Opiniões, quem as não tem?
«[O] que a opinião propõe é uma certa relação entre uma percepção exterior como estado de um sujeito e uma afecção interior como passagem de um estado a outro [...]. Destacamos uma qualidade supostamente comum a vários objectos que nos surgem, e uma afecção supostamente comum a vários sujeitos que a experimentam e apreendem connosco essa qualidade. A opinião é a regra de correspondência de uma para outra, é uma função ou uma proposição cujos argumentos são percepções ou afecções, e nesse sentido função do vivido. Por exemplo, nós discernimos uma qualidade perceptiva comum aos gatos, ou aos cães, e um certo sentimento que nos faz amar, ou odiar, uns em vez dos outros: para um grupo de objectos, podem-se extrair muitas qualidades diversas, e formar muitos grupos de sujeitos muito diferentes, atractivos ou repulsivos (“sociedade” dos que gostam de gatos, ou dos que os detestam...) de tal modo que as opiniões são essencialmente o objecto de uma luta ou de uma troca. [...] A doxa é um tipo de proposição que se apresenta da seguinte maneira: dada uma situação vivida perceptivo-afectiva (por exemplo, traz-se queijo para a mesa do banquete), alguém extrai dele uma quantidade pura (por exemplo, odor fétido); mas ao mesmo tempo que abstrai a qualidade, ele próprio se identifica com um sujeito genérico que experimenta uma afecção comum (a sociedade dos que detestam queijo – rivalizando, a este título, com os que gostam de queijo, a maior parte das vezes em função de uma outra qualidade). A “discussão” incide pois sobre a escolha da qualidade perceptiva abstracta, e sobre o poder do sujeito genérico afectado. Por exemplo, detestar o queijo será privar-se de ser um bon vivant? Mas bon vivant será uma afecção genericamente invejável? Não será necessário dizer que os que gostam de queijo, e todos os bon vivant, fedem, eles próprios? A não ser que sejam os inimigos do queijo que fedem. É como a história que Hegel contava, a vendedeira a quem alguém disse: “Os seus ovos estão podres”, e que responde: “Podre está você, e a sua mãe, e a sua avó”: a opinião é um pensamento abstracto e a injúria desempenha um papel eficaz nesta abstracção, porque a opinião exprime as funções gerais de estados particulares. Ela retira da percepção uma qualidade abstracta e da afecção um poder geral: qualquer opinião é desde logo política neste sentido. É por isso que tantas discussões podem ser enunciadas assim: “eu, enquanto homem, penso que todas as mulheres são infiéis”, “eu, enquanto mulher, penso que todos os homens são mentirosos”. | A opinião é um pensamento que se molda intimamente pela forma da recognição: recognição de uma qualidade na percepção (contemplação), recognição de um grupo na afecção (reflexão), recognição de um rival na possibilidade de outros grupos e de outras qualidades (comunicação). Ela dá à recognição do verdadeiro uma extensão e critérios que são por natureza os de uma “ortodoxia”: será verdadeira uma opinião que coincide com a do grupo, ao qual que se pertence exprimindo-a. Isso vê-se bem em certos concursos: tem de se dizer a opinião pessoal, mas “ganha-se” (disse-se de um modo verdadeiro) se se disse a mesma coisa que a maioria dos que participam do concurso. A opinião, na sua essência, é vontade de maioria, e fala desde logo em nome de uma maioria. [...] o reinado da opinião: esta triunfa quando a qualidade considerada deixa de ser a condição de constituição de um grupo, mas não é mais do que a imagem ou a “marca” do grupo constituído que determina ele próprio o modelo perceptivo e afectivo, a qualidade e a afecção que cada um deve adquirir.» Gilles Deleuze, O que é a filosofia?, trad. Margarida Barahona e António Guerreiro, Presença, Lisboa, 1992, pp. 128-130. |