Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Vida do subúrbio





Apenas cinco cenas tem esta curta metragem. Mas funcionam em profundidade e valem afinal por muitas. São uma espécie de microcosmos dramáticos em se dão tantas conjugações de sentidos, tantos elementos de leitura. E é todo um modo de vida, um lugar de vida, e mesmo um mudar de vida que ficam nela desenhados. Que vida é esta? A experiência encapsulada deste filme, o conjunto aprisionado lá dentro, é a vida do subúrbio. Como diz uma personagem exasperada, «esta vidinha de subúrbio». Mas o filme não é de todo um retrato de oprimidos, pois as personagens lidam muito diversamente com essa vida. E por isso que é tão difícil pensá-lo, fazer justiça à sua complexidade. Porque estas posições, por vezes quase contraditórias, não o deixam cair numa decisão qualquer sobre a valia dessa vida. Aliás, não se coloca qualquer questão de valia, antes se procura responder às solicitações de lá se pertencer. Daí talvez se possa pressentir o tom levemente, disfarçadamente angustiado do filme.
O mundo que nos revela é então composto por relações sustentáveis, entre as personagens umas com as outras, as concepções de vida que têm, o modo como as exprimem, o trabalho que as subtrai ou não a essa vida. Mas não revela esse mundo por o mostrar directamente, focando individualmente elementos como o trabalho, as relações amorosas, as relações filiais, etc., como faria um documentário típico, mas pelas suas próprias subtis ramificações ficcionais. E aqui é preciso não ter receio de defender o carácter propriamente documental desta ficção, mesmo que curta. >
É que este filme funciona como documento-monumento de todo o modo oculto da vida suburbana, de documentação inédita, por não expressa num cinema português demasiado citadino ou rural. Ficou toda a imensa zona cinzenta de cimento e betão em que o país se tornou por cobrir, e tal não nos foi dado a ver nem a pensar no cinema. As pequenas localidades em redor das grandes cidades tornaram-se subsidiárias destas e a vida parece aí desenrolar-se entre dois pólos de atracção, a de um passado vindo de outras terras, provavelmente do interior rural, e a da grande cidade como sol distante que a rege. As personagens viradas para um ou outro lado estão neste hiato habitacional. Custa ver, mas era e é claramente necessário.
Portanto, o que estava por mostrar não eram sobretudo as condições materiais dessa vida, mas mais as condições subjectivas de como ela é levada. E os pesos que isso implica para a vida de cada uma das personagens, quase que soterradas pela gravidade que parece ali se fazer sentir acentuadamente. É a outra face da “evolução” da sociedade portuguesa, não tanto a dos deserdados ou excluídos que possam ainda funcionar como proto-comunidade utópica, mas a de outra que ainda não é a que tem mais brilho, a que no fundo acaba por sustentar a vida aparente dos centros comerciais, do culto da imagem corporal, da proliferação de telemóveis, etc. Há, a meu ver, uma concordância entre a vida do subúrbio e a vida que existe por detrás destas plastificações todas.


Para ver isso foi preciso que alguém viesse de lá, com a sua visão e modo, com a sua estrutura moral também, que não é inócua. Porque, por exemplo, atrás de uma frase como «As pessoas servem-se, consciente ou inconscientemente, de coisas como as habilitações académicas, a educação, enfim, aquilo a que tu chamas a inteligência. Servem-se desse tipo de coisas parar se elevarem perante as outras pessoas, para exercerem sobre elas diversos tipos de forças», talvez se esconda mais uma posição quase defensiva, que obrigaria a manter uma ocultação das coisas do mundo, inclusive os objectos culturais, como formas potencialmente segregadoras, do que um diagnóstico de uma segregação que é bem conhecida. Também isso vêm de lá.
E em particular nas obras iniciais, não se escolhe propriamente o que se é dado a retratar. As experiências de vida que se tiveram compõe uma sedimentação que só pode concluir na descrição de um certo tipo de vida que se conhece bem. Assim, por exemplo, Rapace de João Nicolau é, apesar do, ou precisamente pelo seu acentuado sentido de humor, a tipologia de uma geração burguesa que quer antes de mais ser cool, em torno do eixo Telheiras-Benfica, e que se compraz numa (auto-)irrisão, saudável ainda assim. Percebe-se que o humor seja diferente em Estação, onde a sombra do dinheiro e a posição social correspondente está sempre presente. E o cinema também tem que ver com estas coisas. E também com o não se sentir bem na sua pele.
Sair ou permanecer no subúrbio, aceitar ou não a sua lei não-escrita, se se a quiser reconhecer, aparece inscrito em quase

todas as personagens jovens deste filme. Quase todas parecem então posicionar-se por relação a esse problema, o de saber se irão viver no mesmo sítio, com mais dinheiro, por exemplo, ou viver noutro sítio, diferentemente. A atracção pelo relativo cosmopolitismo da urbe é aqui moderado pelo reconhecimento que cada um faz do sítio donde vem e do que deve aos que aí vivem, o que torna este filme um pouco angustiado pelas dívidas, mas sem nenhuma maldade. São personagens com um nó na garganta, com a dificuldade em garantir para as suas existências o carácter multiforme que a cidade lhes poderia oferecer, como o local aparente, atractor, onde a paz ou o bem-estar se ganhariam. Jogos entre os que querem sair e os que querem ficar. Subir na vida para poder ficar. Se para cima se fica no mesmo sítio, para o lado muda-se de lugar. Que quererão dizer-nos os detalhes dos mármores, dos empedrados, dos vidros fumados?
Há uma cena particularmente comovente que se desenrola numa cozinha. Um pai faz o relato ao filho arrivista empregado de banco do dia porque passou a mãe e porque se encontra deitada à hora de jantar. Uma história de problemas no trabalho, despedimentos «que metem a GNR e tudo». Não um trabalho qualquer, na fábrica. Diz-lhe o filho: «Sacrificas-te por uma ninharia». Mas poderia dizer-lhe também que deixasse essa vida, e ir viver com no luxo relativo do sector terciário, os serviços. É todo um movimento social concreto que se extrai de um filho que conversa com a mãe deitada na cama.


Numa outra cena, uma personagem masculina insiste em descrever um simples jogo de snooker como humilhante, quando ele é, sobretudo, um ritual de iniciação sexual. A outra personagem em cena, uma mulher que joga sempre a sério, é interpretada por Inês Vaz (na imagem) com uma força quase excessiva para uma personagem que é quase, ou parece, unidimensional, por ser a única que não participa dos anseios atrás referidos acerca da vida suburbana, mas sem que chegue sequer alguma vez a roçar a caricatura, num jogo de tensão constante, inebriante. Também Sara Cipriano, que interpreta a personagem feminina principal, é brilhante de subtileza. (Por vezes, por não acompanhar o teatro, não percebo a vida criativa dos actores. Sempre me incomodou a urgência que manifestam por aparecer, em qualquer coisa que seja. Como se não percebessem também eles a diferença. A frequência com que se entregam a fazer papéis vulgares na televisão, pelo dinheiro certamente, mas onde não têm qualquer tempo para dar alguma complexidade às personagens é assim particularmente confrangedora. Um pequeno filme como este, apesar da escassez de todo o tipo de recursos, permite-lhes ao menos apropriar-se daquele corpo para outra coisa que não a simples urgência de saírem de si próprios. Não é isso o terrível nos actores, essa urgência em se projectarem, mesmo em tempos que convidam ao recolhimento? A alma de um actor, eis um exemplo do tipo de coisas que, para mim, são assustadoras.)
Por vezes existem efeitos felizes no trabalho de um actor em que é difícil distinguir absolutamente o trabalho voluntário (também de argumento) do acaso involuntário. Por exemplo, na verdadeira língua de pau do protagonista masculino principal, que o denuncia a cada momento e o condena ao espelhamento e às limitações irredutíveis da sua posição entre dois mundos sociais (o seu e o da sua namorada) que não se podem cruzar. Mesmo quando procura superar o hiato aberto falando de amor, só lhe saem palavras caras e articulação sintáctica complicada

Por isso também a hesitação dela, apesar de manter a dúvida, parecer tão irredutível. Ela sabe que há forças maiores que a das palavras, por muito reflectidas que sejam. Estas embatem apenas nas pedras de mármore. E os dizeres afirmam aqui, quase sem excepção, uma pertença, não tanto a uma classe social completamente determinada e determinante, mas a uma posição própria da personagem, o lugar donde vem e para onde está a ir, sabendo que todos parecem um pouco parados naquele lugar simultaneamente opressor e que não permite um outro.
Por isso é estranho o significado da dupla suspensão no final. Não estão as personagens já suficientemente aprisionadas nas condicionantes da sua vida? Um filme meio encurralado, como as suas personagens, retrato de vidas suspensas. Continuo a sentir essa suspensão final como uma repetição do que lá está, um duplicação nefasta. Mas talvez isso se deva à exigência da utilização da música, e Luís Correia usa a música como poucos (reveja-se O dedo).
Um filme pode ser bem ou mal recebido, mas não é isso, no entanto, que o torna bom ou mau cinema. Claro que o contrário é ainda mais mentira. Não é certamente por um filme ser mal recebido que é bom. Há que abrir os olhos e fazer um esforço para deixá-lo entrar. E podia dar-se o caso, num filme assim ambicioso e complexo, de haver eventualmente alguma fragilidade técnica que o desmerecesse. Mas não há, de todo, o filme foi rodado em película e é cuidado em todos os elementos técnicos. Assim sendo, só se compreende que tenha sido recusado no Festival de Curtas de Vila do Conde, onde precisamente Rapace foi o sucesso que se conhece, porque o mundo e a vida do subúrbio que mostra não convéem a esse festival, tão preocupado com instalações e outras coisas que tais. Enquanto que este pequeno filme tem outro género de coisas lá dentro, algumas antiquadas, como pessoas, fábricas, famílias e assim.

Estação (2007) 32' de Luís Miguel Correia
2ª, dia 15, 21h30 - Cinemateca ante-estreia


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