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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O espectador ocioso #9: Só na Cinemateca


1. Existem porventura várias escolas de pensamento sobre o projeccionismo. No entanto, um único critério permite talvez, do ponto de vista do espectador, destrinçar entre duas grandes tendências. Mais do que saber se os projeccionistas deixam o filme rolar desfocado por bastante tempo, o que acontece com frequência, quer-me parecer que a divisão reside hoje entre aqueles que defendem e executam a abertura das luzes na sala de cinema assim que se apaga a imagem e aparece o genérico final, que são a quase totalidade, certamente que motivados pela pressa dos espectadores em sair, e os restantes, que as acedem somente quando o filme todo se acaba. Creio que já só na Cinemateca se encontram exemplares destes últimos resistentes.
JE, TU, IL, ELLE (1974) de Chantal Akerman, um belíssimo filme que por ali passou a 8 de Setembro, contém apenas três grandes sequências, cada uma mais embaraçosa que a outra. Na primeira, a jovem Akerman, que dá o corpo aqui também como actriz, destila vagarosamente um desgosto amoroso num quarto que vai esvaziando, comendo açúcar de um saco até ao enjoo; na segunda, conversa e envolve-se sexualmente com um camionista que lhe confessa o quanto a sua própria filha infante lhe provoca desejo (Que filme hoje teria coragem de “mostrar” algo semelhante, sem diabolização? Conheço um, grego, mas o júri do IndieLisboa 2008 deixou-o passar...); na terceira sequência, a que termina o filme, Akerman envolve-se numa sessão de luta greco-romana de cariz sexual com outra mulher (Luís Miguel Oliveira dizia acertadamente, na folha, que aquilo mais fazia lembrar um documentário sobre a vida selvagem).



O final do filme, depois desta cena sexual embaraçosa, ou pelo menos incómoda, chega com um cartão cinzento (o filme é a preto e branco) silencioso e ainda demorado. As luzes não se acedem e nenhum dos espectadores se levanta. Depois chega finalmente o genérico final. Luzes apagadas, ainda ninguém esboça qualquer gesto de sair. Continua o cinzento, expectativa pelo fim da película ou pelo aceder das luzes. Mas não. Começa uma canção infantil em off no filme, cujo refrão reza assim – Chantez, dansez, embrassez qui vous voulez... O espectador ocioso sente que acaba de assistir a um momento especial, não só no filme mas na própria sala. O particular poder do filme, a sua emoção, tinha-se acumulado naquela canção, os espectadores, que esgotavam a sala pequena da Cinemateca, não se tinham levantado porque estavam tolhidos, tocados no seu âmago, nos seus sentimentos, com a sua vida exposta àquela que Akerman lhes tinha dado de presente, já há tantos anos. Finda a canção, findo mesmo o restante cinzento da película, ninguém se tinha levantado. Só quando, feito escuro completo na sala, se acedem as luzes, a custo os espectadores se levantam e saem da sala. Só na Cinemateca.
Certamente que os mais cínicos, vulgo sociólogos, verão nesta situação, e com a sua razão, antes um exemplo de uma espécie de coacção inter-pares exercida num espaço comum. A atmosfera não era propícia a incomodar os outros. O constrangimento que causaria levantar-se naquele momento teria coarctado o impulso de certos espectadores em abandonar a sala. A emoção estética não era para ali chamada. Talvez.

Mas, na sala da Cinemateca, os espectadores parecem ter pelo menos a consciência de que algo, senão neles, se pode passar noutros, que levantar-se precipitadamente, revelando a pressa que têm em voltar a casa, ao seu casulo, poderia interferir nessa emoção alheia. É, aliás, a meu ver, para que serve ficar na sala acompanhando o genérico final até ao fim, para deixar pousar o filme em nós. Muitas vezes não chega e ficamos alienados ainda uns bons minutos, incapazes já na rua de qualquer diálogo social sofisticado. Pelo menos na Cinemateca podemos manter a ilusão, ainda que infelizmente alimentada pela autoridade, de que a emoção estética dada por um filme ainda suspende a normal precipitação das pessoas.


2. Mas só na Cinemateca também, no dia da Festa de Encerramento da comemoração dos seus 50 anos, a 29 de Setembro, não poderão a Vanda e o Ventura entrar (a não ser como convidados; ter-se-ão lembrado deles?). Doutro modo poderão apenas, como qualquer outra pessoa, espera-se, e é o mais importante, assistir à única sessão desse dia, a das 23h, «Uma noite de filmes» programada por Pedro Costa, realizador dado a interessantes gestos de programador, que (juntamente com BILLIE HOLIDAY SINGS FINE AND MELLOW e SO DARK THE NIGHT, este de Joseph H. Lewis) inclui por sinal o belíssimo THE EXILES de Kent MacKenzie, que Pedro Costa terá provavelmente descoberto ao ver LOS ANGELES PLAYS ITSELF de Thom Andersen (ambos programados anteriormente por Ricardo Matos Cabo).


Haverá igualmente uma sessão solene privada e mesmo uma festa propriamente dita, também ela privada, por convites, na Cinemateca pública, que se realizarão no mesmo dia, antes da sessão de cinema. Quem terá sido convidado? Talvez os que assinaram a petição ad hominem. Não terão sido as pessoas interessadas pelo cinema, dentro ou fora da Cinemateca, inclusive programadores, nem sequer os Amigos da Cinemateca, que eram quem verdadeiramente lá podia e devia estar. E não as ditas elites, essa corja, como diz uma amiga, que, seja por proximidade com o poder político ou pelas postas de pescada que vomitam nos jornais, sem que, no entanto, se dignem a lá ir ver cinema, podem aceder às doutas considerações sobre o que a Cinemateca deve e pode ser nos festejos dos seus 50 anos. Ou talvez se prepare a passagem de testemunho, e que esta seja privada não é todo inocente. Tudo demasiado controlado, demasiado sustentado, pois as ameaças rondam; um espírito de perseguição. Como se Bénard da Costa fosse anunciar a sua retirada despeitosa, ofendida, depois de cumprida a grandiosa obra.
E há igualmente um lado de classe, de aristocracia cultural, e mesmo de exclusão de classe, nesta festa secreta, privada, de que não se sabe rigorosamente nada a três dias de se realizar, que é repugnante. A bilheteira terá até um horário especial (14-19h e 22-23h) para evitar possíveis misturadas. Dá vontade de fazer como num Buñuel, de ir com o povão e entrar por ali adentro, escandalizando os burgueses no seu ambiente fechado, incomodando as elites, comendo os acepipes com fome e não por displicência, bebendo o vinho com sede, nessa festa de que, como eu e outros, a Vanda e o Ventura quaisquer também não podem participar.

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