Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A mão na boca #1: Definição da censura

Um velho de barbas, sentado numa mesa de café com outros dois homens de um kolkhoze vizinho, procura vagarosamente contar como se deu o reencontro com a sua mulher, depois de passados muitos anos prisioneiro num campo, para onde tinha sido enviado “por nada” na União Soviética do pós-Guerra. No momento que se segue ao mencionar dos campos, mas sem qualquer precipitação, uma criança loura, que já conhecíamos doutras cenas anteriores, entra veloz pelo quadro adentro e pousa a mão na boca do velho, lançando um olhar sorridente para trás, para os que o escutavam, quase que para nós, ligeiramente embaraçada. Depois sai do quadro como entrou, e o velho continua a contar a sua lenta estória...
Trata-se de uma cena estranha e perturbadora do filme ISTORIYA ASI KLYACHINOY, KOTORAYA LYUBILA, DA NE VYSHLA ZAMUZH / A FELICIDADE DE ASSIA (1967) de Andrei Konchalovsky, incluído no agora findo ciclo da Cinemateca Eram os Anos 60. É possível que se trate mesmo de uma das cenas que motivaram cortes da censura soviética, e que só em 1987 o realizador pôde recuperar, segundo descreve a sinopse do programa. Por não saber definir esta cena, tentei primeiro descrevê-la. Não é fácil, pois o elemento que me chama a atenção é tão sintético, ao passo que a restante estória, mesmo que dela me recordasse, não ajudaria propriamente à sua compreensão.

O mais difícil de fazer passar na descrição é a simplicidade da entrada da criança em cena, o seu carácter não-denunciado, contra todas as probabilidades, e quase lúdico, perante a gravidade do que é contado. Mesmo o olhar que depois nos lança não é sem ambiguidade, mas não se descola da situação, e parece ainda algo que uma criança irrequieta poderia fazer. No entanto, a esta simplicidade e leveza do gesto não corresponde de todo um impacto inofensivo. Pelo contrário, o carácter infantil do gesto da criança, no sentido de aquém da linguagem, dá-lhe uma força tremenda. Trata-se de calar alguém sem conhecimento do que está a ser dito, da sua importância e eventuais efeitos nefastos, que podem apenas porventura ser intuídos pela criança na atmosfera do momento. Por uns segundos, ficamos suspensos nesse gesto, como que aprisionados por aquela imagem da censura mais inocente, mais terrível. Só depois podemos de novo voltar com calma ao relato do velho, que conta a sua dura vida, e que, apesar de numa ficção, nada nos diz não ser verdadeira. Depois daquela mão de criança na boca...

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