O espectador ocioso #5: Bolinha vermelha
O primeiro episódio da série documental sobre a Guerra Colonial, realizada por Joaquim Furtado para a RTP, parece ter sido concebido para causar o máximo de polémica e mal-estar, ou talvez consolo saudosista, tal a forma descontextualizada como os ataques da UPA aparecem descritos. Não sei se o conseguiu, mas também não é isso que me interessa. No que me diz respeito, são os meios que utilizou para isso que devem ser avaliados. Nomeadamente, uma pianada depois de um antigo combatente ter saudosamente evocado um piano queimado. Quase que chorei. Mas o mais relevante é o quanto estes modos podem demonstrar como certas decisões sobre o «conteúdo susceptível de ferir a sensibilidade de alguns telespectadores» são tomadas. Refira-se que a dita série, que passou logo a seguir ao Telejornal, mostrava várias imagens de arquivo de corpos decepados, esventrados, inclusive de crianças. Embora o modo como foi montado atenue consideravelmente o impacto dessas imagens, que acabamos por nem ter tempo de contemplar, é curioso que, e apesar de no inicio do episódio aparecer inscrita, como que em aperitivo, a frase «algumas imagens podem ser chocantes», este passe sem o alerta da habitual bolinha vermelha, «um círculo no canto superior direito», como lhe chama a RTP, tendo em conta o horário tão acessível a crianças em idade escolar. | Pois não estamos nós habituados a ver a dita bolinha vermelha, insuportavelmente tridimensional e listada a branco, a ocupar parte da imagem de filmes tão perigosos como Elephant de Gus van Sant ou Lilith de Robert Rossen, especialmente a horas avançadas da noite? No primeiro, julgo que terão querido certamente proteger-nos do beijo entre os dois rapazes no duche, e, no segundo, de uns cabelos na palha levemente lésbica de um celeiro. Efectivamente, lembro-me até de uma vez ter ficado noite dentro a ver um filme, por sinal muito mau, apenas para perceber o que nele justificaria a atribuição de uma bolinha vermelha. (Talvez seja uma astúcia para atrair espectadores noctívagos solitários!) Mas o mais que consegui vislumbrar foi, hipoteticamente, o facto da personagem feminina ser lamentavelmente bêbeda. Ou assim terá pensado o/a agente da moral e dos bons costumes encarregado/a da bolinha. Sejamos claros. Não estou a reclamar qualquer uso da bolinha, mas sim a procurar reflectir como esse uso denuncia aquilo que querem ou não querem que vejamos. Fica mais uma vez saliente que do que lhes interessa proteger-nos é, não tanto a violência explícita, que pode servir claramente os seus interesses promocionais, quanto a violência implícita, perturbadora e problematizadora. Aquela que faz pensar sobre a própria violência, em suma. |