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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Primeiras impressões (DocLisboa 2008 #0)


Uma primeira leitura atenta do programa do DocLisboa 2008 deixa a impressão estranha de uma relativa estagnação criativa. De qualquer modo, nada nesta edição parece permitir falar de um “quase Big Bang”. O mesmo, creio, se passou com o IndieLisboa 2008. Estes festivais, de uma dimensão inaudita no nosso contexto, a par da sua estabilização financeira e de público, não parecem estar a crescer de igual maneira em termos de programação. Deviam preocupar-se com a necessidade de renovação, e mesmo risco, naquilo que é o principal, a programação de cinema. A coexistência de abordagens mais pragmáticas e outras mais ambiciosas é possível. Mas, se se abdica de forçar na programação, corre-se rapidamente o risco de estagnação.
Vislumbram-se este ano dois grandes eixos, que correspondem quase exactamente à actividade dos dois programadores principais. Em primeiro lugar, um eixo político, num sentido muito estrito, uniforme, que não permite sequer destrinçar entre a Competição Internacional e as Investigações. Confesso que nada me suscita curiosidade por estes filmes, embora os seus “temas” seja todos muito interessantes. Logo, nenhum o é. Talvez seja devido ao modo como as sinopses são escritas, como os filmes são apresentados.
Não há nas sinopses qualquer vestígio de uma tentativa de expressar o modo propriamente cinematográfico como os filmes procuram abordar aquilo que tratam. São temas que certificam o bom senso político, as mais das vezes enjoativamente edificantes. O edificante é, aliás, aquilo que mais tresanda no meio do documentário. Parece existir uma tentativa de construção de uma inteligibilidade sem falhas do mundo, de tornar todo o fenómeno mais ou menos marginal compreensível, e, o que é pior, dócil, bem pensante, resolvido. É quase como se estivéssemos a ler umas saudosas Selecções dos Readers Digest mas de esquerda. O programa das Novas famílias, novas identidades é a expressão acabada disto. Ao contrário, diria que faltam filmes que introduzam a falha entre nós e o mundo, que produzam o pasmo, que tornem evidentes os problemas que apenas pressentimos.
O outro grande eixo do programa, sendo mais idiossincrático, em torno dos Diários filmados e Autoretratos, um ciclo que já vai na terceira edição, e dos Riscos e Ensaios (este ano reduzido a apenas oito filmes) oferece sem dúvida mais substância cinematográfica. Mas, apesar de Joris Ivens, van der Keuken e outros, ou a curiosidade por um Morder, ainda aqui fica a sensação de alguma penúria, e a suspeita de que não nascem pérolas em todas as ostras...


Ao festival no seu todo parece sobretudo faltar algo da actualidade cinematográfica, quer dizer, aquilo que de mais radical se produz pelo mundo fora. Aquilo para o qual é preciso estar muito atento. Talvez o vazio criado com a saída de Ana Isabel Strindberg da direcção do festival e da programação tenha contribuído para isso.
Depois há ainda um ciclo de documentário chinês, que poderá revelar um ou outro autor, talvez; fiquei com alguma curiosidade por Huang Wenhai. Pena que não tenha sido incluída a versão integral da obra-prima TIE XI QU / WEST OF TRACKS, que permanece inédita em Portugal. Tendo em conta que a primeira versão, de cinco horas, passou na primeira edição do DocLisboa, e o prémio aí ganho terá sido determinante para a continuação do trabalho de Wang Bing, não teria sido adequado? E há sobretudo a Retrospectiva Wiseman. Não querendo contribuir mais para a entronização do “monstro”, convém mesmo assim reafirmar que não se trata apenas de um documentarista importante; é antes um dos maiores realizadores de todo o cinema moderno. Sem os seus filmes a vida contemporânea, e em particular a americana, a da América que julgamos conhecer da televisão, seria muito mais obscura.
Um aspecto bizarro do DocLisboa diz respeito à tendência, que se acentua este ano, para o cinema matinal. Sempre pensei que essa provação de ver cinema pela manhã era um contrasenso, um castigo merecido para os críticos profissionais. Mas não, agora somos forçados a estar na sala logo pelas 11h da manhã se quisermos apanhar aqueles que são os melhores filmes. E isto durante a semana, portanto, em dias de trabalho. Não é uma indicação clara para quem se pretende programar estes filmes (Wiseman, Depardon, van der Keuken), afinal bons demais para o horário normal. As grandes obras para os alunos e para os indigentes, em suma, para os inofensivos e “inofendíveis”.
Outro aspecto bizarro deste festival, e também do IndieLisboa, é como baseia a sua “dimensão”, bem mais nacional do que verdadeiramente internacional, numa clara subserviência à língua inglesa. Assim, no DocLisboa vamos poder assistir a filmes como o TALE OF THE WIND de Joris Ivens, filme falado em francês de um realizador de origem holandesa. Prefiro chamar-lhe UNE HISTOIRE DE VENT, o seu título original, ou mesmo, porque não, como é conhecido em português, UMA HISTÓRIA DO VENTO. Que necessidade é esta de fazer tudo passar pelo funil de uma terceira língua? Todos os títulos aparecem no programa em Inglês, mesmo que sejam falados em russo ou neerlandês, e projectados para um público maioritariamente falante do português. Porque não em Romeno ou em Swahili? O programa do DocLisboa em Swahili não era divertido? É do mais provinciano que pode haver, este desapego exagerado à língua. Como as crianças-Sócrates que aprendem Inglês na escola antes de saberem contar com os dedos da mão. Como os jovens artistas plástico-conceptuais portugueses, que produzem (é a palavra adequada) as suas obras directamente na língua de Shakespeare, não por consideração pelo poeta obviamente, mas pela superior adequação ao mercado da arte. Só os pobres poetas continuam irremediavelmente agarrados à língua, embora os mais audazes a façam sacudir...
Dito isto, convém salientar que o DocLisboa continua a ser um local onde se podem ver muitos e bons filmes. Mas não vale a pena comparar com o DocLisboa do ano passado (um novo Wiseman, Rithy Panh, Jean-Claude Rousseau, outros de Boris Lehman, Jonas Mekas...) ou mesmo com o documentário no recente IndieLisboa (Hartmut Bitomsky, Harun Farocki, John Gianvito, Pedro Costa...). Haverá alguma descoberta como a de David Perlov o ano passado? E tantos filmes que podiam e deviam ter vindo e não chegaram: RR de James Benning, TULPAN de Sergei Dvortsevoy, SHIRIN de Abbas Kiarostami...

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