A compensação do rosto (DocLisboa 2008 #8)
A tentação da animação para o cinema nunca terá sido maior do que hoje. Neste momento, a sofisticação da simulação tridimensional permite esbater a diferença entre imagens animadas e “reais” em quase todo o tipo de escala de planos, excepto talvez na representação do rosto humano em grande plano. Caminha assim o cinema de grandes efeitos e pirotecnia para uma presença maior do animado. É assim curioso que seja um documentário, precisamente quando confrontado com a espinhosa questão do testemunho, sobretudo com a particular dificuldade em aceitar as consequências desse testemunho, a forçar o rosto humano na direcção da animação. Em Z32 (2008) de Avi Mograbi, o rosto do soldado que testemunha está permanentemente coberto por uma máscara digital, de início apenas um forte esbatimento que deixa intocados apenas os olhos e a boca, depois uma máscara mais sofisticada feita através da marcação de pontos no rosto, que não permite a identificação do soldado. A justificação para essa ocultação do rosto é o receio de represálias, a vingança por parte de familiares das vítimas da acção desse soldado, aquilo que é o cerne do testemunho. | Trata-se de um documentário israelita, por sinal. Já a animação VALS IM BASHIR / VALSA COM BACHIR (2008) de Ari Folman, também ela israelita e falada em hebraico, que trabalhava o mesmo problema da visibilidade do testemunho, avançava sem muita cautela em direcção ao apagamento dessa distinção entre o animado e o “real”. Talvez haja algo naquele país que os obrigue a esbater estas distinções. Os “progressos” cinematográficos têm as mais estranhas das motivações... Avi Mograbi, de meia enfiada na cabeça, sentado na sala de sua casa, explica no início como surgiu a ideia do filme. Diz que o projecto nasceu como uma ópera e que se foi diluindo até à forma actual, em que canções de ensemble, quase cabaret, são cantadas por ele e interpretadas por uma pequeno conjunto na sala da sua própria casa. Ao longo do filme a máscara que cobre o rosto do soldado surge cada vez mais sofisticada. Quer dizer, parece-se cada vez mais a um verdadeiro rosto de um verdadeiro homem. No entanto, trata-se de um rosto de alguém que não existe. Aliás, a cada momento de filmagem é-nos oferecido um rosto diferente, de uma pessoa diferente, inexistentes, como se afinal de vários homens, de vários soldados se tratasse. |
Haverá sempre quem encontre aqui uma forma de impessoalidade proveitosa, uma vez que aquele soldado relata uma experiência que não será certamente rara. Mas era preciso o mais singular para que nos fosse oferecido o impessoal de qualquer um. Apesar da boca e, sobretudo, dos olhos a descoberto, assim como as mãos e o resto do corpo, permanece o efeito perturbador de não nos conseguirmos aperceber das verdadeiras emoções do soldado à medida que este vai relatando as suas actividades ou tentando expressar os seus sentimentos actuais e passados sobre elas. Também a sua namorada, que acompanha o relato e vai interagindo com ele, está coberta pela sua própria máscara, que impede o seu reconhecimento e, simultaneamente, a apreensão do conjunto e subtileza das suas emoções. Há mesmo um momento em que o soldado parece prestes a chorar, mas ficamos na dúvida. Faltam-nos elementos expressivos para o distinguir claramente. Portanto, há uma estreita relação entre estas duas funções, a do reconhecimento do rosto e a da compreensão das emoções de alguém que se expressa. Não podia ser de outra maneira. Apesar da sua pequena dimensão, o rosto mais simples é a superfície mais povoada do mundo. Este hiato que se abre no rosto mascarado parece-me a razão porque Avi Mograbi se sentiu tentado a cantar no filme. Um rosto a cantar, aliás, não só o rosto mas todo o corpo, “diz” outra coisa do que é dito pelas palavras. Não é difícil prová-lo. Basta compreender como, não apenas somos capazes de cantar músicas de que não compreendemos a letra, por desconhecimento da língua, como nos vemos obrigados enquanto cantamos a uma profusa gestualidade que não é primeiramente imitativa, mas expressiva. Também o rosto que canta, de boca aberta, tantas vezes levantado para cima, como nesta outra imagem, expressa misteriosamente algo cuja correspondência às palavras necessita de confirmação posterior. Assim sendo, o rosto de Avi Mograbi a cantar podia efectivamente, e julgo que teria essa função no filme, seja consciente ou inconscientemente, compensar a máscara que limita, que impede, o pleno testemunho do soldado, a sua expressão afectiva. Seria a compensação do rosto. | A imagem do rosto de Avi Mograbi a cantar em grande plano surge efectivamente, seja isolada, seja interrompendo o testemunho, seja episodicamente cruzada em dissolvência com a dos rostos mascarados do soldado e da namorada. No entanto, e não sei bem porquê, tal não funciona plenamente. A música até é bonita, mas a compensação não se dá. Talvez ela não fosse verdadeiramente possível. Talvez não seja possível substituir-se ao rosto de alguém, ao testemunho de alguém. E a letra do que é cantado também não ajuda. Mancha o rosto aberto, esforçado, de Avi Mograbi com alguma hipocrisia, com pruridos morais por abrigar um assassino na sua sala. Esse luxo da letra, essa soberba, é o conteúdo (que palavra horrível) do seu canto. Esse prurido, no fundo, é um alerta que nos deixa para avaliarmos a coragem do seu gesto de cineasta ao abrigar o testemunho do soldado. O soldado, por sua vez, é, ele sim, de um tormento digno e reservado, sem o arrependimento espalhafatoso que soaria inevitavelmente falso e obsceno, mesmo que verdadeiro. Essa reserva fica bem expressa quando, sob o calor do descampado onde ocorreram os factos de que presta testemunho, os pontos que definem a máscara do seu rosto apagam-se pelo suor, e, enquanto Avi Mograbi os confirma, ele confessa: “É o meu corpo que resiste. Não se quer deixar apagar”. É também a hesitação e o silêncio da namorada no fim, o seu olhar vazio, que não nos permite saber se o mal-estar se diluiu ou se tornou irremediável naquele amor, que nos oferece a justeza indecidível do que está em causa. E é ela que desliga o filme. |
Sem comentários:
Enviar um comentário