Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O humor colectivista (DocLisboa #14)

De entre os “clássicos e obras primas absolutas dos mais reconhecidos cineastas polacos”, traduzindo, por entre as manifestações algo assustadoras de realismo socialista do Wadja do início dos anos cinquenta e as ironias acinzentadas do Kieslowski dos anos setenta, do ciclo Curtas Polacas sobressaiu principalmente a vitalidade cómica do Marcel Lozinski do início dos anos oitenta.
Em especial com PROBA MIKROFONU/MICROPHONE TEST (1981) e EGZAMIN DOJRZALOSCI/MATRICULATION (1981), Lozinski explora bem o potencial humorístico das estruturas colectivistas dos países socialistas. Havia ali, naquelas experiências sociais gigantescas tornadas realidades concretas, quem sabe se por cínicos terríveis ou ingénuos crédulos, talvez pela combinação dos dois, um substrato tremendo para a comicidade. Era a própria realidade que era cómica. Um pouco como em TORRE BELA e em alguns outros filmes da Revolução ou do P.R.E.C., em que aquilo que é pungente, a espontaneidade popular, é também fonte de um humor que não tem de ser necessariamente azedo, que não se presume superior àquelas emoções colectivas. Está bem de ver que, com o tempo e o falhanço da concretização de algumas dessas tentativas, o humor não terá de todo diminuído, mudando também de cariz. Mas talvez o humor já então estivesse inscrito naqueles sistemas como válvula de escape. Na altura, o potencial disruptivo dos filmes de Lozinski na Polónia e em todo o Leste poderia ter sido assinalável, se estes tivessem sido efectivamente vistos e não censurados, como foram. >


Vejamos: em PROBA MIKROFONU um radialista de uma fábrica de cosméticos interroga os trabalhadores sobre a sua participação na gestão da fábrica, ao que eles respondem, destreinados ou despreocupados, que não têm nada a dizer e que a direcção da fábrica é que decide tudo. Politicamente incorrecto do momento auto-gestionário, claro está, e amplamente negado numa reunião muito democrática e concorrida em que a direcção colectiva da fábrica, através de fórmulas extremamente elaboradas e deliciosamente codificadas, mas muito claras também, dá a entender que não seria útil a emissão da dita reportagem.
No segundo, EGZAMIN DOJRZALOSCI, um conjunto de jovens aguarda por um exame oral de Ciência Política, onde, à medida que saem relatam as perguntas que lhes fizeram e o modo como desavergonhadamente repeteriram o vocabulário codificado do regime e do Partido a professores conscienciosos, de forma a poderem passar e aceder aos cargos do Estado. É toda essa passagem que é descrita, entre a consciência alegre dos jovens, acerca das insuficiências e puras mentiras que o regime faz circular como seu discurso oficial, e a aprendizagem do cinismo, que lhes permite dizê-las sem perder a face ou desatar a rir. Uma verdadeira prova de agregação!
No entanto, algo preocupa enquanto nos rimos destas tentativas sociais ou destas estruturas colectivistas. Não estará o nosso riso habilitado na exacta medida da cegueira que temos em relação às nossas tentativas e estruturas capitalistas, para as quais somos hoje quase insensíveis? Serão por essência as estruturas colectivistas, ou esforços voluntariosos semelhantes, particularmente cómicos? Talvez sejam. Agora rimo-nos um pouco daquele ridículo de outrora, como se já tivéssemos ultrapassado definitivamente tal estado. Mas o estado do ridículo é simplesmente inultrapassável. E se calhar ainda bem que o é. Aguardemos apenas que a nossa própria realidade capitalista e mediática seja também ela adequadamente descrita sob o eixo do humor. Apesar de algumas boas expressões, como a série inglesa The Office ou o cartoon Dilbert, esse eixo está ainda por explorar a fundo. A crise financeira, por exemplo, fornecerá material de sobra. Só então, quando o humor se apropriar do sublime espírito do capitalismo quotidiano, se revelará verdadeiramente aquilo que vivemos. Que bom será então, quando daqui a uns belos anos, alguém for capaz de mostrar que isto que vivemos, com tanta convicção ou apenas forçados pelas circunstâncias, era afinal um esforço do mais patético. Então mereceremos, da por sua vez inconsciente superioridade desse presente, um riso igualmente superior que nos reduzirá à insignificância.

Sem comentários:


Arquivo / Archive