Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #5: Playstation

Nisto das tecnologias, não há como não ser um pouco reaccionário. Há que anos que aquelas maquinetas pequeninas para ali estavam, sem que me tivesse sequer posto a hipótese de as conferir. Um espécie de desprezo fazia-me deslizar perante o seu design sem consideração alguma. Quis o destino que os efeitos demasiado notórios da digitalização num filme projectado me tivessem expulso da sala e, enquanto aguardava por uma boleia, me pusesse a brincar, sentado num pufe já um pouco arrebentado que libertava esferovite, com aquelas maquinetas Playstation. Pessoas menos aventurosas gozavam quando passavam, deliciadas por me ver finalmente assim quase deitado no chão, parecendo ter perdido a razão que me resta. A essas digo que ainda não foi desta. Mas, voltanto às maquinetas, afinal para que serviam? E não é que descobri, para meu espanto, que têm lá dentro excertos da quase totalidade dos filmes presentes no festival! Que delícia poder assim escolher o que ver a partir destes excertos. Para o ano, se calhar, já nem será preciso entrar na sala. De qualquer modo, podem dizer que é enganador ver só um poucochinho do filme, em geral até três minutos, mas sê-lo-á menos uma imagem fixa apenas, ou uma sinopse escrita sabe-se lá por quem e com que intenções, ou ainda as recomendações de toda a espécie de gente? Não tem uma pessoa de proteger a sua cabeça dos sopros alheios? Alguns filmes estão simplesmente representados pelos seus minutos iniciais, enquanto outros por uma cena particular ou mesmo pelo trailer. As imagens são pequeninas, é certo, e ouve-se bastante mal, para além do risco de ir parar ao menu errado,
mas o procedimento compensa, pelo menos no que diz respeito à confirmação das nossas intuições acerca de um filme ou outro. Há, no entanto, um primeiro efeito não negligenciável: os filmes passam todos a parecer muito bons. Sabemos, no entanto, que no escuro da sala, enquanto sujeitam a nossa paciência a torturas atrozes, tal não é evidentemente o caso. Algo me fez reviver as tão belas memórias de jogos no Spectrum, em particular, dos jogos de carros de corrida em que, nos momentos de pânico em que era preciso travar, eu me punha a carregar inábil em todos os botões ao mesmo tempo, levando a acelerar ainda mais, com consequências sempre mortais. Aqui passou-se o mesmo. Quando o excerto do filme se aproximava da condução perigosa e eu tentava manter a segurança do meu habitáculo mental, carregava no botãozinho errado e precipitava tudo. Talvez seja por isto que, nesta idade já não tão tenra, ainda não tirei a carta, embora uma antiga namorada me tenha deixado, há muitos anos, fazer em condições mais que ébrias um slalon nocturno num Renault 5 por entre filas de carros na freguesia da Ameixoeira. Bons tempos esses, nem cinto de segurança se usava e ninguém se preocupava. O que mudámos! Por isso, pelo menos se não quiserem recordar aqueles momentos tão livres da vossa infância irremediavelmente perdida em que se aproximavam de todas as maquinetas sem juízos a priori, não se cheguem nem perto. Poderão assim continuar a olhá-las com o vosso leve desprezo e a manter uma posição respeitável perante os olhares dos outros.


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