tem vindo a ser colmatado com as novas combinações de texto-imagem fixa ou em movimento em blogues e revistas de cinema online, como fazer passar o importante para que haja uma apreensão suficiente daquilo que o filme ou a cena são? Como descrevê-la de forma a que a partir dela se estabeleça um terreno relativamente comum onde depois se possa inscrever a partilha da compreensão de um aspecto desse filme? Há o perigo desse terreno comum ser tão estreito, seja por a descrição ser afinal curta ou simplesmente desadequada, que nada possa ser acolhido. Mas o perigo oposto é ainda pior. Cair num cansativo relato de todos os pormenores da acção, da imagem ou do som, que se revelam afinal irrelevantes. Não é difícil pecar por defeito ou por excesso quando se tenta descrever um filme sem ter por fim a descrição. É precisamente no excesso que caem muitas vezes os “críticos” amadores ou os académicos menos inspirados, com relatos intermináveis da estória que, não aquecendo nem arrefecendo, servem apenas para tapar a ausência de algo a dizer.


Quando escrevemos a primeira vez sobre aquilo que nos tinha espantado em ISTORIYA ASI KLYACHINOY, KOTORAYA LYUBILA, DA NE VYSHLA ZAMUZH / A FELICIDADE DE ASSIA (1967) de Andrei Konchalovsky, em «A mão na boca #1: Definição da censura», não tínhamos nenhumas imagens disponíveis para acompanhar o texto. Aliás, mesmo que tivéssemos alguma imagem disponível, provavelmente não a teríamos usado, dado que tentavamos descrever/definir algo de tão particular que não serviria uma imagem qualquer, encontrada online, mesmo que correspondendo à cena a que nos referíamos. Tal uso podia até ser contraproducente, por desviar a atenção do particular em que nos concentrávamos. Por essa mesma razão muitas vezes não se usam imagens para acompanhar os textos, com prejuízo para a atractividade geral deste blogue.
Dizíamos então, nesse primeiro texto, que, confrontado ao que tínhamos visto numa cena particular do filme, e incapaz de logo a definir, nos víamos obrigados a tentar descrevê-la. Era como se estivéssemos a tentar repetir pelo texto o efeito que a visão da cena nos tinha provocado. Talvez seja essa uma das equívocas tentações da descrição.


Tendo apenas a memória de uma visão em sala, centravamo-nos naturalmente naquilo que nos tinha marcado, voluntária ou involuntariamente, pouco importa, nas imagens e nos gestos. Em particular nas que contribuíam para o que procurávamos descrever/definir, que era a forma mais extrema e inocente de censura, assentava então a descrição.
Na ausência da imagem (e quando se diz aqui imagem é num sentido lato, incluindo também o som e todo o bastante que o cinema comporta) corre-se um risco maior, para alguns incomportável, de se poder estar a levar demasiado longe a especulação no que dela ausente se diz. Cresce a suspeita de que possamos estar simplesmente a projectar coisas que não estão lá, e cuja presença só a imagem poderia provar ou desmentir. Esta prova em si parece-nos bastante desinteressante, já que é apenas uma confirmação (ou não) de algo que custou criativamente a formular. Mas há quem retire desses actos de gestão todo o seu entusiasmo. Como dizia um professor, “se contra factos não há argumentos, então que se lixem os factos!” Salvo que a imagem cinematográfica raramente se reduz a factos, o que não faz dela, contudo, algo de impreciso.
Algum tempo depois desse primeiro texto encontrámos uma cópia vídeo do filme, legendada em inglês, num daqueles ficheiros informáticos que circulam pela Internet e que constituem já, no seu conjunto babélico, o maior arquivo cinematográfico.

O que é algo a que as cinematecas terão de aprender a confrontar-se, pois mesmo tratando-se de um acesso e de um visionamento completamente diferente, ainda assim coloca a questão da raridade das obras num outro ponto. Como as coisas estão, não faltará muito para que, em cópia boa ou má, esteja disponível online a quase totalidade da produção cinematográfica, em forma pirateada. Será esse o princípio em que terá de se basear a programação futura. Ou, pelo menos, contar seriamente com ele. E não o inverso, aquele que se aplica hoje, o princípio da raridade, em que a projecção de uma obra se considera a excepção.
Com a possibilidade de rever o filme, ainda que noutras condições, pudemos então confrontá-lo com o que escrevemos anteriormente. Mas esse novo visionamento não nos deu vontade alguma de reescrever o que estivesse incorrecto ou menos claro no texto anterior, mas antes suscitou a tentativa de outra aproximação. Uma aproximação que, em vez do par descrever/definir, tentasse mostrar/qualquer coisa. Ou seja, tentar perceber se ficou algo por dizer tendo as imagens fixas, os fotogramas, como matéria. E que natureza teria esse algo por dizer, se uma de pendor mais descritivo ou, pelo contrário, mais especulativo. Com as imagens perto, pode afinal ser mais difícil voar...



A cena geral que tentávamos definir tem, na verdade, quase dez minutos de duração. Mas aquilo que nos tinha criado perplexidade abrange em particular pouco mais que três minutos. E o seu centro é um gesto rápido de dois ou três segundos. O restante, o próprio relato do velho, não é acessório, no entanto. Cria um contexto, uma seriedade, que amplifica o gesto da criança, mesmo que a posteriori.

Ao rever, a primeira surpresa, aquilo que não nos lembrávamos de todo, era que o gesto da criança era afinal precedido, logo no início da cena, por um breve grande plano do rosto do velho em que a criança, ou melhor, as suas mãos já surgiam passando sobre o rosto dele. Os dedos da criança sentiam a cova do olho e afagavam a sua barba carinhosamente.

Que sentido pode Konchalovsky querer dar ao antecipar desta forma, partamos desse pressuposto, o gesto da censura? Mostrar a familiaridade da criança com o velho, com o seu corpo, estabelecendo desde o início que o outro gesto de censura não adviria da estranheza, da falta de conhecimento, mas antes pelo contrário? Talvez mais simplesmente que nem a simples proximidade corporal seria inédita na cena. A criança já teria ali estado, com as suas mãos naquele rosto enrugado, e repetiria a brincadeira doutra forma. Estabelecia assim uma continuidade, que contribuirá para a ambiguidade da cena, entre aquelas carícias de criança, no seu à-vontade e curiosidade pelo corpo de outrém, e o gesto de censura de que devia ser incapaz.


Depois disto a cena prossegue ainda longamente com o relato por parte de outra personagem de uma história de amor, bem como por outras considerações de carácter romântico. Talvez seja isso que motiva o velho a perguntar-lhes se querem ouvir como a mulher dele o encontrou quando saiu da prisão. O homem ao seu lado, apaixonado pela protagonista feminina que dá nome ao filme, pergunta-lhe porque cumpriu tempo na prisão. O velho responde que foi por nada e começa o relato neste plano mais aberto.




É aqui que a criança se aproxima sorrateira, pouco depois do velho começar a falar. Devagar, a criança atravessa de lado a mesa defronte à câmara e, quando o velho acaba de mencionar que tinha estado num campo, salta de repente com o braço estendido, a mão dirigida à boca do velho, para calá-lo. Era só uma brincadeira...

Vendo assim percebe-se a tremenda subtileza do gesto do realizador, talvez motivado pela argúcia de tentar circundar a censura, o que não terá conseguido, diga-se. De facto, este gesto da criança pode também ser apenas uma brincadeira. Uma criança que impede alguém de falar pelo simples prazer de cortar esse fluxo, de o interromper. Um contraponto à seriedade que antecipa, da qual não quer participar, que não percebe. Mas esta leveza não torna o seu gesto menos poderoso, menos terrível. A coincidência é ainda assim brutal.
Ou talvez fosse uma maneira de Konchalovsky tornar a censura imanente, explícita e interna ao filme. Não havia maneira de evitar aquele gesto inesperado, inofensivo, da criança. Não haveria maneira da censura se colocar fora do filme. A não ser talvez cortando a cena por inteiro, que no entanto se liga com outras. Seria curioso conhecer a versão censurada deste filme, para nos apercebermos do que mantiveram desta cena, de que magias de montagem a censura era capaz. Talvez escreva a Konchalovsky a perguntar...










Em seguida, a reacção dos presentes, inclusive do velho, é jovial, descontraída. A reacção normal perante a brincadeira de uma criança. E esta criança, mantendo a mão na boca, vira a face para trás e olha para os outros, procurando confidentes, solidariedade na brincadeira. A criança abre abrindo um sorriso malandro. Este olhar impressionou bastante na sala, pois sentimo-lo quase dirigido também a nós, procurando solidariedade também entre nós, espectadores. Bastava que ela se tivesse virado apenas mais um pouco e seria explícita essa solidariedade. Mas seria demais. Seria um olhar para a câmara terrível. E desnecessário, pois já estávamos implicados.

Mas Konchalovsky irá, e também nos tínhamos esquecido disto, marcar de forma bem menos subtil, mas provavelmente também necessária, o fim desta parte da cena com dois elementos que fazem absolutamente exceder o âmbito da simples brincadeira, ainda que sob a forma ligeira de uma piada e de um olhar.
O homem defronte ao velho, rindo-se, diz à criança para deixar o avô dizer a verdade. Não me lembro se já antes nos teríamos apercebido se era o seu avô ou não, mas pouco importa aqui. Precisamente, o grande plano do rosto do velho com as mãos da criança tinha estabelecido essa familiaridade, sem precisar de a denominar. E riem-se todos, menos o outro homem, que ficando sério, à piada reage com um olhar menos inocente, não sabemos se censório ou se cínico, e baixa imediatamente os olhos, pensativo.
De todas as formas, é um olhar que quebra o tom relativamente alegre com que a brincadeira da criança e os seus efeitos tinham tintado o relato do velho sobre a sua prisão. E que nos remete sem alternativa para a consciência de que mesmo aquele gesto, simples e tão bonito afinal, esconde algo de terrível, de pesado, de irremissível. Talvez seja esse o dom desta cena, a sua capacidade para mostrar como a censura se torna insidiosa, inescapável. Capaz de tornar até uma brincadeira de criança num gesto perigoso.

O humor colectivista (DocLisboa #14)

De entre os “clássicos e obras primas absolutas dos mais reconhecidos cineastas polacos”, traduzindo, por entre as manifestações algo assustadoras de realismo socialista do Wadja do início dos anos cinquenta e as ironias acinzentadas do Kieslowski dos anos setenta, do ciclo Curtas Polacas sobressaiu principalmente a vitalidade cómica do Marcel Lozinski do início dos anos oitenta.
Em especial com PROBA MIKROFONU/MICROPHONE TEST (1981) e EGZAMIN DOJRZALOSCI/MATRICULATION (1981), Lozinski explora bem o potencial humorístico das estruturas colectivistas dos países socialistas. Havia ali, naquelas experiências sociais gigantescas tornadas realidades concretas, quem sabe se por cínicos terríveis ou ingénuos crédulos, talvez pela combinação dos dois, um substrato tremendo para a comicidade. Era a própria realidade que era cómica. Um pouco como em TORRE BELA e em alguns outros filmes da Revolução ou do P.R.E.C., em que aquilo que é pungente, a espontaneidade popular, é também fonte de um humor que não tem de ser necessariamente azedo, que não se presume superior àquelas emoções colectivas. Está bem de ver que, com o tempo e o falhanço da concretização de algumas dessas tentativas, o humor não terá de todo diminuído, mudando também de cariz. Mas talvez o humor já então estivesse inscrito naqueles sistemas como válvula de escape. Na altura, o potencial disruptivo dos filmes de Lozinski na Polónia e em todo o Leste poderia ter sido assinalável, se estes tivessem sido efectivamente vistos e não censurados, como foram. >


Vejamos: em PROBA MIKROFONU um radialista de uma fábrica de cosméticos interroga os trabalhadores sobre a sua participação na gestão da fábrica, ao que eles respondem, destreinados ou despreocupados, que não têm nada a dizer e que a direcção da fábrica é que decide tudo. Politicamente incorrecto do momento auto-gestionário, claro está, e amplamente negado numa reunião muito democrática e concorrida em que a direcção colectiva da fábrica, através de fórmulas extremamente elaboradas e deliciosamente codificadas, mas muito claras também, dá a entender que não seria útil a emissão da dita reportagem.
No segundo, EGZAMIN DOJRZALOSCI, um conjunto de jovens aguarda por um exame oral de Ciência Política, onde, à medida que saem relatam as perguntas que lhes fizeram e o modo como desavergonhadamente repeteriram o vocabulário codificado do regime e do Partido a professores conscienciosos, de forma a poderem passar e aceder aos cargos do Estado. É toda essa passagem que é descrita, entre a consciência alegre dos jovens, acerca das insuficiências e puras mentiras que o regime faz circular como seu discurso oficial, e a aprendizagem do cinismo, que lhes permite dizê-las sem perder a face ou desatar a rir. Uma verdadeira prova de agregação!
No entanto, algo preocupa enquanto nos rimos destas tentativas sociais ou destas estruturas colectivistas. Não estará o nosso riso habilitado na exacta medida da cegueira que temos em relação às nossas tentativas e estruturas capitalistas, para as quais somos hoje quase insensíveis? Serão por essência as estruturas colectivistas, ou esforços voluntariosos semelhantes, particularmente cómicos? Talvez sejam. Agora rimo-nos um pouco daquele ridículo de outrora, como se já tivéssemos ultrapassado definitivamente tal estado. Mas o estado do ridículo é simplesmente inultrapassável. E se calhar ainda bem que o é. Aguardemos apenas que a nossa própria realidade capitalista e mediática seja também ela adequadamente descrita sob o eixo do humor. Apesar de algumas boas expressões, como a série inglesa The Office ou o cartoon Dilbert, esse eixo está ainda por explorar a fundo. A crise financeira, por exemplo, fornecerá material de sobra. Só então, quando o humor se apropriar do sublime espírito do capitalismo quotidiano, se revelará verdadeiramente aquilo que vivemos. Que bom será então, quando daqui a uns belos anos, alguém for capaz de mostrar que isto que vivemos, com tanta convicção ou apenas forçados pelas circunstâncias, era afinal um esforço do mais patético. Então mereceremos, da por sua vez inconsciente superioridade desse presente, um riso igualmente superior que nos reduzirá à insignificância.

A ciência oculta do projeccionismo (DocLisboa #13)

Os leitores sabem do meu particular fascínio por essa actividade pouco exposta ao escrutínio público que é o projeccionismo. Quer dizer, há muita gente a projeccionar, e a projeccionar-se então nem se fala, mas conhece-se pouco das angústias do dia a dia escuro desses homens lá atrás na cabide de projecção, e ainda menos das contribuições que trazem regularmente à arte cinematográfica. Que os senhores projeccionistas sejam criaturas bizarras, entende-se. Não praticam eles uma ciência oculta? Como poderiam ser doutra maneira? Clãs outrora numerosos e respeitados, de tradições passadas de geração em geração, estão agora reduzidos a indivíduos experientes mas isolados, ou a jovens arrivistas sem a compreensão da grandeza do seu métier. Uma achega aos seus contributos, é o que proponho hoje...

No Cinema Londres, ali para os lados da agradavelmente decadente Avenida de Roma, para além da já referida dificuldade inultrapassável, como é próprio das grandes questões ontológicas, em projectar 16mm, ficámos a conhecer recentemente, graças aos esforços pedagógicos do seu projeccionista, a invenção de um novo modo de enquadrar, que teria sido perpetrado pelos cineastas polacos de curtas metragens. Apesar dos seus estilos assaz diferentes e de terem realizado os seus esforços em décadas diferentes, Andrzej Wajda, Marcel Lozinski e Krzysztof Kieslowski teriam partilhado uma inovação no modo de enquadrar que é muito sugestiva. Nesse novo modelo, as cabeças das pessoas eram cortadas constantemente pela testa, os corpos eram impulsionados para o topo do ecrã, criando uma dinâmica vertical assombrosa, como que sugerindo, certa e insidiosamente, a opressão do sistema comunista sobre as mentes dos cidadãos. >
Fomos depois informados, por nossa infeliz inquirição, que afinal é o Londres que não consegue projectar formatos em 35mm abaixo da lente de ampliação 1:1,66 que possui, o que deixa de fora muito do cinema clássico, entre outras raridades. Mas num festival de cinema quer-se sobretudo modernices actuais, portanto, que importa? Decepcionados e ainda um pouco desconfiados, pois quem prefere uma má ideia verdadeira a uma boa falsa, não é?, tivemos que aceitar a explicação. Na verdade, a nossa crença nesta inovação espectacular dos cineastas polacos tinha sofrido logo de início algumas dificuldades em estabelecer-se, pois a imagem no início da projecção andava de cima para baixo até acertar com as legendas dentro da tela, quase que parecendo que a única coisa que importava era se as letrinhas ficavam dentro ou fora. Privilégios infindáveis do texto! Na verdade, a inovação tinha sido do nobre e ambicioso projeccionista, que sob a involuntária preocupação de pôr pelo menos as legendas dentro da janela, tinha cortado as cabeças, tanto que ficava de fora na imagem. Mas, que não restem dúvidas, mesmo que involuntária, uma pequena “inovação” de um projeccionista em Lisboa pode mudar a História do Cinema Mundial. Ah, se eu tivesse sido menos inquiridor!
Também no Grande Auditório da Culturgest pudemos assistir ao nascimento, não de uma inovação no modo de enquadrar, mas de todo um novo formato. Frederick Wiseman, incitou mesmo o público a louvar a organização, por a projecção dos seus filmes merecer tal homenagem e baptizou na hora o novo formato de WobblyScope (de wobbly: tremido). De facto, os seus filmes em 16mm e, valha a verdade, pelo menos aqui projectados em 16mm, pareciam ter Parkinson, tal a tremideira que os afectava.


Também aqui o projeccionista procurava inovar, não apenas ao estabelecer uma relação entre a idade de Wiseman e a doença que afecta tantas pessoas, num comentário sardónico pouco correcto, como sobretudo no sentido de evidenciar as dinâmicas instáveis que afectam contemporaneamente as instituições que Wiseman retrata.
Mas não se pense que os projeccionistas do Pequeno Auditório da Culturgest ficam atrás! Embora aqui seja toda uma outra escola, já não centrada nas relações dinâmicas, mas mais ambiciosa pedagogicamente no que respeita ao jogo subtractivo imagem-som. É sabido o quanto a análise das relações imagem-som constituem o zénite da cinefilia formalista e quanto o conhecimento íntimo dos filmes avançou pela subtracção à vez de um ou outro desses elementos. Foi nesse filão pedagógico mais avançado que se inseriu o projeccionista da sessão que incluía a curta-metragem documental GONG GONG CHANG SUO/IN PUBLIC de Jia Zhang Ke, aliás bem interessante e adequada a tal tipo de experimentação. É evidente que os projeccionistas mais ambiciosos lutam constantemente contra a incompreensão de uma quantidade de espectadores menos disponíveis para a aprendizagem, agarrados que estão às velhas maneiras estagnadas de ver cinema. Mas, por uma vez, este projeccionista pode contar com a credulidade generosa do público presente, a minha incluída, porventura levado ao engano pela expectativa de se tratar de uma inovação do próprio realizador, pois nunca se sabe e não se quer ficar mal. Pudemos assim assistir à inovadora projecção do filme inteiro sem som, sem por uma vez se ouvir alguém reclamar. Foi bom de ouvir!

Caixote do lixo (DocLisboa #12)

Uma das melhores formas, se não mesmo a melhor, de aferir o estado de saúde de um festival é vasculhar no seu caixote do lixo – a Videoteca. Nesse grande salão dos recusados encontra-se de tudo um pouco, como já o ano passado tinha referido. E pelas recusas, se conseguirmos ler nelas as intenções dos programadores, como os Antigos liam as vísceras, percebe-se alguma coisa. Claro que é dificílimo, pois, na esmagadora maioria dos casos, apenas pelo nome do filme e do realizador é muito complicado ter dados para sequer suscitar a curiosidade. A verdade é que este ano encontrei por lá muito menos substância, mas talvez bastante mais sintomática. Assim, que faziam por lá TULPAN de Sergei Dvortsevoy e NOW SHOWING de Raya Martin, filmes badalados do circuito dos festivais internacionais? E OF TIME AND CITY de Terence Davies, realizador ainda recentemente programado na Culturgest? Já para não falar de RAZZLE DAZZLE do experimental Ken Jacobs. O primeiro, confirmei depois, não foi propriamente recusado, e é um belo filme. Mas o segundo sim. É um direito que assiste aos programadores, fazerem recusas significativas, como fazem escolhas e impõem destaques. Para as pessoas atentas, trata-se apenas de os comparar a posteriori. Para mim, talvez injustamente, o DocLisboa 2008 transformou-se no festival que escolheu e destacou AFTERSCHOOL e HUNGER, ao mesmo tempo que “recusou” TULPAN e NOW SHOWING, com o que isso implica. Diga-se que este último filme acabei por não o ver, mas apenas porque a sua duração excessiva e má cópia me avisaram para uma experiência dolorosa. Mas de coisas sonantes era só isto. Um festival fora de circulação ou apenas ano de má colheita?
Ainda um lamento repetido. Claro que não é o mesmo ver um filme num televisor e numa sala de cinema. Mas, se o lixo é melhor do que as iguarias que nos servem na sala, que podemos nós fazer? E, por falar em lixo, já não se constróem televisores decentes? Os Sony da Videoteca faziam aquele efeito esborratado que tem o serviço digital da Tv Cabo devido ao sinal comprimido. Uma miséria! Sem falar nas opções de formato do ecrã que me deixam à beira da loucura. Não sei se já repararam, ou se não se importam de ver os filmes cortados a torto e a direito, mas nos televisores Sony existem cinco modos: o Expandido, o Inteligente (!), o 4:3, o 14:9 (sic! uma “invenção” da Sony), e o Zoom. Na maior parte destes modos a imagem fica ou completamente cortada ou estupidamente deformada. A preocupação das gentes é que encha as medidas. Horror ao preto do ecrã! Enquanto que na sala o preto está lá para alguma coisa e é muito bem-vindo. Mas, com certos filmes neste televisores, dá-se mesmo o caso de em rigorosamente nenhum dos modos se ter a certeza de simultaneamente se ver a integralidade da imagem e se estar a respeitar as proporções. Estou concerteza a pedir muito. Com tantas pessoas com vergonha do corpo com que vieram ao mundo e generalização da cirurgia estética, as proporções do corpo humano tornam-se finalmente acessórias.

Deterioração (DocLisboa #11)

Um dos filmes mais interessantes deste ano foi o raro VIDEOLETTER (1983) de Shuntaro Tanikawa e Shuji Terayama, programado por Augusto M. Seabra no seu Diários filmados e Autoretratos. Trata-se de uma série de subtis cartas-vídeo trocadas entre dois artistas japoneses. A sua projecção foi particularmente acidentada, mas não daquele modo que cria enervamento. É mais como se algo da fragilidade da composição da obra se tivesse estendido à projecção. Esta concordância é muito mais aceitável do que a negligência habitual. O formato vídeo em que estas cartas-vídeo terão sido filmadas é provavelmente o Hi8, que se caracteriza pelo desbotamento a cores berrantes. A projecção terá sido feita a partir de um formato vídeo também ele extremamente frágil, senão mesmo no original Hi8, pois a imagem era constantemente afectada pelas insuficiências técnicas, que, diga-se, têm plasticamente o seu quê de belo.
Num momento particularmente pungente, já não me lembro qual dos dois autores evocava a sua história familiar através da filmagem de algumas fotografias antigas a preto e branco da sua mãe. A falha arrastada que rompia o ecrã, atravessando-o de uma ponta quase à outra, tornou-se por momentos insustentável e o ecrã ficou neutro cinzento, como que desligado, sem fonte. O leitor ou o projector terão simplesmente recusado ler a informação deteriorada pelo tempo. Por um momento a técnica pôs-se de acordo, deteriorando a própria evocação. Senti aquele vazio como muito apropriado. E, mesmo que não constando originalmente da obra, ficará para mim sempre associado a ela.

Estatuto (DocLisboa #10)

A grande desvantagem de entre as consequências da política dos autores, não sou o primeiro a reparar nisso, é o empolamento constante que é feito de filmes menos conseguidos, mas realizados por autores reconhecidos, com o correspondente menosprezo de filmes mais interessantes, mas cujo realizador nunca (ou ainda não) chegou a atingir esse malfadado e, no entanto, ainda útil estatuto de autor. Muitas programações podem alimentar-se quase exclusivamente dessas obras falhadas, apelando sobretudo a esse reconhecimento. Um nome qualquer, mesmo que não primariamente do cinema, alimenta muito mais curiosidade para um filme do que o de um desconhecido, é natural. As obras não nascem mesmo todas iguais.
Esta fixação no estatuto é um pouco o espelhamento nos cinéfilos da experiência não-selectiva do espectador comum. Este, seja porque razão for, não escolhe em geral os filmes de acordo com a sua experiência acumulada e acaba por repetir muitos desgostos. A cinefilia é a meu ver, e antes de mais, o método de os impedir.
Nos cinéfilos, exerçam estes ou não a difícil e restrita arte da programação, este privilégio do estatuto acaba por empolar obras cujo esquecimento seria bem mais benéfico, elevando-as numa rede de referências biográficas ou históricas que apenas aparentemente justificam a sua recuperação. Claro que esta situação de empolamento é também, ao mesmo tempo, a maior esperança que um cinéfilo pode ter no contínuo abastecimento dos recursos de que precisa para alimentar a sua cinefilia devorante. Se fizermos contas ao mal conhecidas que são certas obras contemporâneas de primeira ordem, imaginem o que não poderá estar escondido, soterrado debaixo dos empolamentos de um século inteiro, em particular após a cisão a meio caminho entre o cinema popular e os outros. O acto de programar terá apenas que se tornar um pouco mais arqueológico, em vez de grandiloquente-historiográfico. E, principalmente, assentar no valor intrínseco, na potência particular interna de cada obra. Sem essa equivalência primária entre todas as obras, que destitua o estatuto, nada feito.

Boxe (DocLisboa #9)

Ver certos filmes é um pouco como levar porrada num ringue de boxe. Entramos dispostos a isso, mas com a esperança que tal não aconteça. Logo de início sujeitamo-nos aos golpes mais duros, alguns deles abaixo da cintura ou mesmo ilegais. Nada que se compare à selvajaria do kickboxing, no entanto. O nosso corpo debate-se cansado, esgotado, com as ideias confusas, tentando defender-se. Porque não desistir e cair no tapete? Seria, sem dúvida, mais saudável. E o cansaço prolongar-se-á muito tempo depois do combate terminado. Mas há algo de tortuoso que nos prende ali, que nos faz persistir no encontro contra aquele outro corpo maligno, desenhado para nos torturar ao máximo, para nos subjugar. São muito apreciados, certos filmes massacrantes.
Mas, assim ao de perto, enquanto notamos o prazer que tomam em nos magoar, em nos subjugar, em fazer dano, percebem-se melhor, bem melhor do que se tivéssemos abandonado antes, as suas limitações, a sua verdadeira pequenez, a sua miséria. Nem todos os dias nos sentimos capazes de contemplar a massacrante pequenez alheia, mascarada de grandeza estética. Queríamos era ser como Muhammad Ali no mítico combate contra George Foreman no Zaire em 1974. Aguentar os golpes dançando, iludindo o cansaço, e, bem no fim, experimentar a reviravolta impensável com uma simplicidade nunca vista. Mas que reviravolta pode experimentar um espectador de cinema sujeito aos filmes-George Foreman vestidos de artista? O que criar de toda a subjugação?

Ao pé da letra #21 (António Guerreiro)

«O que deve a poesia à verdade?

“Verdade ou poesia”: assim intitulava José Miguel Júdice uma das suas recentes crónicas semanais sobre política partidária. Esta proposição disjuntiva reproduz com toda a fidelidade os termos de uma “velha inimizade”, da idade de Platão: aquela entre a palavra poética e a palavra verdadeira. É pertinente verificar que essa cisão, por mais que tenha sido interrogada, por mais que toda a poesia moderna, desde o Romantismo, a tenha desmentido com um grande aparato filosófico, continua a fazer o seu percurso e a ser aceite como a coisa mais natural.

Hoje, ela já não é uma palavra de ordem para expulsar os poetas da cidade, mas a expressão do filisteísmo. Tão famigerada disjunção serve para exprimir uma concepção da poesia como coisa inócua, decorativa, “bela”, a que se recorre para decorar uns saraus, para ensinar aos alunos algumas figuras de retórica, ou para satisfazer o vício do “Kitsch”. O filisteísmo também mata, mas docemente, sem a grandeza trágica que levou o poeta russo Mandelstam a dizer à mulher, quando já estava a ser ameaçado de deportação para o Gulag: “Não há outro país onde a poesia seja uma coisa tão importante, uma questão de vida ou de morte”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 25.10.2008.



A compensação do rosto (DocLisboa 2008 #8)




A tentação da animação para o cinema nunca terá sido maior do que hoje. Neste momento, a sofisticação da simulação tridimensional permite esbater a diferença entre imagens animadas e “reais” em quase todo o tipo de escala de planos, excepto talvez na representação do rosto humano em grande plano. Caminha assim o cinema de grandes efeitos e pirotecnia para uma presença maior do animado. É assim curioso que seja um documentário, precisamente quando confrontado com a espinhosa questão do testemunho, sobretudo com a particular dificuldade em aceitar as consequências desse testemunho, a forçar o rosto humano na direcção da animação.
Em Z32 (2008) de Avi Mograbi, o rosto do soldado que testemunha está permanentemente coberto por uma máscara digital, de início apenas um forte esbatimento que deixa intocados apenas os olhos e a boca, depois uma máscara mais sofisticada feita através da marcação de pontos no rosto, que não permite a identificação do soldado. A justificação para essa ocultação do rosto é o receio de represálias, a vingança por parte de familiares das vítimas da acção desse soldado, aquilo que é o cerne do testemunho.
Trata-se de um documentário israelita, por sinal. Já a animação VALS IM BASHIR / VALSA COM BACHIR (2008) de Ari Folman, também ela israelita e falada em hebraico, que trabalhava o mesmo problema da visibilidade do testemunho, avançava sem muita cautela em direcção ao apagamento dessa distinção entre o animado e o “real”. Talvez haja algo naquele país que os obrigue a esbater estas distinções. Os “progressos” cinematográficos têm as mais estranhas das motivações...
Avi Mograbi, de meia enfiada na cabeça, sentado na sala de sua casa, explica no início como surgiu a ideia do filme. Diz que o projecto nasceu como uma ópera e que se foi diluindo até à forma actual, em que canções de ensemble, quase cabaret, são cantadas por ele e interpretadas por uma pequeno conjunto na sala da sua própria casa.
Ao longo do filme a máscara que cobre o rosto do soldado surge cada vez mais sofisticada. Quer dizer, parece-se cada vez mais a um verdadeiro rosto de um verdadeiro homem. No entanto, trata-se de um rosto de alguém que não existe. Aliás, a cada momento de filmagem é-nos oferecido um rosto diferente, de uma pessoa diferente, inexistentes, como se afinal de vários homens, de vários soldados se tratasse.


Haverá sempre quem encontre aqui uma forma de impessoalidade proveitosa, uma vez que aquele soldado relata uma experiência que não será certamente rara. Mas era preciso o mais singular para que nos fosse oferecido o impessoal de qualquer um.
Apesar da boca e, sobretudo, dos olhos a descoberto, assim como as mãos e o resto do corpo, permanece o efeito perturbador de não nos conseguirmos aperceber das verdadeiras emoções do soldado à medida que este vai relatando as suas actividades ou tentando expressar os seus sentimentos actuais e passados sobre elas. Também a sua namorada, que acompanha o relato e vai interagindo com ele, está coberta pela sua própria máscara, que impede o seu reconhecimento e, simultaneamente, a apreensão do conjunto e subtileza das suas emoções. Há mesmo um momento em que o soldado parece prestes a chorar, mas ficamos na dúvida. Faltam-nos elementos expressivos para o distinguir claramente. Portanto, há uma estreita relação entre estas duas funções, a do reconhecimento do rosto e a da compreensão das emoções de alguém que se expressa. Não podia ser de outra maneira. Apesar da sua pequena dimensão, o rosto mais simples é a superfície mais povoada do mundo.
Este hiato que se abre no rosto mascarado parece-me a razão porque Avi Mograbi se sentiu tentado a cantar no filme. Um rosto a cantar, aliás, não só o rosto mas todo o corpo, “diz” outra coisa do que é dito pelas palavras. Não é difícil prová-lo. Basta compreender como, não apenas somos capazes de cantar músicas de que não compreendemos a letra, por desconhecimento da língua, como nos vemos obrigados enquanto cantamos a uma profusa gestualidade que não é primeiramente imitativa, mas expressiva. Também o rosto que canta, de boca aberta, tantas vezes levantado para cima, como nesta outra imagem, expressa misteriosamente algo cuja correspondência às palavras necessita de confirmação posterior. Assim sendo, o rosto de Avi Mograbi a cantar podia efectivamente, e julgo que teria essa função no filme, seja consciente ou inconscientemente, compensar a máscara que limita, que impede, o pleno testemunho do soldado, a sua expressão afectiva. Seria a compensação do rosto.
A imagem do rosto de Avi Mograbi a cantar em grande plano surge efectivamente, seja isolada, seja interrompendo o testemunho, seja episodicamente cruzada em dissolvência com a dos rostos mascarados do soldado e da namorada. No entanto, e não sei bem porquê, tal não funciona plenamente. A música até é bonita, mas a compensação não se dá. Talvez ela não fosse verdadeiramente possível. Talvez não seja possível substituir-se ao rosto de alguém, ao testemunho de alguém. E a letra do que é cantado também não ajuda. Mancha o rosto aberto, esforçado, de Avi Mograbi com alguma hipocrisia, com pruridos morais por abrigar um assassino na sua sala. Esse luxo da letra, essa soberba, é o conteúdo (que palavra horrível) do seu canto. Esse prurido, no fundo, é um alerta que nos deixa para avaliarmos a coragem do seu gesto de cineasta ao abrigar o testemunho do soldado.
O soldado, por sua vez, é, ele sim, de um tormento digno e reservado, sem o arrependimento espalhafatoso que soaria inevitavelmente falso e obsceno, mesmo que verdadeiro. Essa reserva fica bem expressa quando, sob o calor do descampado onde ocorreram os factos de que presta testemunho, os pontos que definem a máscara do seu rosto apagam-se pelo suor, e, enquanto Avi Mograbi os confirma, ele confessa: “É o meu corpo que resiste. Não se quer deixar apagar”. É também a hesitação e o silêncio da namorada no fim, o seu olhar vazio, que não nos permite saber se o mal-estar se diluiu ou se tornou irremediável naquele amor, que nos oferece a justeza indecidível do que está em causa. E é ela que desliga o filme.

Ortodoxia (DocLisboa 2008 #7)

Chamem-lhe ortodoxia, se quiserem. Mas, para mim, um filme que se inicia com um surdo-mudo a expressar-se em linguagem gestual, mesmo que de forma paródica, em que os sons comuns de acompanhamento que o surdo-mudo faz com a boca não estão síncronos, ainda que dê a volta a toda a costa da Grã Bretanha, nunca poderá ir muito longe [GALLIVANT (1996) de Andrew Kötting].


Dispagates

HISTOIRE DE MARIE ET JULIEN é provavelmente o pior filme de Jacques Rivette, pelo menos de entre os que vi.
NE TOUCHEZ PAS LA HACHE, compreensivelmente, anda lá perto, exceptuando a Balibar e os poucos momentos em que Rivette consegue romper o seu academismo crescente.
[Só para separar as águas.]

Grandeza de Rithy Panh (DocLisboa 2008 #6)

Dos filmes sobre realizadores não há que esperar muito. É muito raro que tenham eles próprios densidade cinematográfica. Muitas vezes o mais que oferecem é a curiosidade documental das afirmações de um artista num determinado momento. Servem assim, entre outras coisas, ao culto da personalidade. Claro que há excepções impressionantes (OÙ GÎT VOTRE SOURIRE ENFOUI?), mas também outros que são apenas telecomandados (TOUT REFLEURIT).
UNCLE RITHY de Jean-Marie Barbe, sobre o realizador cambodjano Rithy Panh, não é excessivamente hábil, pelo contrário. Parece feito um pouco rapidamente nos tempos mortos das filmagens de UNE BARRAGE CONTRE LE PACIFIQUE, como um simples making of. Curiosamente, começa logo aí a sua valia, pois, por contraste à atarefada e distante equipa francesa desta aparentemente decorativa adaptação de Marguerite Duras, que inclui uma afectada Isabelle Huppert, o que nos é dado a conhecer são aqueles que estão mais próximos de Rithy Panh, os seus companheiros cambodjanos de aventura cinematográfica, plenos de uma simplicidade muito mais interessante.
O filme tem como base uma entrevista em francês a Rithy Panh no mesmo cenário, que vamos acompanhando intermitentemente, e que releva o motivo por trás de toda sua obra, o genocídio cambodjado.
O procedimento que verdadeiramente torna este documentário indispensável, no entanto, é a colecção de excertos dos filmes de Rithy Panh que vamos vendo.
Estes excertos parecem excepcionalmente bem escolhidos, o que não é algo assim tão fácil de fazer por entre uma obra cinematográfica complexa. O efeito que produzem é tremendo. Tornam evidente aquilo que poderia ser apenas uma suspeita para os que conhecem um ou outro filme deste realizador, nomeadamente aquele que será o documentário político mais importante da última década, S-21 LA MACHINE DE MORT KHMÈRE ROUGE (2003). A de que existe uma vincada continuidade formal na sua obra, mais até do que temática, e que esta atravessa tranversalmente documentários e ficções, ou mesmo algo no meio como o fabuloso docudrama LES ARTISTE DU THÉÂTRE BRÛLÉ (2005), um dos filmes mais misteriosos que me foi alguma vez dado a ver.
A obra de Rithy Panh é uma daquelas que temos tido a fortuna de acompanhar relativamente de perto, como a de Kiarostami ou Wiseman, outros grandes realizadores contemporâneos. Esteve presente numa das primeiras edições do Doc's Kingdom em Serpa, e os seus últimos filmes passaram no DocLisboa. S-21 até já no templo da Cinemateca entrou.
UNCLE RITHY resulta assim numa muito boa introdução a Rithy Panh, cuja obra possui uma grandeza já inequívoca, se bem que ainda enigmática, como tudo o que é novo.

Uncle Rithy (2008) de Jean-Michel Barbe
Dom, dia 19, 17h30 – DocLisboa 2008, Londres 1

Godard diz... | Godard says... (DocLisboa #5)

«Existe algo de muito perigoso no cinema que é o facto de ele registar a realidade. Nós reconhecemo-la e acreditamos que estamos a fazer alguma coisa por causa disso.»
«There's something quite dangerous in cinema which is the fact that it registers reality. We recognize it and believe we are doing something because of it.»

Jean-Luc Godard, idem

Godard diz... | Godard says... (DocLisboa #4)

«Se o cinema militante tem pouco sucesso é porque não é bom. Porque não entra em relação com as pessoas com as quais devia entrar. Não é um cinema suficientemente desenhado mas demasiadamente escrito. O cinema militante tenta provar de imediato a correcção das suas ideias sem ter os meios intelectuais e financeiros para realizar os filmes que as pessoas se julgam capazes de fazer.
O cinema militante não ousa mostrar aspectos negativos. E isso é um problema político. Muitas vezes as imagens do cinema industrial são más mas o conjunto tem vida. No cinema militante as imagens podem ser boas mas são mortas. O problema é que nós cineastas ficamos perdidos se não temos palavras que guiem a imagem. E então os filmes militantes tornam-se um pouco como guias turísticos que dizem os lugares que devemos visitar. São feitos como prospectos turísticos. É por isso que não têm sucesso. Ao passo que o cinema industrial fala sem dizer nada e nisso é mais esperto.»
«If militant cinema has scarce success it's because it's not good. It doesn't establish a connection with the people it's supposed to. It's a cinema not sufficiently drawn but too much written. Militant cinema tries to prove immediately the rightfulness of its ideas without having the intellectual and financial means to accomplish the films people think they are able to do.
Militant cinema doesn't dare to show negative aspects. And that's a political problem. Often the images of industrial cinema are bad but the whole is alive. In militant cinema the images might be good but they are dead. The problem is that we filmmakers are lost if we don't have words to guide the images. So militant films become a little like travel guides that say the places we should visit. They are made like travel pamphlets. That's why they aren't successful. While industrial cinema speaks without saying nothing and is smarter in that.»


Jean-Luc Godard,
em entrevista
inédita a Luís Carlos Patraquim e Lícínio Azevedo, Maputo, 1978,
publicada na Docs.pt, n.º 7: Moçambique, 2008, p.81

Ao pé da letra #20 (António Guerreiro)

«O capitalismo é a celebração de um culto

Há um fragmento de Walter Benjamin que só recentemente começou a ser lido. Chama-se O Capitalismo como Religião. Os argumentos que Benjamin aí esboça não são simétricos dos que levam geralmente a considerar o comunismo, e por vezes o marxismo, como uma religião. É que o capitalismo, lemos aí, não se define em relação a um dogma ou a uma ideia – é “uma religião puramente cultual, a mais extremamente cultual que alguma vez existiu”.
Um traço que define esse culto é a sua duração, o facto de ser permanente, celebrado todos os dias e a todas as horas, “todos os dias são dias de festa”. E, na definição de Benjamin, o culto não é expiatório, é culpabilizante. À luz deste texto, as palavras que mais se têm ouvido projectam-se com inaudita intensidade neste estado religioso do mundo, precipitado num movimento monstruoso. Uma dessas palavras, “confiança” (a palavra-chave), é a transposição da “fé” para um plano secularizado. E os teólogos dizem-nos que sem esta profana fé a “mão invisível” (do mercado, isto é, do Criador) nos atira para o Inferno. Como haveríamos de duvidar, se até as setas dos gráficos bolsistas, quando apontam para baixo, se parecem com caudas do diabo?»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 18.10.2008.

No Playstation! (DocLisboa 2008 #3)

Agora que, passados tantos anos de desconfiança daquelas máquinas de jogos em meio cinematográfico, quais espécies invasoras do ecossistema periclitante da cinefilia, tinha finalmente percebido a sua função, retiram-nas. Esta edição do DocLisboa já não tem Playstations! Como poderemos agora perceber de que são feitos os filmes que queremos ver?
Alguns destes filmes são raros ou produções mixurucas e não tem trailers que se encontrem na internet. Aquelas geringonças serviam mesmo para alguma coisa.
Que um utilizador médio só ao fim de uns anos perceba como as utilizar e integrar na sua vida, e logo a seguir desapareçam, clarifica um pouco mais a verdadeira natureza da tecnologia, que não parece estar na sua utilidade.

Acreditem (DocLisboa 2008 #2)

Talvez porque me fiz de convidado para a conferência de imprensa de apresentação do DocLisboa 2008, recebi no último dia do prazo, um email a anunciar, em geral, não apenas para mim, o fim dos pedidos de acreditações para o festival.
Fazer-me de convidado é o meu método para isto e para tudo. Há outra maneira? Na verdade, alguma vez houve outra maneira? Ficar em casa, mantendo a sua pureza, a aguardar um convite que julgamos merecido é meio caminho andando para uma personalidade amargurada. Portanto, da alegria que mantenho faz parte o “fazer-me aos lugares”, de que me acusou um jovem tão solícito em heroificação. Isto, claro, com a salvaguarda de não andarmos a lamber o cú a ninguém para fazermos alguma coisa. Não que eu tenha alguma coisa contra lambê-los, mas não para este fim. Não é fácil manter a independência. É ela que está sempre a ser comprada com favores ou anuências.
Mas resolvi arriscar e pedir a tal acreditação, que me permitiria ver os filmes sem pagar. Não é grande luxo, mas uma ajuda mesmo assim. Afinal, mesmo não podendo, para o bem e para o mal, considerar-me parte da imprensa, o que escrevo aqui terá alguma utilidade residual. Dão-se acreditações por bem menos.
Mas foi incrível como este simples pedido, que para além dos bilhetes apenas me daria talvez a singela sensação de pertencer a uma qualquer pequena elite, me tornou imediatamente autoconsciente do que escrevia.

De repente, a preocupação principal passa a ser o ter cuidado com o que se escreve, tentando não ferir as hiper-sensíveis susceptibilidades alheias daqueles que se possam sentir visados por uma crítica ou observação quanto ao seu trabalho. Mesmo não tendo como horizonte, ao escrever sobre cinema, qualquer pessoalização, no nosso contexto acaba sempre por ir lá dar. Alguém há de sentir-se ofendido e a máquina da discriminação começa a mastigar. Somos tão liberais aparentemente...
Se isto acontece a alguém como eu, que conta rigorosamente para nada, imaginem agora o quanto não se sentirão pressionados os críticos e os jornalistas que acompanham a distribuição de cinema e os festivais em particular na imprensa escrita. Há muita coisa em jogo, nomeadamente muito dinheiro envolvido. Talvez esta promiscuidade explique um pouco a apatia acrítica de natureza entusiástica, quaisquer que sejam as circunstâncias, em tons de repetição de press-releases, com que são acolhidas estas iniciativas maiores dos festivais nos jornais e o correspondente esquecimento e negligência a que são votadas obras cinematográficas importantes que ainda encontram uma fresta por onde passar.

P.S.: Hoje, Sábado, dia 18, foi-me atríbuida por fim a acreditação. Que aceitei, claro, agradecido. Seria de uma soberba indesculpável não a aceitar, depois do que aqui escrevi.

Primeiras impressões (DocLisboa 2008 #0)


Uma primeira leitura atenta do programa do DocLisboa 2008 deixa a impressão estranha de uma relativa estagnação criativa. De qualquer modo, nada nesta edição parece permitir falar de um “quase Big Bang”. O mesmo, creio, se passou com o IndieLisboa 2008. Estes festivais, de uma dimensão inaudita no nosso contexto, a par da sua estabilização financeira e de público, não parecem estar a crescer de igual maneira em termos de programação. Deviam preocupar-se com a necessidade de renovação, e mesmo risco, naquilo que é o principal, a programação de cinema. A coexistência de abordagens mais pragmáticas e outras mais ambiciosas é possível. Mas, se se abdica de forçar na programação, corre-se rapidamente o risco de estagnação.
Vislumbram-se este ano dois grandes eixos, que correspondem quase exactamente à actividade dos dois programadores principais. Em primeiro lugar, um eixo político, num sentido muito estrito, uniforme, que não permite sequer destrinçar entre a Competição Internacional e as Investigações. Confesso que nada me suscita curiosidade por estes filmes, embora os seus “temas” seja todos muito interessantes. Logo, nenhum o é. Talvez seja devido ao modo como as sinopses são escritas, como os filmes são apresentados.
Não há nas sinopses qualquer vestígio de uma tentativa de expressar o modo propriamente cinematográfico como os filmes procuram abordar aquilo que tratam. São temas que certificam o bom senso político, as mais das vezes enjoativamente edificantes. O edificante é, aliás, aquilo que mais tresanda no meio do documentário. Parece existir uma tentativa de construção de uma inteligibilidade sem falhas do mundo, de tornar todo o fenómeno mais ou menos marginal compreensível, e, o que é pior, dócil, bem pensante, resolvido. É quase como se estivéssemos a ler umas saudosas Selecções dos Readers Digest mas de esquerda. O programa das Novas famílias, novas identidades é a expressão acabada disto. Ao contrário, diria que faltam filmes que introduzam a falha entre nós e o mundo, que produzam o pasmo, que tornem evidentes os problemas que apenas pressentimos.
O outro grande eixo do programa, sendo mais idiossincrático, em torno dos Diários filmados e Autoretratos, um ciclo que já vai na terceira edição, e dos Riscos e Ensaios (este ano reduzido a apenas oito filmes) oferece sem dúvida mais substância cinematográfica. Mas, apesar de Joris Ivens, van der Keuken e outros, ou a curiosidade por um Morder, ainda aqui fica a sensação de alguma penúria, e a suspeita de que não nascem pérolas em todas as ostras...


Ao festival no seu todo parece sobretudo faltar algo da actualidade cinematográfica, quer dizer, aquilo que de mais radical se produz pelo mundo fora. Aquilo para o qual é preciso estar muito atento. Talvez o vazio criado com a saída de Ana Isabel Strindberg da direcção do festival e da programação tenha contribuído para isso.
Depois há ainda um ciclo de documentário chinês, que poderá revelar um ou outro autor, talvez; fiquei com alguma curiosidade por Huang Wenhai. Pena que não tenha sido incluída a versão integral da obra-prima TIE XI QU / WEST OF TRACKS, que permanece inédita em Portugal. Tendo em conta que a primeira versão, de cinco horas, passou na primeira edição do DocLisboa, e o prémio aí ganho terá sido determinante para a continuação do trabalho de Wang Bing, não teria sido adequado? E há sobretudo a Retrospectiva Wiseman. Não querendo contribuir mais para a entronização do “monstro”, convém mesmo assim reafirmar que não se trata apenas de um documentarista importante; é antes um dos maiores realizadores de todo o cinema moderno. Sem os seus filmes a vida contemporânea, e em particular a americana, a da América que julgamos conhecer da televisão, seria muito mais obscura.
Um aspecto bizarro do DocLisboa diz respeito à tendência, que se acentua este ano, para o cinema matinal. Sempre pensei que essa provação de ver cinema pela manhã era um contrasenso, um castigo merecido para os críticos profissionais. Mas não, agora somos forçados a estar na sala logo pelas 11h da manhã se quisermos apanhar aqueles que são os melhores filmes. E isto durante a semana, portanto, em dias de trabalho. Não é uma indicação clara para quem se pretende programar estes filmes (Wiseman, Depardon, van der Keuken), afinal bons demais para o horário normal. As grandes obras para os alunos e para os indigentes, em suma, para os inofensivos e “inofendíveis”.
Outro aspecto bizarro deste festival, e também do IndieLisboa, é como baseia a sua “dimensão”, bem mais nacional do que verdadeiramente internacional, numa clara subserviência à língua inglesa. Assim, no DocLisboa vamos poder assistir a filmes como o TALE OF THE WIND de Joris Ivens, filme falado em francês de um realizador de origem holandesa. Prefiro chamar-lhe UNE HISTOIRE DE VENT, o seu título original, ou mesmo, porque não, como é conhecido em português, UMA HISTÓRIA DO VENTO. Que necessidade é esta de fazer tudo passar pelo funil de uma terceira língua? Todos os títulos aparecem no programa em Inglês, mesmo que sejam falados em russo ou neerlandês, e projectados para um público maioritariamente falante do português. Porque não em Romeno ou em Swahili? O programa do DocLisboa em Swahili não era divertido? É do mais provinciano que pode haver, este desapego exagerado à língua. Como as crianças-Sócrates que aprendem Inglês na escola antes de saberem contar com os dedos da mão. Como os jovens artistas plástico-conceptuais portugueses, que produzem (é a palavra adequada) as suas obras directamente na língua de Shakespeare, não por consideração pelo poeta obviamente, mas pela superior adequação ao mercado da arte. Só os pobres poetas continuam irremediavelmente agarrados à língua, embora os mais audazes a façam sacudir...
Dito isto, convém salientar que o DocLisboa continua a ser um local onde se podem ver muitos e bons filmes. Mas não vale a pena comparar com o DocLisboa do ano passado (um novo Wiseman, Rithy Panh, Jean-Claude Rousseau, outros de Boris Lehman, Jonas Mekas...) ou mesmo com o documentário no recente IndieLisboa (Hartmut Bitomsky, Harun Farocki, John Gianvito, Pedro Costa...). Haverá alguma descoberta como a de David Perlov o ano passado? E tantos filmes que podiam e deviam ter vindo e não chegaram: RR de James Benning, TULPAN de Sergei Dvortsevoy, SHIRIN de Abbas Kiarostami...

Wiseman em DVD! (DocLisboa 2008 #-1)

Wiseman em DVD! Seria uma boa ideia, se nos estivéssemos a referir à recente edição da sua obra. Mas não, era antes a primeira sessão do DocLisboa 2008, e a correspondente primeira surpresa... desagradável.
Todas os filmes da Retrospectiva Wiseman nas salas do Cinema Londres, com excepção de LA DERNIÈRE LETTRE, cuja cópia é em 35mm, serão projectados em suporte DVD. Ora tomem lá. Isto porque o Cinema Londres não possui um projector de 16mm ou não existem condições para o instalar. O DocLisboa 2008, com o maior orçamento de sempre, de 900.000 Euros, não conseguiu resolver a situação, por exemplo, alugando um projector 16mm ou simplesmente colocando os filmes de Wiseman noutras salas melhor equipadas.
Valha a verdade que os filmes passam duas vezes, uma das quais na Culturgest no suporte original de 16mm, e que esta passagem em DVD é feita com o conhecimento, ou seguindo mesmo a sugestão, da produtora de Wiseman, a Zipporah. Mas, quanto aos espectadores, nada foi afixado a avisar, nem foi feita qualquer menção no programa. Será que consideram o DVD um formato de projecção aceitável? Para quem não sabe, o DVD é um formato extremamente comprimido, certamente melhor do que o VHS, mas muito muito longe da qualidade de uma cópia em película.
Que nos diz então esta poupança ou incapacidade do DocLisboa, quando se trata, segundo as suas próprias palavras, do «convidado de honra em 2008 [...] uma referência absoluta, um monstro do cinema e, para muitos, o maior cineasta vivo do género[, ... o] grande mestre»?
É que, na obra de Wiseman, a questão do material de suporte não é de somenos. Quase todos os seus mais de trinta e cinco filmes foram filmados em 16mm, o que corresponde a uma economia de meios e de tempo da filmagem e da montagem muito particular, inalteradas ao longo dos anos e sempre extremamente demoradas. Wiseman, até agora, nunca “cedeu” ao vídeo, como até Straub-Huillet fizeram.
Que o DocLisboa se veja forçado a obliterar essa economia, que é uma contribuição original de Wiseman e parte integrante do seu cinema, seja para poupar uns tostões ou por uma planificação inadequada, não é nada bom sinal. Diria mesmo mais. É uma falta de consideração pela obra do “monstro”. Mais valia tratarem-no com menos reverência, menos assombração, e mais “consideração”, precisamente, pela simples materialidade do seu cinema e também pelo que essa materialidade dá à experiência dos espectadores de cinema.
Não faz parte das funções de um festival desta dimensão, como do IndieLisboa, subtrair-nos a esta mistura crescente de formatos de pior qualidade, e dar-nos a ver as obras cinematográficas sempre na sua integridade e nas melhores condições possíveis?

Esta insistência não é apenas uma irritação de purista. Há algo de iminentemente falso nas distorções digitais da compressão de um DVD quando aparecem na vastidão de um ecrã de cinema. Essa falsidade pode afectar a apreensão de um filme.



«A CONFISSÃO

1. Palavras foram pronunciadas, mas estão perdidas ou foram cortadas. Resta a imagem dos lábios que se mexem, do corpo que emite. Um actor (que não vemos) modela a sua dicção por esses movimentos de lábios e cola-se a sua voz sobre as imagens para ocupar o lugar das palavras desaparecidas. É o que se chama de dobragem (na qual incluímos, aqui, a pós-sincronização, que emprega a mesma técnica). Que importa que se dobrem a si próprios ou a outros: há de qualquer forma desdobramento. É por isso que a dobragem pode resultar em efeitos perturbadores de discrepância, de flutuação das vozes à volta dos corpos (Fellini, Tati), ou de monstruosidade e de fantasmas (O exorcista). O som roda em volta da imagem como a voz em volta dos corpos. O que o impede de aí se fixar são as palavras perdidas ou suprimidas, as da proliferação original de que testemunha a imagem. Essas palavras não podem ser esquecidas. A dobragem produz um palimpsesto, sob o qual corre um texto-fantasma. É um procedimento centrífugo, que tende para a explosão, para a dispersão. É próprio do cinema sonoro, com o qual foi inventado.

Palavras foram, ou são pronunciadas por vozes: sobre essas palavras, actores (pouco importa se são ou não proprietários dessas vozes) fazem cantar, falar, mexer os seus corpos. É o corpo que se calca sobre a voz, a imagem que se constrói sobre o som. É o que se chama de playback, procedimento velho como o mundo: quer se trate de playback em directo (marionetas, ópera, circo, ventriloquismo) ou em diferido (cinema, desenhos animados). No cinema, o playback foi empregue, parece, desde 1905, nos primeiros ensaios de filmes falantes ou cantantes. O playback é por essência centripeto, é forte no sentido da concentração, da tensão. Supõe também que se deixe cair as palavras pronunciadas, mas são as palavras que servem para mimar (as emitidas aquando da rodagem), que são apenas um texto secundário, um gatafunho por relação ao texto original, aquele que se fala e sobre o qual se constrói. O corpo tende, com o playback, a incorporar a voz, numa aspiração a realizar a unidade impossível.
A dobragem é geralmente utilizada para o texto falado, e o playback para o texto cantado; há excepções para os dois casos.



Banalisado pela televisão, o playback é frequentemente utilizado para efeitos de ubiquidade: filma-se o corpo que mima a voz (seja ou não inicialmente a sua) sucessivamente não importa onde, a cavalo e depois num barco, numa banheira ou numa cena – é a voz, esse fora de lugar, que assegura a continuidade, dá unidade de lugar. Efeito divertido do playback, mas um pouco ligeiro e de tal forma usado que torna muitas vezes preferível a tensão do “som directo”.
Playback e dobragem são procedimentos que no cinema inspiram a suspeita, enquanto efeitos.
Aparece Syberberg que, depois de Straubm Bergman e Losey, tenta o quarto filme-ópera do cinema moderno (não mencionando as inúmeras tentativas anteriores). A sua ideia: usar actores para a imagem, e não os cantores de origem. Talvez estes actores pudessem não fingir que cantam? Parece alimentar por momentos esta ideia, mas dá por si preso à lógica do playback: se não se finge, deixa de funcionar, o corpo e a voz ignoram-se. Todas as personagens deverão assim submeter-se à obrigação da mímica. Mas não vergonhosa, não dissimulada, pelo contrário, na glória plena do playback. Eis que Syberberg aproxima a sua câmara, como nunca o tinham feito, do rosto perturbador de Armin Jordan mimando a voz de Wolfgang Schöne para o personagem de Amfortas, e vê-se o abismo negro da boca, a monstruosidade dos lábios em acção, a besta estranha da língua que avança do fundo da garganta, tudo isto para tentar abocanhar a voz – e fica-se completamente comovido. Noutro lado, eis que nos tira da vista o rapaz que servia de empresta-corpo a Parsifal, para o substituir na vista por uma rapariga que retoma aí onde o outro teve que deixar o canto do tenor Reiner Goldberg, e que continua a cumprir o rito da sincronização, quando esta já não é “fisicamente” credível. Horror ou maravilhamento do espectador, mas a impressão de que algo de forte que se joga alí. E para acabar, no Acto III, os dois corpos do rapaz e da rapariga mimam tão conscienciosamente um como o outro, lado a lado no mesmo plano, a mesma e única voz.

“Erlösung”, diria Wagner, quer dizer, redenção do playback, do seu carácter compósito e insidioso. Porquê? Porque confessado, assumindo a alteridade do corpo à voz que se quer atribuir.
Não existe, diz o filme de Syberberg, um Parsifal como ser único e completo, essa impossível conjunção de compaixão, de saber, de castidade, de simplicidade de alma (“Durch Mitleid wissend, der reine Tor”), há pelo menos dois seres que são como as duas metades irreconciliáveis de que fala o Banquete de Platão. A sua utilização do playback diz-nos também que não existe homogeneidade do corpo à voz, em todo o caso não uma que o cinema possa mostrar de forma verdadeira (essa “batotice do som directo” de que fala Marguerite Duras), não existe senão uma aspiração (o alemão tem uma palavra para isso: “Sehnen”) à unidade, e essa aspiração, o cinema pode mostrá-la, e é mesmo uma das coisas que conta melhor.
Na dobragem alguém se esconde – pode até ser o mesmo que representou para a câmara – de modo a afixar a sua voz sobre um corpo que já representou. No playback está perante nós alguém que investe o seu rosto e o seu corpo para se colar à voz que ouvimos. Trata-se de uma performance a que assistimos, cujos riscos e falhanços se inscrevem na película. Não existe emoção vinda directamente da dobragem enquanto tal; porque o seu princípio é o de escamotear, de fuga, de substituição, não produz senão efeitos indirectos, por vezes belos. O playback é fonte de uma emoção directa e, para empregar uma palavra desvalorizada, física (penso não apenas no filme de Syberberg, mas ambém a certos planos de Judy Garland, Bing Crosby, Liza Minnelli, no cinema musical americano). Ele reúne a imagem no esforço de se incarnar.



2. [...] Syberberg diz-nos: é impossível um Parsifal que responda ao que dele se espera, mas esse impossível ele mostra-o, pelo desdobramento “diacrónico” de Parsifal em duas figuras (momentaneamente reunidas sob o signo da utopia no fim) e o desdobramento “sincrónico” das pessoas em corpo e em voz. Este gesto de mostrar o impossível, naturalmente, não pode ser senão único, e aqueles que depois dele o retomassem, para significar a mesma coisa, o desdobramento andrógino de Parsifal, talvez voltassem a escamoteá-lo.
O impossível [de] Parsifal, enquanto [filme], é a fusão corpo-voz, aquilo a que propus chamar o anacusmetro integral [anacousmêtre intégral].

3. O playback à maneira de Syberberg retoma assim aparentemente o procedimento ao contrário. No momento em que um actor empresta-corpo, empresta-rosto, mima os movimentos da boca e do corpo em sincronização com a voz pré-gravada, não é para nos levar a acreditar que é ele? Mas quando esse empresta-corpo é ostensivamente designado como estranho à voz que ele se atribui, seja porque fisicamente não cola a essa voz (um rosto de rapariga sobre uma voz de homem), seja porque estão os dois concorrentemente a reivindicá-la, para que serve então a sincronização? Deixemos essa formalidade de lado! Foi o que tentou para o seu papel, como sabemos, a sublime Edith Clever: mas isso não resultava. Podemos pensar, com efeito, que já nada religava então o rosto à voz, a não ser uma vaga petição de princípio. Mas em que se torna a sincronização quando já não está destinada a conquistar a nossa crença? Chantagem através do portento físico? Não apenas. Toma então um sentido quase ritual.
Uma observância, que rediz as palavras já ditas para as reactualizar. Por ela, a imagem diz ao som: cessa de flutuar por aí e vem habitar em mim. O corpo abre-se para acolher a voz (o inverso do sistema bressoniano, em que a voz dobrada filtra como que contrariada da clausura serrada dos lábios).
No playback o corpo confessa-se marioneta que anima a voz: em Parsifal tudo parte da marioneta [...]. Em Syberberg [...] há este ponto de partida da voz que estava no início, e que estará sempre de passagem pela casa da imagem.
Relembremos, a meio do Parsifal de Syberberg, esse momento da passagem de poderes [passation]: Parsifal 1, o rapaz, arrastou-se do beijo da Mãe, começava a ganhar corpo, humanidade, mas eis que Parsifal 2, a rapariga, chega, coloca-se lado a lado, e toma o lugar do canto, com a maior seriedade, enquanto que Parsifal 1 se apaga. Com este, ainda que a sua silhueta de rapaz fosse improvável com a vigorosa e viríl voz de tenor que levava, anda podiamos acreditar que era ele. Com Parsifal 2, o corpo sabe que não é senão a morada provisória, já não espera fundir-se com a voz, e daí a sua tristeza, por detrás da máscara fria e determinada de Karin Krick. É preciso terminar a partição, é preciso cumprir o que estava escrito.

Michel Chion, «L'aveu», [trad. parcial]
La voix au cinéma, Éditions de l'Étoile, 1982, pp. 129-131.

As imagens de PARSIFAL que acompanham a publicação deste texto no livro de Michel Chion não são exactamente as que apresento aqui. Não tive a preocupação de as fazer corresponder assim. Em particular, Chion usa uma imagem de Karin Krick (Parsifal 2) a mimar o canto de forma mais explícita, com a boca mais aberta, que faz aqui falta. Por outro lado, nas suas imagens, não vemos Michael Kutter (Parsifal 1) a cantar em grande plano, o que me parece adequado mostrar. Ainda assim, penso que estas imagens expressam a potência particular da cena que Chion procura pensar.


Parsifal (1982) Hans-Jürgen Syberberg
Manoel de Oliveira: ver e rever todos os filmes e mais alguns ainda...
Dom, dia 12, 15h – Auditório do Museu de Serralves, Porto

Ao pé da letra #19 (António Guerreiro)

«Onde fica Max Weber, na ética do capitalismo?

Max Weber tem andado nas últimas semanas bem cotado na bolsa: a insistente reclamação de uma “ética do capitalismo” alude implicitamente a esse célebre estudo de 1905 onde o sociólogo alemão desenvolve a teoria das relações entre o “ideal-tipo” do ascetismo protestante e o “espírito do capitalismo”. Mas a obra de Weber é pouco compatível com as actuais reclamações de uma “ética do capitalismo”. Na sua reconstrução histórica do processo de secularização, Weber define aquilo a que chama de “paradoxo da racionalização”, segundo o qual, no auge do capitalismo, a liberdade individual e o processo de autonomização se transformam em destino de “ausência de liberdade”.

Nesta fase do capitalismo, marcada por uma “crescente racionalização do domínio do mundo”, ter-se-ia dado, diz ele, “a evaporação do espírito”. A partir desta antinomia (a liberdade negada pela racionalidade), Weber vai ao ponto de perguntar se a democracia e a liberdade são possíveis, a longo termo, sob o domínio do capitalismo tardio. E, à “tradição democrática transmitida pelo puritanismo protestante”, opõe a “fisionomia autoritária do capitalismo americano”. Ética do capitalismo? Só esquecendo Max Weber.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 11.10.2008.

Do outro lado do rio. Uma conversa com Christian Petzold



Entrevista com o realizador alemão Christian Petzold, de cujo filme YELLA (2007) acaba de estrear. A versão completa desta entrevista será publicada em breve, esperemos.

André Dias – Enquanto realizador, participa numa espécie de cinefilia não intelectual, heterogénea, que inclui tipos de filmes muito diferentes...



Christian Petzold – Participei num seminário de Harun Farocki, enquanto estudava cinema, que tinha este nome fantástico: Como vêem os filmes. No duplo sentido de como o filme vê o mundo e de como se vê um filme. Está aqui expressa toda a tensão do cinema. Aprendi tudo ali, devo dizer. Os filmes não eram destruídos pela análise. Ficavam cada vez mais ricos. O que víamos eram as suas camadas, algo ligado ao fazer dos filmes e não a algo teórico. É dessas mesmas coisas que agora falo com os actores ou com o operador de câmara. Cada filme trata dessas camadas sociológicas, filosóficas, mas também das velhas estórias, dos contos. Pode reflectir-se, pois não se tem que ser estúpido para fazer um filme. Mas não gosto dos filmes que mostram que têm pessoas inteligentes por detrás. Quero um trabalho colectivo, para que as camadas cheguem de outro modo à atenção.

Na génese de YELLA está precisamente essa estranha conexão entre um filme de terror – CARNIVAL OF SOULS (1962) de Herk Harvey – e um documentário – NICHT OHNE RISIKO (2004) de Harun Farocki.







CARNIVAL OF SOULS era o meu filme preferido quando tinha 18 anos. Confesso que entre os 15 e os 25 anos via apenas este tipo de filmes. Roger Corman e outros, para mim, isto é o cinema. Não via filmes baseados em obras literárias. Mais tarde lembrei-me do conto de Ambrose Bierce – «An Occurrence at Owl Creek Bridge» (1890) – que tinha lido com 14 anos na escola. Na minha cidade já não havia cinemas. Tinham todos desaparecidos no final dos anos 60. A biblioteca pública era o nosso cinema. Íamos às salas de leitura conferir os livros que não podíamos levar para casa porque tinha que se ser maior de 18 anos para os ler. E líamos todos esses policiais, contos de terror, Nabokov, etc. Fiquei muito impressionado pelo de Ambrose Bierce. Quando anos mais tarde vi aquele filme, li algures que era baseado neste conto. Isto abriu-me um caminho.
No final dos anos 90, Harun Farocki fez um documentário chamado DIE BEWERBUNG / A ENTREVISTA. Fiquei tão impressionado que lhe disse que queria escrever um argumento sobre uma rapariga da Alemanha de Leste que quer ir para o típico mundo ocidental. Depois haveria um homem dos sindicatos que lhe ensina como arranjar um emprego. Mas o seu namorado mata-a. Ela não sabe que está morta, vai para o Ocidente trabalhar com aquele homem dos sindicatos, mas morre como no CARNIVAL OF SOULS.
Durante o nosso trabalho conjunto no argumento, há oito anos atrás, Harun Farocki percebeu que havia algo de errado na estória. Nós não sabíamos nada acerca do mundo ocidental. O problema não era o Leste, era não saber como funciona o trabalho no capitalismo. O homem do sindicato, a fábrica onde ela queria trabalhar, não me davam nenhum feedback durante a escrita. Era como uma caricatura saída da minha cabeça. Parámos com o projecto e entretanto fizemos outros três ou quatro filmes. Depois, quando o Harun Farocki realizou esse documentário sobre capital de risco – NICHT OHNE RISIKO, percebi que podia ser interessante. Podia ser o outro lado do rio. Retirar estas coisas antigas, substituir o sindicato por estes investidores de risco. É aqui que algo acontece. Estamos a falar de multitude, do fim das nações, da palavra “povo”, e das grandes entidades colectivas, e temos ao mesmo tempo estas figuras à Bonnie & Clyde, que são o que é mais interessante no mundo, o que é novo. Dentro destas coisas novas há também algo de muito mau, de muito brutal. Como no filme, Philipp, o homem sem família, apenas com um carro. É livre, vive em hotéis e não é responsável por nada socialmente. Contudo, é também o homem que traz a morte. A partir desse momento, posso então entender porque vai Yella para o outro lado do rio, para aquela outra vida do capitalismo.

O filme termina de uma forma estranha. Parece-me que é uma característica da Nova Escola de Berlim essa tendência para explorar os finais abertos para lá do cliché.



Penso que o começo e o final de um filme tem que ser fechado/aberto. Eyes wide shut! Depois do final poderia haver um outro filme de 90 minutos. Na vida passa-se o mesmo. Estamos feridos, o nosso corpo está cheio de cicatrizes da vida. Uma cicatriz é um filme. Uma outra também poderia resultar num filme. O que se passa depois podia também ser interessante, mas já não temos o poder de contar a estória. O filme perdeu esse poder. É do que gosto nos westerns americanos. John Wayne, no final de THE SEARCHERS / A DESAPARECIDA de John Ford, vai-se embora para uma terra de ninguém. A Guerra Civil americana acabou, ele não tem família, está muito sozinho, e é esse o final do filme. Odeio como naqueles filmes de Leste, da Checoslováquia ou assim, se acabava sem mais nada. Pronto, é só isto o fim...

Coloca de novo a questão dos géneros, do filme negro ou policial, as estórias de crime, no interior dos seus filmes, mas sem fazer disso uma citação inteligente, uma apropriação pós-moderna. É uma herança que quer prolongar?

É algo que tem que ver com a New Hollywood, a Hollywood pós-clássica que começou em meados dos anos 60. Para mim, com o crime começa o cinema e não há cinema sem crime...

A girl and a gun...


Ou a boy and a gun! O crime, mas também o amor. Mostrar pessoas que estão no limite. Pode ser com o crime, ou com questões políticas, mas tem que se chegar a um limiar e trabalhar essa fronteira. Alguém abre a janela, cheira algo que nunca tinha sentido, e fica irritada. É disto que gosto. Outra coisa de que gosto bastante é de pessoas muito cansadas. No cinema americano, os heróis estão tão cansados. Não querem ser heróis. Têm sessenta e oito anos, estão parados num quarto de motel e os assassinos vão entrar por ali adentro. Por isso têm que acordar para a vida por uma última vez. Esta situação trágica e cansada impressionou-me muito quando era jovem. O cinema ainda necessita destas situações limite porque quando se dá um crime discute-se sempre a própria sociedade. Como disse Adorno, pode haver verdade numa sociedade mentirosa? É disso que andam as personagens à procura. Pode haver amor autêntico, emoções, num mundo capitalista global?


Não havendo um investimento equivalente na psicologia das personagens, encontramos depois nos seus filmes uma espécie de discurso não-explícito, um subtexto sobre as mutações do capitalismo, a tecnologia, as câmaras de vigilância, etc. YELLA é quase exclusivamente sobre isto. Uma estória de fantasmas que é, ao mesmo tempo, a de um país que se converte ao capitalismo.

Não gosto quando se contam estórias na perspectiva de uma sociedade naturalmente boa, onde depois existem as câmaras de vigilância que são más, ou os maus polícias, e que se presume que quando nos livrarmos deles poderemos voltar a uma espécie de autenticidade. Acho isto estúpido e terrivelmente ingénuo. Não é esse o tema dos meus filmes. Quero que o mundo, onde as personagens e as estórias se desenvolvem, seja um mundo realista, de câmaras de vigilância, de zonas de segurança, cheio de roubos e desfalques e chefes, como em Lisboa, Milão ou Berlim. Como contar a estória deste tipo de mundo? A solidão das pessoas modernas não é do mesmo tipo que a solidão romântica do século XIX. Logo, cada filme tem que desenvolver uma pesquisa sobre essa nova solidão; sobre os novos corpos e como estes se olham nos olhos quando se tentam amar, como se tocam, como falam...


Neste caso, o capitalismo dos investimentos de risco funciona também como um novo cenário...
O problema começa quando se tem um acidente de carro e se é culpado, por exemplo. Há um corpo estendido na estrada e não parámos, porque queremos continuar com a nossa vida normal [como no filme WOLFSBURG]. O sentimento de culpa começa a vir até nós e já não existem instituições que nos possam acolher. O novo capitalismo destruiu todas as igrejas e ninguém lá vai. Já não temos casa para onde voltar. Quando não se tem instituições colectivas fica-se por sua conta, como um indivíduo. Como se consegue lidar com estas coisas que estavam cobertas pelas antigas casas? Como se pode voltar para a sociedade, para a segurança? É esta a estória. Era esta também a estória do western ou do film noir, ou da New Hollywood. A New Hollywood é o Vietname, e os americanos, pela primeira vez na vida, são os maus. O cinema fica tão irritado. Quando se vê STAR WARS, que é o fim da New Hollywood, há o mal, mas está lá muito longe, como a força negra. Mas até lá, os filmes estavam muito irritados. Como com a Guerra Civil no western, ou Grande Depressão dos anos 30 no film noir. Os alemães, os judeus, como Peter Lorre e assim, os que fizeram a luz, conseguiram fazer passar os seus receios europeus nesta atmosfera deprimida do país de Rockefeller que o fotógrafo Walker Evans percorreu. Pela primeira vez, a sua própria casa já não era um lar. As crises são o fundamento dos filmes. Na Alemanha não tivemos uma crise tão grande como a Depressão ou a Guerra do Vietname, e Adolf Hitler desvaneceu-se um pouco, mas existem muitas pequenas crises. Há a crise do trabalho, do individualismo e das instituições. Isto tem que ser o estúdio onde se tem que trabalhar, na escrita e na filmagem. São estas as coisas de que falamos, com os produtores ou os actores, na viagem até aos locais de filmagem. Não estamos só a pensar onde colocar a câmara para fazer uma imagem. Essa imagem tem que ser boa porque é parte das coisas que estamos à procura.


Vê esta sua Trilogia dos Fantasmas, que também inclui DIE INNERE SICHERHEIT/THE STATE I AM IN (2000) e GESPENSTER/GHOSTS (2005), como aparentada a um mal-estar [Unbehagen]?



Tem novamente que ver com o perder as casas, as instituições, as estruturas colectivas. E o receio de as perder. Com a individualização as pessoas, que não conseguem encontrar grupos nem a energia a eles associada, começam a transformar-se em fantasmas. Fantasmas são as figuras que não têm casa, que não têm realidade à sua volta. Sendo a realidade cada vez menor, eles perdem-na, apesar de lutarem por ela. Creio que é este o trabalho dos fantasmas. Um trabalho aparentado à palavra Unheimlich [a “inquietante estranheza” de Freud], que tem no seu interior a palavra “casa” [Heim]. Está-se num lugar que podia ser a nossa casa, mas já não é. Unheimlich não é algo fora. É o mundo normal que já não responde. Pode ver-se nos filmes. Alguém chega a casa depois do trabalho e está lá a família, as crianças, com a televisão ligada. Olha para aquilo e já não é envolvente, já não é a sua vida normal. Gosto disto. Desde que o cinema existe é sempre esta estória do tornar-se Unheimlich.


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