Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Campo

«Num programa atento às contradições da América contemporânea, a Competição Internacional do DocLisboa contempla apenas duas longas-metragens americanas. Mas em Jesus Camp, de Heidi Ewing e Rachel Grady, e Kamp Katrina, de Ashley Sabin e David Redmon, convergem duas das grandes questões que percorrem actualmente a sociedade americana: a religião e a desigualdade social, simbolizadas na recente influência política dos católicos evangélicos fundamentalistas e na destruição catastrófica que o furacão Katrina lançou sobre Nova Orleães. [...]
Formalmente, para lá da utilização do vídeo digital e da recusa da narração em off, substituída pelo uso judicioso de legendas que situam o espectador, tudo separa os dois filmes: Kamp Katrina [...] é interveniente, urgente e amador; Jesus Camp [...] é neutro, rigoroso e reflectido. Mas ambos têm em comum um olhar pouco complacente sobre uma América contemporânea cujas histórias não são geralmente contadas nem pelos noticiários nem pelas ficções, usando como âncora microcosmos representativos de um universo bem maior do que a maior parte das pessoas imagina. [...]»
«Campos opostos»
Jorge Mourinha, in Público-Ípsilon,
12 Outubro 2007, p. 8

« O que aconteceu nos campos [de concentração e extermínio] excede de tal modo o conceito jurídico de crime que muitas vezes se esqueceu simplesmente de considerar a específica estrutura jurídico-política em que esses acontecimentos se produziram. O campo não é mais do que o lugar em que se realizou a mais absoluta conditio inumana que se conheceu na terra: é isto, em última análise, o que conta, tanto para as vítimas como para a posteridade. Seguiremos aqui deliberadamente uma orientação inversa. Em vez de deduzirmos a definição de campo dos acontecimentos que aí se deram, perguntaremos antes: o que é um campo, qual é a sua estrutura jurídico-política, por que é que tais acontecimentos puderam aí ter lugar? O que nos conduzirá a olhar o campo não como um facto histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que podendo ainda verificar-se em termos semelhantes), mas, de algum modo, como a matriz escondida, o nomos do espaço político em que vivemos ainda. [...]
O campo é o espaço que se abre quando o estado de excepção começa a tornar-se a regra. [...]
O campo é, assim, a estrutura em que o estado de excepção, sobre cuja possível decisão se funda o poder soberano, é realizado normalmente. [...] O campo é um híbrido de direito e de facto em que os dois termos se tornaram indiscerníveis.




Hannah Arendt observou uma vez que nos campos se torna completamente claro o princípio que rege o domínio totalitário e que o senso comum se recusa obstinadamente a admitir, ou seja, o princípio segundo o qual “tudo é possível”. Só na medida em que os campos constituem, no sentido que vimos, um estado de excepção, no qual só a lei é integralmente suspensa, mas, além disso, onde facto e direito se confundem sem resíduos, é que neles tudo é verdadeiramente possível. Se não compreendermos esta particular estrutura jurídico-política dos campos, cuja vocação é justamente realizar a excepção de uma maneira permanente, o que de incrível neles aconteceu permanece completamente ininteligível. Quem entrava no campo acedia a uma zona de indistinção entre exterior e interior, excepção e regra, lícito e ilícito, em que os próprios conceitos de direito subjectivo e de protecção jurídica deixavam de ter sentido; além disso, se se tratava de um judeu que já tinha sido privado dos seus direitos de cidadão pelas leis de Nuremberga e depois, no momento da “solução final”, completamente desnacionalizado. Na medida em que os seus habitantes foram espoliados de todo o estatuto político e integralmente reduzidos à vida nua, o campo é também o espaço biopolítico absoluto, nunca antes realizado, em que o poder não se confronta senão com a pura vida sem qualquer mediação. Por isso, o campo é o próprio paradigma do espaço político no momento em que a política se torna biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão. [...]
Se isto é verdade, se a essência do campo consiste na materialização do estado de excepção e na consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma acedem a um limiar de indistinção, teremos de admitir, então, que nos encontramos virtualmente em presença de um campo sempre que é criada
uma estrutura semelhante, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja a sua denominação e a sua topografia específica. [...]
O nascimento do campo no nosso tempo surge então, nesta perspectiva, como um acontecimento que assinala de modo decisivo o próprio espaço político da modernidade. Esse nascimento dá-se no momento em que o sistema político do Estado-nação moderno, que se fundava na relação funcional entre uma determinada localização (o território) e uma determinada ordem (o Estado), mediado por regras automáticas de inscrição da vida (o nascimento ou a nação), entra numa longa crise e o Estado decide assumir directamente, entre as suas tarefas, os cuidados em relação à vida biológica da nação. [...] O estado de excepção, que era essencialmente uma suspensão temporal da ordem jurídica, torna-se agora uma nova e estável disposição espacial, onde habita a vida nua que, cada vez mais, não pode ser inscrita na ordem. A crescente distância entre o nascimento (a vida nua) e o Estado-nação é o facto novo da política do nosso tempo, e aquilo a que chamamos campo é este desvio. [...]
Agora, este princípio [de nascimento] entra num processo de deslocação e deriva em que o seu funcionamento se torna com toda a evidência impossível, deixando entrever não só novos campos mas também novas e cada vez mais delirantes definições normativas da inscrição da vida na Cidade. O campo, que presentemente se instalou solidamente no interior dela, é o novo nomos biopolítico do planeta.»

«O campo como nomos do moderno»
Giorgio Agamben, O poder soberano e a vida nua. Homo sacer, trad. António Guerreiro, Presença, Lisboa, 1998, pp. 159-168


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