Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Estatuto (DocLisboa #10)

A grande desvantagem de entre as consequências da política dos autores, não sou o primeiro a reparar nisso, é o empolamento constante que é feito de filmes menos conseguidos, mas realizados por autores reconhecidos, com o correspondente menosprezo de filmes mais interessantes, mas cujo realizador nunca (ou ainda não) chegou a atingir esse malfadado e, no entanto, ainda útil estatuto de autor. Muitas programações podem alimentar-se quase exclusivamente dessas obras falhadas, apelando sobretudo a esse reconhecimento. Um nome qualquer, mesmo que não primariamente do cinema, alimenta muito mais curiosidade para um filme do que o de um desconhecido, é natural. As obras não nascem mesmo todas iguais.
Esta fixação no estatuto é um pouco o espelhamento nos cinéfilos da experiência não-selectiva do espectador comum. Este, seja porque razão for, não escolhe em geral os filmes de acordo com a sua experiência acumulada e acaba por repetir muitos desgostos. A cinefilia é a meu ver, e antes de mais, o método de os impedir.
Nos cinéfilos, exerçam estes ou não a difícil e restrita arte da programação, este privilégio do estatuto acaba por empolar obras cujo esquecimento seria bem mais benéfico, elevando-as numa rede de referências biográficas ou históricas que apenas aparentemente justificam a sua recuperação. Claro que esta situação de empolamento é também, ao mesmo tempo, a maior esperança que um cinéfilo pode ter no contínuo abastecimento dos recursos de que precisa para alimentar a sua cinefilia devorante. Se fizermos contas ao mal conhecidas que são certas obras contemporâneas de primeira ordem, imaginem o que não poderá estar escondido, soterrado debaixo dos empolamentos de um século inteiro, em particular após a cisão a meio caminho entre o cinema popular e os outros. O acto de programar terá apenas que se tornar um pouco mais arqueológico, em vez de grandiloquente-historiográfico. E, principalmente, assentar no valor intrínseco, na potência particular interna de cada obra. Sem essa equivalência primária entre todas as obras, que destitua o estatuto, nada feito.

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