O meu reino por um prato de/com ovos | My kingdom for a plate of/with eggs
Ossos (1997) Pedro Costa excerto | excerpt
« Senti a dificuldade de, perante um objecto virtuoso com uma maturidade técnica cuja luz e som dão uma noção de coerência narrativa, compreender as incongruências que Ossos tem e ninguém mencionou. Se há tanta verdade neste olhar sobre o bairro e as gentes do bairro, se se recorre à sugestão de modelos neo-realistas para consumo reservado às más consciências íntimas do potencial público burguês, se se opta por contornos de personagens cuja essência apenas retrata uma dor pairante, que possibilidade de recuo tenho eu enquanto espectadora para, sem uma experiência semelhante à de Pedro Costa, supor e adivinhar o resto da vida daquelas pessoas? Não acredito, por exemplo, que tantas tentativas de suicídio por gaseamento não acabem por resultar. Não acredito que um personagem esfomeado que revolve caixotes à procura de restos de comida e diz já não comer há três dias abandone um prato de ovos oferecido numa casa cuja estratégia é ilustrar “o outro lado da ordem” [...]» Cristina Peres, «Ossos difíceis», Expresso-Cartaz, 6.12.1997 «[...] Cristina Peres: a) embora não tenha a vivência dos habitantes do bairro das Fontainhas, parece ter uma noção exacta do que ela poderá ser – em relação ao qual o filme de Pedro Costa não fará justiça; b) enquanto espectadora do cinema nacional tem um “ideal de identificação” que se rege por critérios universais e que a levam a invocar valores lógicos de “verdade” e “falso” para aquilo que vê na tela; c) terá do espectáculo de dança uma concepção diferente daquela que tem do espectáculo cinematográfico – para o primeiro aceita as convenções da “representação”, para o segundo exige um respeito (documental, sociológico) àquilo que toma por realidade; d) alinha pela bitola do sociologicamente correcto (ironicamente, essa é uma das acusações que faz a Ossos), denunciando uma suposta inexactidão em de uma ordem que não quer ver profanada. Miguel Gomes, «Da exumação dos ossos», Público-Artes & Ócios, 12.12.1997Tudo junto, e no caso, dá o seguinte: Cristina Peres está desapontada porque acha que um filme passado nas Fontainhas e protagonizado pelos seus habitantes deveria reflectir a imagem que (se) tem dos pobrezinhos. Pode-se contrapor algo às “incoerências” que Cristina Peres aponta à narrativa de Ossos. Todas as personagens guardam um lado secreto (aquele que Cristina Peres lastima não poder aceder) onde se equaciona um orgulho que está para além de qualquer prato com ovos. [...] Mas mais importante será refutar-lhe o ponto de partida: não se pode estabelecer como limites de um filme (quer se passe nas Fontainhas ou no Palácio de Belém) aquilo que se toma por “correcto”. Isso é amputar-lhe um olhar – que não será, também à partida, mais ou menos interessante; será diferente. Cristina Peres, que escreve sobre artes performativas, tem a obrigação de saber que a verdade de uma “performance” (uma coreografia, uma encenação teatral ou a “mise-en-scène” cinematográfica) está permanentemente auto-contida. [...] foram os próprios promotores de Ossos que o desviaram para uma zona de mal-entendidos. E com isso criaram expectativas que o objecto não pode satisfazer. Quem faz passar com oportunismo o apelo sociológico no “trailer” televisivo, quem celebra a sua eficácia (em detrimento do próprio filme) ou quem promove discursos (urgentes mas obviamente extra-cinematográficos) para caucionar um objecto que lhes é transversal não terá legitimidade moral para vir agora defender um filme que tão corajosamente recusa essas premissas. Aparentemente vai mesmo ter de passar algum tempo até que Ossos possa ser visto sem o recurso a filtros teóricos ou sociológicos. Entretanto há que respeitar os trâmites dos rituais de exumação e deixar que a carne apodreça para finalmente resgatar à terra a ossada. Quer dizer, esperar que o vínculo de actualidade seja cortado para que só possamos ver o cinema. Nessa altura – nesse tempo – seremos seguramente reenviados para o seu intemporal interior. » | «Facing a virtuoso object with a technical maturity whose light and sound offer a notion of narrative coherence, I felt difficult to understand the incongruencies Bones has and that nobody mentioned. If there is so much truth in this gaze of [Fontainhas] district and the people there, if it recurs to the suggestion of neo-realists models for private consumption of the bad self-consciences of the potential bourgeois public, if it opts for character outlines whose essence only portrays a hovering pain, what possibility of detachment have I as a spectator for, without a similar experience to the one of Pedro Costa, to suppose and to guess on the remaining portion of the lives of those people? I do not believe, for instance, that so many gas suicide attempts do not eventually result. I do not believe that a starving character who scatters trash bins in search of food leftovers and says he doesn’t eat for three days abandons a plate of eggs offered in a house whose strategy is to illustrate “the other side of order” [...]” Cristina Peres, «Difficult bones» «[...] Cristina Peres: a) despite not having the experience of Fontainhas district inhabitants, seems to have a exact notion of what it could be –relating to which Pedro Costa’s film wouldn’t make justice; b) as a Portuguese cinema spectator, she has an “identification ideal” mesured by universal criteria and that brings her to invoke “truth” or “false” logical values for what sees on the screen; c) she might have a different conception of a dance spectacle from the one she has of the cinematographic spectacle – for the first she accepts the “representation” conventions, for the second she requests a (documentary, sociological) respect to which she takes for reality; d) she aligns by the sociological correct type (ironically, that’s one of the accusations she makes at Bones), denouncing a supposed inaccuracy of an order that she doesn’t want to see profaned. In this case, all put together, it amounts to this: Cristina Peres is disappointed because she thinks a film happening at Fontainhas and featured by its inhabitants should reflect the image she (one) has of poor people. One could contend something to the “incoherencies” Cristina Peres points out in Bones narrative. All the characters maintain a secret side (the one Cristina Peres laments not being able to accede) where a pride beyond any plate with eggs is being attempted. [...] But more important is to refute her starting point: one cannot establish as limits to a film (featured either at the Fontainhas or at Belém’s Presidential Palace) what one takes as “correct”. That is to amputate it of a gaze – that doesn’t have to be, firsthand, more or less interesting; just different. Cristina Peres, who writes on performance arts, has the obligation of knowing that the truth of a “performance” (a choreography, a theatre staging or a cinematographic “mise-en-scène”) is permanently self-contained. [...] the promoters of Bones themselves deviated it to an area of misunderstandings. And with that they created expectations the object cannot satisfy. He who with opportunism conveys a sociological appeal at the television trailer, who celebrates its effectiveness (in detriment of the film itself) or promotes discourses (urgent but obviously extra-cinematographic) to vouch an object that is transversal to them, will not have the moral legitimacy to come and defend a film that so courageously refuses those premises. Apparently it will be necessary some time until Bones can be seen without resource to theoretical or sociological filters. Meanwhile one has to respect the proceedings of exhumation rituals and leave the meat to root, so to finally rescue the skeleton from the dirt. That is, to wait for the bond with actuality to be cut so that one can see only the cinema. Then – at that time – surely we’ll be returned to its timeless interior.» Miguel Gomes, «On bone exhumation» |